Quem não percebe relevância em tratar no Milênio de uma monarquia absolutista de 500 atrás só precisa atentar para a decisão do Papa Bento XVI no mês passado. Ele ofereceu acolhida na Igreja Católica aos protestantes anglicanos insatisfeitos com os caminhos progressistas da religião criada há cinco séculos pelo rei Henrique VIII, justamente o personagem do nosso programa no ar.
O gesto do Papa está sendo tratado por vários teólogos e scholars europeus como tentativa do Vaticano em “dar o troco” ao monarca rebelde que rompeu com o Pontífice de sua época – Clemente VII – e criou uma igreja própria na Inglaterra, sob seu comando pessoal, separada de Roma e das ordens impostas pelo então todo-poderoso Papa por todo o vasto mundo da Cristandade.
“Bento XVI está decidido a restaurar o império romano”, proclamou agora o conceituado teólogo suíço-alemão Hans Kung, indignado com o esforço do Vaticano para atrair os anglicanos que repudiam a ascensão de gays e mulheres na hierarquia de sua igreja.
O historiado britânico David Starkey, especialista na dinastia dos Tudors – a que Henrique VIII pertencia – diz que a iniciativa do Papa agora não é só uma questão de fé e sim um acerto de contas com o rei que brigou com um dos antecessores de Bento no trono de Roma.
O monarca, portanto, continua tendo impacto exatamente 500 anos depois de sua ascensão ao trono aqui em Londres. Sua influência vai além da Inglaterra, onde dava ordens com poder absoluto (Escócia, Irlanda e Gales não lhe pertenciam; o Reino Unido ainda não existia), pois sua quebra com Roma atingiu a Igreja Católica num momento sensível, quando a Reforma Protestante tomava fôlego. Em breve, a Europa estaria tomada por guerras religiosas sangrentas.
Em nome da fé verdadeira, dissidentes ou hereges foram massacrados (quem reclama dos muçulmanos radicais de hoje se esquece da história do Cristianismo…). Muitos fugiram para terras distantes, como, por exemplo, a América do Norte, onde estabeleceram colônias permanentes, com a determinação de não repetir no Novo Mundo a perseguição que grassava na Europa contra quem pensava ou rezava de forma diferente. Plantou-se lá a semente da futura democracia americana, sem uma religião do Estado, ao passo que o anglicanismo ainda é a religião oficial na Inglaterra, sob o comando supremo do monarca de plantão, Elizabeth II agora – conforme estabeleceu o personagem do Milênio.
Henrique VIII foi, portanto, mais do que um rei chegado a decapitar suas mulheres e seus adversários, embora não se possa negar sua tendência a mandar cortar os pescoços dos desafetos. Um dos que perderam a cabeça por ordem dele foi seu assessor maior, Thomas Cromwell, intrigante supremo nos corredores do poder, até que passou do ponto e desagradou o rei.
A saga de Cromwell gerou o livro recém-lançado Wolf Hall, de Hillary Mantel, que acaba de ganhar o Booker Prize, uma espécie de Pulitzer ou Jabuti britânico. Venceu não como livro acadêmico, mas romance histórico, que cobre um período fascinante de maquinações de poder, capazes de despertar inveja em Brasília. Sem esquecer dos jogos de alcova do rei e sua entourage, como revela a série de televisão Os Tudors.
Se quisermos então ligar as pontas entre a Londres de Henry e Brasília de Lula, basta pegarmos o jantar em homenagem ao presidente brasileiro aqui na capital britânica, na semana passada. A cerimônia foi no Banqueting Hall, um dos últimos prédios que sobram do antigo Palácio de Whitehall, da época Tudor. E quem mandou construir o Hall, para grandes banquetes? Ele mesmo, Henrique VIII.
Alguém poderia informar o Presidente Lula sobre a história do prédio, mas sem esquecer um outro detalhe: ali mesmo, cem anos depois, outro rei, Charles I, foi alvo de uma cerimônia menos edificante. O monarca quis impor sua vontade como líder, ao estilo autoritário de Henrique VIII, sem considerar o contrapeso do parlamento, então já mais robusto em suas funções. Charles foi julgado por traição e acabou enforcado ali no Banqueting Hall. Do lado de fora, para o povo ver.
A lembrança estraga qualquer sobremesa.
por Silio Boccanera