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O interesse do Milênio em Salazar começou com a morte de José Saramago.
O repórter cinematográfico Paulo Pimentel, que registra com maior regularidade as imagens do Milênio na Europa, tinha ido cobrir a morte do escritor português na ilha de Lanzarote, onde o premiado Nobel de Literatura tinha passado os últimos anos.
Na volta à sua base em Londres, via Lisboa, Pimentel leu a bordo do avião, numa revista portuguesa, referência a uma recém-lançada biografia do ditador António de Oliveira Salazar, que comandou Portugal com linha dura e ideias moles durante quase meio século.
“Isso rende um Milênio” – pensou logo Pimentel, com seu faro jornalístico de 30 anos em coberturas para a Rede Globo e a Globo News, além dos muitos trabalhos que realiza como cinegrafista freelance para emissoras de TV europeias. São dele, em geral, as fotos que ilustram o blog dos Milênios feitos na Europa.
repórter cinematográfico Paulo Pimentel
Pimentel trouxe o artigo e concordamos que Salazar era um assunto ótimo para o Milênio, um programa de ideias e temas de impacto na sociedade e na história. Mas como sempre, era preciso ler o livro primeiro, para saber se tinha qualidade para justificar uma entrevista com o autor.
Encomendar o livro, até então não publicado no Reino Unido, foi uma operação complexa, que me obrigou a comprá-lo de uma editora em Nova York, que o enviou a Las Vegas(!), de onde um portador me trouxe em mãos a obra que, para surpresa minha, veio dos EUA em português, embora exista uma edição em inglês. Nem tentei entender o porquê.
Segundo obstáculo foi encarar 802 páginas, em meio a tantos livros para ler, tantas outras entrevistas a preparar. Mas aos poucos consegui mergulhar na biografia (a chuva constante em Londres serve para alguma coisa) e logo fiquei intrigado pela figura de Salazar, quem era e o que fez durante períodos-chaves na história recente, da Segunda Guerra Mundial à descolonização da África. Havia ainda sua relação com Mussolini, Franco, Hitler, e com o Brasil, que ele cultivava e repelia ao mesmo tempo.
fotos: Paulo Pimentel
O autor da biografia, Filipe Ribeiro de Meneses, não morava nem em Portugal nem no Reino Unido, mas na República da Irlanda, onde é professor de História na Universidade da Irlanda, filial de Maynooth, perto de Dublin.
Logo no primeiro contato, Meneses mostrou boa-vontade com nosso pedido de entrevista. Conhece o Brasil, que visitou quando seu pai serviu como diplomata em Brasília. A programação do encontro ainda caminhava quando ganhou uma dimensão peculiar no dia em que Pimentel e eu fomos entrevistar para o Milênio outro autor com interesse em Portugal. Era o historiador britânico Edward Paice, que escreveu sobre o mega-terremoto e a tsunami em Lisboa, em 1755, e foi convidado do Milênio em janeiro (clique aqui e reveja esse programa).
Paice queria conhecer Meneses, com quem compartilhava interesse sobre as colônias portuguesas na África. E também quis ler a biografia de Salazar.
Combinamos então um encontro a três em Londres, no próprio escritório de Paice, vizinho ao Big-Ben. E ali foi feita a entrevista sobre Salazar que o Milênio agora leva ao ar.
O livro nos ofereceu a oportunidade de discutir com o autor desde o Salazar jovem, quase-padre, depois o professor universitário, até o ministro das Finanças que virou ditador todo-poderoso.
Seria quase como examinar a evolução de Salazar, não fosse essa palavra tão inapropriada para descrever uma homem e político congelado em suas crenças e seus preconceitos, irredutível em sua visão de mundo mais apropriada para a Idade Média do que para um país europeu no século vinte. Achava, por exemplo, que o Brasil tinha se tornando independente cedo demais, era um país imaturo e devia suas benesses à colonização portuguesa.
O subsecretário de estado americano George Ball ofereceu uma descrição mais pitoresca, ao visitar Lisboa em 1963, para negociar com Salazar: “- Um reacionário!” – escreveu Ball a seu chefe, o presidente Kennedy “- Salazar vive absorto numa dimensão temporal muito diferente da nossa; parece que ele e todo o seu país vivem em mais do que um século ao mesmo tempo, e que os heróis do passado continuam a moldar a política portuguesa”.
A conclusão de Ball foi de que Portugal era governado por um triunvirato: Vasco da Gama, Infante Dom Henrique e Salazar.
O Milênio joga uma luz sobre o líder que virou sinônimo de Portugal no século vinte. Ou seria o século quinze?
por Silio Boccanera