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Capitalismo e Desigualdade

qua, 11/06/14
por Equipe Milênio |

 

No romance Le Père Goriot, uma das obras-primas de Balzac, o personagem Vautrin, um criminoso cínico, tenta convencer o jovem Rastignac a se casar com a feiosa Victorine, moradora da pensão onde os dois vivem. Vautrin se propõe a matar o irmão de Victorine, para que ela herde a enorme fortuna do pai. O casamento com uma herdeira, diz Vautrin, seria a única maneira de Rastignac subir na vida, numa sociedade (há 200 anos) totalmente corrompida pela alta concentração da riqueza. Na fala de Vautrin, Balzac detalha os valores em dinheiro que Rastignac ganharia se optasse pelo estudo do Direito e uma carreira de advogado, juiz ou procurador, e a renda que teria imediatamente, muitas vezes maior, se se casasse com a herdeira.

Na juventude, o francês Thomas Piketty, nascido em 1971 numa família modesta de Paris (os pais, trotskistas, eram veteranos da revolução de Maio de 1968), se apaixonou pelos romances da Comédia Humana de Balzac e, especialmente, pelo “dilema de Rastignac”. Doutor em economia pela melhor escola superior da França, a École Normale Supérieure, dedicou-se a estudar a distribuição da riqueza ao longo da História moderna. Em 2001, publicou um estudo detalhado da concentração da renda e do capital na França, desde o século XVIII. Graças à Revolução de 1789, que criou a obrigatoriedade do cadastro das propriedades, a França é o país com o mais completo banco de dados sobre a riqueza. Desde então, Piketty, que em 2006 fundou a Escola de Economia de Paris, se juntou ao eminente economista britânico Sir Tony Atkinson, a outro francês, Emmanuel Saez, radicado nos Estados Unidos, ao argentino Facundo Alvaredo e a dezenas de outros economistas de vários países, para criar o website World Top Income Distribution, que coleta e publica todas as séries de dados sobre renda e patrimônio em mais de 20 países.

Para responder à pergunta de como Rastignac resolveria o dilema colocado por Vautrin (estudar ou se casar com uma herdeira, para vencer na vida), em cada fase da história do capitalismo ao longo dos últimos séculos, Piketty partiu para a construção da obra de 1 mil páginas (na edição francesa) que ganharia o título Capital no Século XXI. Além de Balzac, ele usa os romances de Jane Austen, os filmes Titanic e Aristogatas, e outras referências culturais para pintar o quadro mais completo possível de como a distribuição da riqueza estruturou a sociedade na França, na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, na Alemanha, na Suécia e outros países.

Para encontrar sentido na enorme massa de estatísticas reunidas pelo grupo do WTID, Piketty trabalha com equações simples, que ele ajuda o leitor a entender, e uma série de tabelas e gráficos que dão uma visão muito clara da ordem de grandeza da distribuição por faixas de renda e de patrimônio (as duas hierarquias, a da renda proveniente do trabalho, e a do patrimônio acumulado, são analisadas em separado ao longo do livro, e por fim reunidas numa síntese do quadro de desigualdade de riqueza).

Ele constata que a acumulação da riqueza cresce em função da diferença entre a taxa de rendimento anual do capital (historicamente em torno de 4 ou 5%) e a taxa de crescimento anual da economia. A concentração do capital chegou a níveis extremos na Belle Époque, os anos anteriores à Primeira Guerra Mundial. O período das duas guerras mundiais destruiu o capital acumulado e a desigualdade caiu drasticamente. Em seguida, o forte crescimento da economia no que os franceses chamam de Les Trente Glorieuses, os 30 anos de 1950 a 1980, levou ao surgimento de uma vasta classe média, reduzindo ainda mais a desigualdade. Mas desde a revolução conservadora de Thatcher e Reagan, nos anos 80, o rendimento do capital voltou a crescer bem acima do ritmo de crescimento da economia. No século XXI, com a queda da curva demográfica, o crescimento deverá ficar em torno de 1,5% ao ano, enquanto o rendimento do capital manterá ou superará a taxa anual de 4 ou 5%. Resultado automático: uma concentração do capital comparável à da Belle Époque. Caminhamos, nos próximos anos, se nada mudar, para uma distribuição extremamente desigual na qual o 1% mais rico possuirá 70% da riqueza (no momento, segundo Piketty, em escala mundial o 1% possui 50% do capital, e o que ele chama de “as classes populares”, os 50% mais pobres, não possuem praticamente nada). Será muito difícil a democracia sobreviver a uma desigualdade tão extrema.

Piketty, ao contrário do que muitos afirmam (obviamente sem terem lido o livro), não é marxista nem neomarxista, defende o capitalismo e a economia de mercado, e não vê alternativa à globalização da economia. Mas ele aponta para os riscos que a desigualdade crescente acarretará: tensão social, estados mais repressivos, e forças protecionistas (que ele chama de “recuos nacionais”) levando países e regiões a tentarem se isolar da economia global. Ele não chega a especular sobre a possibilidade de novas guerras mundiais, como a de 1918, que resultou em parte da extrema desigualdade da Belle Époque. Mas insiste na urgência de soluções, para obter o “controle do capitalismo pela democracia”.

Uma das saídas, que ele mesmo considera utópica, seria um imposto global sobre o capital, da ordem de 1 ou 2%, que resultaria de uma coordenação entre todos os países e instituições financeiras, pressupondo o fim dos paraísos fiscais. Seria uma forma de reduzir a taxa de rendimento do capital, para que fique mais próxima da taxa de crescimento da economia. Outra ideia é a volta do imposto de renda progressivo de caráter confiscatório (alíquota de 80% para as grandes fortunas) que esteve em vigor nos Estados Unidos entre as décadas de 30 e 80, e não freiou o alto crescimento da época.

Piketty não é dogmático quanto a essas propostas, que ele lança apenas para despertar o debate. Algo tem que ser feito, e essas medidas extremas (mas que, segundo ele, seriam eficazes) servem de balizamento para comparação com outras propostas de controle da acumulação excessiva do capital. O que ele aponta como indispensável é a transparência, no momento inexistente, dos dados sobre a riqueza: para estudar a faixa mais alta, a dos bilionários, só se dispõe dos dados altamente duvidosos da revista Forbes. O debate democrático sobre como enfrentar a crescente desigualdade exige o conhecimento exato da realidade da distribuição da riqueza.

Neste sentido, o Brasil está bastante atrasado. Piketty se diz otimista, e acredita que com a divulgação de suas ideias e a publicação do livro no Brasil, em setembro, a Receita Federal venha a entregar à equipe do WTID a série completa de dados sobre as faixas de renda e de patrimônio no Brasil. Segundo o economista Facundo Alvaredo, encarregado de coletar esses dados, a última publicação completa fornecida pela Receita Federal é de 1989. Há sete anos, Alvaredo solicita formalmente esses dados (anônimos, obviamente) , para que o Brasil possa ser intregrado ao WTID, e sequer obteve resposta. Mas Piketty acredita que isso vai mudar e sua equipe terá acesso às informações brasileiras. Sem o que, nada de definitivo se poderá afirmar sobre a desigualdade da riqueza no Brasil. O resultado das pesquisas domiciliares feitas pelo IBGE, e que mostram uma acentuada queda da desigualdade nos últimos anos, não incluem as faixas mais altas de renda e de patrimônio. Por isso, não servem para o levantamento mundial do WTID. Mais de 20 países, entre eles Argentina, Colômbia e Uruguai, estão no banco de dados porque seus governos liberam essas informações, que o Brasil não fornece. Sem transparência, não há como conhecer a extensão da desigualdade.

O livro de Piketty, muito bem traduzido para o inglês e publicado em abril, tornou-se um hit imediato. Já vendeu mais de 100 mil exemplares de capa dura e está no topo dos mais vendidos da Amazon.com. Piketty foi recebido pelo Secretário do Tesouro em Washington e pelo Conselho Econômico da Casa Branca, lotou auditórios em Nova York, discutindo suas ideias com economistas, e desencadeou uma verdadeira Pikettymania. Apareceu nas principais redes de TV e seu sotaque carregado foi ridicularizado (com simpatia) pelo comediante Steve Colbert. De uma hora para outra, os americanos descobriram, através de um francês, que sua desigualdade de riqueza alcançou níveis estratosféricos, bem mais altos que os da Europa, e cresce sem controle. Em represália, surgiu o que o prêmio Nobel de Economia Paul Krugman chama de “a indústria de negação da desigualdade”.

O jornal britânico Financial Times publicou com grande alarde uma análise do livro de Piketty acusando-o de errar nas contas. Segundo o jornal, pelo menos na Grã-Bretanha a desigualdade teria diminuído em vez de crescer nos últimos anos, o que, afirma, lança dúvidas sobre toda a obra do francês. O artigo teve repercussão enorme. Piketty publicou uma resposta detalhada, na qual mostra que, no caso britânico, o jornal comparou dados históricos obtidos por métodos diferentes – foi como comparar alhos e bugalhos. Mas o economista considera muito positivo esse debate. É exatamente o que ele quer, levantar uma discussão mundial sobre a desigualdade.

por Jorge Pontual

Um encontro com o homem mais procurado do mundo

qua, 04/06/14
por Equipe Milênio |

 

 

Em carne e osso, Edward Snowden parece pouco o rapaz sério que num quarto de hotel em Hong Kong se apresentava como o responsável pelos vazamentos de documentos ultrassecretos da NSA, a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos – o único vídeo disponível, até então, em que se podia vê-lo e ouvi-lo. Parece ainda mais jovem que seus trinta anos. E tem um andar leve, um jeito de quem dorme sem preocupações.

Comentei isso com o Paulo Zero – repórter cinematográfico e meu marido-, quando ele deixou nosso quarto, depois de uma hora de conversa que serviu apenas para ele nos conhecer. A entrevista seria no dia seguinte, às 9 e meia da manhã. Estávamos na Rússia havia 24 horas, num estresse imenso por causa de todos os segredos que rondavam a entrevista, pela incerteza que é esperada quando se lida com uma pessoa procurada pelo serviço secreto mais poderoso do mundo.

Já muito tarde na noite anterior, quando fizemos o check-in no hotel Kempinski, onde fomos instruídos a nos hospedarmos, nem perguntei se havia, por acaso, um hóspede chamado Snowden. Sabia que ele jamais estaria registrado com o próprio nome. Tentamos dormir, com fuso de 7 horas atrapalhando. E, bem cedo, começamos a garantir a logística da entrevista – receber as câmeras e luzes de fornecedores russos que não sabiam falar uma palavra em inglês, e insistiam em querer ficar “vigiando” o equipamento. Nesse caso, não podíamos ter nenhum estranho na sala. E com muita linguagem corporal e a ajuda de uma tradutora que estava em São Paulo, conseguimos convencê-los a voltar só no fim do dia seguinte. Não sem antes ouvir, entre muitas palavras incompreensíveis trocadas entre eles, o nome Snowden. Eles deduziram ou estavam ironizando nosso comportamento de agentes secretos? Snowden é assunto na Rússia, não só porque mora lá – o país concedeu a ele asilo temporário, de um ano. O taxista que nos levou do aeroporto, falando um inglês de palavras truncadas, ao saber que eramos brasileiros disse: Brasil presidente americanos espiar. Ele sabia que a Dilma Rousseff havia sido espionada pela NSA. Não desconfiou que éramos os repórteres por trás da revelação feita com documentos vazados por Snowden.

Nove e trinta e dois, um toc-toc na porta. Ed – como ele gosta de ser chamado – chega com sua mochila, um sorriso largo. Em seguida, aparecem Glenn Greenwald e seu companheiro, David Miranda. Glenn é o jornalista americano radicado no Brasil que, junto com a documentarista Laura Poitras, recebeu os milhares de documentos das mãos de Snowden em Hong Kong. Glenn participou da primeira parte da entrevista e saiu para arrumar as malas – ele devia seguir para Frankfurt, onde faria palestra no mesmo dia. Laura, num determinado momento, se juntou a nós, acompanhou um pouco da entrevista e se foi. Na maior parte do tempo, fomos Paulo e eu, naquele quarto de hotel com vista para a Praça Vermelha, e o espião mais procurado do mundo. E ele estava à vontade. Ofereci café, ele aceitou água. Sem gás. Não bebe café, nem chá, nem refrigerante, nem álcool. Não fez restrição a nenhuma pergunta. Riu várias vezes – como quando contei do taxista – e algumas vezes parava para pensar nas palavras – nesse momento ele não pode se dar ao luxo de permitir duplo sentido no que diz. A única resposta que não deu, foi com bom humor: -Essa, é melhor não responder, quando perguntei sobre sair à rua disfarçado.

Assim, durante 3 horas gravamos esta entrevista. Quando acabou ele ainda foi para o corredor comigo, para gravarmos uma imagem. Se despediu de Glenn, David e Laura, que haviam voltado a se juntar a nós, e desapareceu pela saída dos fundos. Usou a escada, em vez do elevador. Não tenho ideia de para onde foi. Como nunca soube como ele apareceu no hotel.

por Sônia Bridi

O tempo para as notícias

qua, 30/04/14
por Equipe Milênio |

 

 

Sou fã de Alain de Botton há muitos anos, desde o primeiro livro dele, Como Proust Pode Mudar Sua Vida. Eu tinha lido Proust, mas a leitura do filósofo foi mais profunda e me ajudou muito numa fase de depressão. Outro livro essencial dele é As Consolações da Filosofia. Ele tem efeito terapêutico, é melhor que antidepressivo e sem efeitos colaterais. Os cínicos o comparam a Paulo Coelho. Mas eu, que sou fã, tenho muita gratidão pela popularização da filosofia que ele faz com tanta inteligência e delicadeza.

O último livro, The News, a User’s Manual, veio para mim na hora certa. Por vício profissional me tornei um dependente da notícia, ligado 24 horas. Cheguei ao extremo de, à cata de notícia, checar as redes sociais da Internet a cada minuto. Aí encontrei a reflexão de de Botton sobre essa praga, pandemia mesmo, que atacou a humanidade: o excesso de notícia, de informação, e a falta de conhecimento e sabedoria. Foi um bálsamo. Parei de acessar as redes sociais (por enquanto até julho, 90 dias). E segui a sugestão dele: quando estou de folga no fim de semana não entro mais na Internet, nem leio jornal ou vejo TV. Nem sei o que fazer com tanto tempo livre, que maravilha.

Eu não sabia qual era a origem de Alain de Botton. Ele me contou que é de família sefaradim, judeus que sairam da Espanha na expulsão de 1492 e se radicaram no Egito, de onde foram novamente expulsos na onda anti-judaica do nacionalismo árabe. A família se estabeleceu em Londres, onde o filósofo vive, com a mulher e dois filhos pequenos, e onde fundou a Escola da Vida (School of LIfe), que oferece cursos populares sobre aplicações práticas da Filosofia. Um dos professores, David Baker, mudou-se para o Brasil, onde abriu com uma prima de Alain, Jackie de Botton, a sucursal brasileira da escola, numa casa em Ipanema. Vale a pena frequentar as aulas, para pensar na vida com um pouco mais de sabedoria – e de vez em quando desligar as notícias.

por Jorge Pontual

As cidades e o poder global

qua, 23/04/14
por Equipe Milênio |

 

 

Benjamin Barber, ser urbano. Essa é a impressão que ele passa. Colocado em um cenário idílico, com passarinhos, barulho de riacho, ele provavelmente fica ansioso para voltar às ruas cheias de Nova York, onde nasceu, entre as sirenes e o caos do tráfego. Em lugar de se afligir, ele se alimenta do stress metropolitano. E quando busca uma sociedade melhor, não se remete a cenário utópico. Imagina isso no meio dos arranha-céus e das avenidas. Apaixonado pelo teatro, prefere mudança de roteiro ou de cenário, mas não de palco. Ele acredita que o mundo se tornou uma maquina ineficiente, rachada por divisões políticas e travada por abismos culturais e desigualdades econômicas. Vê como uma das soluções, um poder municipal exercido de forma pragmática, substituindo o modelo de poderes nacionais ideológicos, definidos pela burocracia e pela distribuição de favores políticos.

Nas ultimas décadas, Barber evoluiu de autor e ativista liberal para o que é hoje, um apóstolo da democracia sustentada por um pacto civil moderno. Ele é otimista, acha não só que a sociedade pode encontrar um modelo mais eficiente, mas acredita que a comunicação aperfeiçoa o ser humano e coletivamente, nós vamos conviver melhor , com menos radicalismo. Como entrevistado, Barber é o equivalente a um vendedor de rua de Nova York. Começa impaciente, sem apostar na transação. Mas quando vê interesse genuíno, investe, mostra o produto. É agradável observar o entusiasmo e a energia. Barber tem setenta e quatro anos, mas não carrega o peso das décadas vividas. Intelectualmente, parece ansioso para viver outro tanto.

 

por Luís Fernando Silva Pinto 

Um diplomata da neurociência

qua, 09/04/14
por Equipe Milênio |
categoria entrevista, Extras

 

 

Cientistas e leigos brasileiros terão a oportunidade de conhecer Nikolas Rose de perto em outubro, quando ele planeja visitar São Leopoldo e Porto Alegre, a convite de neurocientistas gaúchos, para participar de uma conferência sobre filosofia e bioética.

Vão conhecer então um diplomata da neurociência.

Diplomata não porque fique em cima do muro e seja cauteloso com o que diz. Mas porque Rose tenta encontrar um espaço de diálogo e troca de ideias entre os radicais do estudo do cérebro (aqueles que batem firme: “somos nossos neurônios, ponto final”) e outros especialistas do setor que dão peso considerável a outros aspectos, como as experiências de vida, na formação de nossos estados mentais, nossa maneira de ser.

Verdade que são poucos hoje os adeptos da chamada tabula rasa, que atribuem todos os traços do ser humano ao que ele absorve na sociedade ou natureza via experiências reais, educação, impacto do meio-ambiente, sem creditar características de personalidade e comportamento à herança genética. Mas ainda há um grupo que acha exagerada a tendência de muitos neurocientistas em atribuir traços humanos a nossa estrutura biológica, nossa herança evolutiva como espécie, nosso genes.

Quem tenta acompanhar essa discussão via mídia, conferências, debates acadêmicos, já percebeu que as duas facções brigam feio, com particular fúria entre os próprios neurocientistas. Rose mesmo descartou a diplomacia quando conversávamos em seu escritório no King’s College, em Londres e citei um neurocientista defensor da importância maior da herança genética (“não perco mais tempo lendo Steven Pinker”, reagiu).

Rose rejeita Pinker e tripudia ainda mais os que poderíamos chamar de fundamentalistas da neurociência, entre os quais estão alguns profissionais de renome, como o britânico Francis Crick, um dos descobridores, em 1953, da estrutura do DNA, momento chave na abertura do conhecimento sobre a genética e a natureza humana. Por isso, Crick recebeu o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina (junto com o americano John Watson e outro britânico, Maurice Wilkins, este do mesmo King’s College de Rose).

Crick morreu há dez anos e passou os últimos tempos de sua vida dedicado a estudos do cérebro. Um de seus últimos legados foi o controvertido livro The Astonishing Hypothesis (A Hipótese Espantosa), em que defende justamente a tese de que o ser humano é produto da massa gelatinosa de um quilo e meio dentro do crânio. A mente, segundo Crick e outros que endossam suas conclusões, seria apenas a expressão do cérebro, sua personalização. “Somos nosso cérebro”, resumiu Crick.

Para os seguidores dessa linha, o fundamental é conhecer o funcionamento dos 80 a 100 bilhões de neurônios e suas conexões elétricas e químicas que comandam o organismo e, na opinião deles, determinam nosso estado mental. Dão pouca ou nenhuma importância a métodos alternativos de acesso a processos mentais, como a Psicanálise. Expulsam ego, superego e id da discussão, acolhem axônios, dendritos e sinapses. Conceitos como alma ou espírito, então, não colhem mais do que desprezo.

Rose tem um trajetória profissional diferente. Vem das ciências humanas. Escreveu um livro explicando Michel Foucault aos britânicos, admira o psicanalista francês Jacques Lacan. Passou muitos anos em ativismo social e vida acadêmica como sociólogo, até que, em tempos recentes, decidiu pesquisar neurociência. Seguiu em parte os passos de seu irmão mais velho, Stephen, um reconhecido especialista em estudos da memória. Defensor de uma abordagem multidisciplinar da questão, o Rose júnior dirige agora no King’s College um recém-criado Departamento de Ciência Social, Saúde e Medicina.

por Silio Boccanera

Entre o poder público e o privado

qua, 02/04/14
por rodrigo.bodstein |

 

 

No final dos anos setenta, David Rothkopf tinha dois caminhos pela frente: a imprensa ou a política. Ele tinha acabado o mestrado na Universidade de Columbia, uma das melhores escolas de jornalismo dos Estados Unidos e o país, com Jimmy Carter presidente, estava no rumo político que ele prefere: liberal. Confrontado com a escolha, Rothkopf, seguiu a cartilha do over-achiever: optou… por ambas as coisas.
Na década seguinte, ele se tornou um editor de revistas financeiras em Washington. Teve sucesso, fez contatos valiosos e, na administração Clinton, foi nomeado sub-secretário de Comércio, encarregado da balança internacional.

Rothkopf é um intelecto sólido e tem um texto claro, soma valiosa. Ele se sente à vontade no campo de assessoria estratégica, que exige informação de proprietário, contatos de político, discurso de marqueteiro e diplomacia de cardeal. Durante anos, ele usou essas habilidades na Kissinger Associates, uma das mais requisitadas companhias de assessoria de Washington. Hoje, Rothkopf tem a sua própria companhia, a Garten Rothkopf, que analisa tendencias em energia, segurança e mercados para clientes exigentes e dispostos a pagar bem.  Ele não abandonou o jornalismo. É o editor da Foreign Policy Magazine, uma publicação sobre relações internacionais respeitada em Washington, posição dificil de manter, já que a cidade tem centenas de publicações de primeira linha.

Apesar da experiência e da capacidade intelectual que tem, Rothkopf não é um entrevistado dificil, daqueles que demoram para tirar o ego do caminho das respostas. Falando sobre o livro Power Inc., ele se refere ao crescimento do poder empresarial em termos claros, simples, como quem descreve as mudanças climáticas de um período geológico. Há uma certa tranquilidade na conversa, porque Rothkopf nunca perde a confiança na capacidade humana de buscar soluções para o quebra-cabeças complexo que é a sociedade. Mesmo que as soluções sejam necessárias porque o quebra cabeças é bagunçado… pela capacidade humana de bagunçar.

por Luis Fernando Silva Pinto

A desconstrução dos mitos da Internet

qua, 19/03/14
por rodrigo.bodstein |

 

Eu sempre tenho uma queda pelos “contrarians“. Daí me encantei pelo Jaron Lanier, que em dois ótimos livros, You are not a gadget (mal traduzido para Você não é um aplicativo) e Who owns the future, demoliu o oba-oba em torno da Web 2.0, as redes sociais e outros modismos. Achava que a crítica do Jaron era a mais radical que se poderia fazer ao atual modelo de exploração da rede pelos Barões da Nuvem.

Mas meu queixo caiu quando descobri os livros do Evgeny Morozov. Primeiro, The Net Delulsion, the dark side of Internet Freedom, onde ele mostra que, ao contrário de ser automaticamente um instrumento de libertação, a Internet é usada por regimes autoritários para se fortalecer. No segundo, To save everything click here, the folly of technological solutionism, Morozov vai muito mais fundo. Fundamentado nos trabalhos do filósofo da tecnologia Bruno Latour (com quem fiz há muitos anos um ótimo Milênio, infelizmente não disponível na globo.com), Morozov faz com muito humor e análise aguda uma desconstrução dos mitos e lugares-comuns em torno da Internet e seus usos.

Não cabe aqui resumir o livro: recomendo a leitura atenta – é denso e altamente satisfatório. Leitura em inglês, claro, pois, que eu saiba, os livros do Morozov não foram publicados no Brasil – incrível! Pessoalmente ele é intenso, engajado, bem humorado e pronto para entrar numa bate-papo sobre ideias. Um craque. Nascido na Bielorússia, emigrou para a Alemanha e depois para os Estados Unidos. Foi pesquisador em Stanford e agora está em Harvard. E ainda não tem 30 anos!

A entrevista foi gravada na Science House, a agradável casa em Murray Hill mantida por James Jorasch e Rita King, numa townhouse tombada que foi de um dos filhos de Abraham Lincoln. No fundo, atrás de Morozov, um mapa-múndi onde estão assinaladas as cidades (inclusive no Brasil) onde escolas públicas receberam microscópios e kits de estudo de Ciência enviados pela Science House. Um fundo apropriado para a amplidão das ideias do jovem pensador.

 

por Jorge Pontual

Os limites entre Rússia e Estados Unidos

sex, 14/03/14
por rodrigo.bodstein |

 

 

Neste momento delicado para as relações entre Estados Unidos e Rússia, em meio à crise na Ucrânia, Luís Fernando Silva Pinto entrevistou, para o Milênio, Angela Stent, especialista nas relações entre Estados Unidos, Rússia e Europa e diretora do centro para estudos Eurasianos, Russos e do Leste Europeu da Universidade Georgetown.

A crise na Ucrânia colocou as relações entre Rússia e Estados Unidos a níveis de tensão parecidos com os da Guerra Fria. A ocupação militar russa da Crimeia, após uma revolta popular que tomou as ruas de Kiev contra o governo de Viktor Yanukovich por causa do cancelamento de um acordo com a União Europeia, levou os Estados Unidos a ameaçarem os russos com sanções e a serem consideradas retaliações contra os americanos. Enquanto isso, a Ucrânia, peça-chave para a distribuição de gás para a Europa, está à beira da falência e dividida politicamente.

Após a Guerra Fria, a Rússia herdou o exército, a economia e o resultado da disputa geopolítica da antiga União Soviética, menos a proeminência de antes. Entre Brasil, China e África do Sul, ganhou visibilidade, mas deixou de ser o nêmesis dos Estados Unidos. Em um mundo multipolar, multiplicaram-se as disputas econômicas e também os antagonistas. O Irã, a Coreia do Norte e o Paquistão, por exemplo, e organizações terroristas, como a Al-Qaeda, passaram a tirar o sono dos estrategistas norteamericanos. A antiga luta convencional – dos grandes exércitos e por fronteiras – se transformou em um jogo de xadrez com vários tabuleiros em que os jogadores podem ser, ao mesmo tempo, aliados ou competidores, dependendo do tema.

Na visão de Angela Stent, “para a Rússia, a crise na Ucrânia tem dois aspectos: na política externa é a escolha da Ucrânia entre o Ocidente e a Rússia e, no plano doméstico, é a preocupação de que o que acontecer na Ucrânia pode acontecer com a Rússia também.” Além disso, um dos dois portos de águas quentes da Rússia fica na Crimeia – o outro fica na Síria, em Tartus – e correr o risco de perdê-lo pode ser muito negativo para os interesses geopolíticos de Putin.

No conflito sírio, os Estados Unidos tentaram mostrar que possuíam interesses em comum em estabilizar a região, mas os russos concordaram em discordar, principalmente pela insistência americana de incluir grupos islamistas na conversa. E, meses depois, Rússia e China foram contra a posição dos Estados Unidos e dos seus aliados de uma intervenção militar na região e se abstiveram de votar no Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre ajuda humanitária aos sírios.

Em 2008, alguns anos antes, as relações entre os dois países já mostravam sinais de tensão com o conflito na Geórgia. A Rússia interveio para defender a Ossétia do Sul e os Estados Unidos apoiaram a Georgia. No mesmo ano, os russos começaram a cooperação militar com a Venezuela. Depois, o governo de Putin entrou em disputas na Organização Mundial do Comércio, suspendeu as adoções de crianças por norteamericanos e barrou organizações não governamentais na Rússia por causa da entrada em vigor nos Estados Unidos da Lei Magnitsky. Ano passado, Putin ofereceu asilo a Edward Snowden e, com isso, segundo Angela Stent, conseguiu “conscientemente ou não o que a União Soviética nunca conseguiu que é criar essas cisões profundas entre os Estados Unidos e seus aliados e, particularmente, entre Estados Unidos e Alemanha.” Nesse contexto, a Rússia está jogando em várias frentes para conquistar a antiga posição ao lado dos Estados Unidos no topo da geopolítica mundial.

Para compreender os movimentos nesse complexo tabuleiro geopolítico que afeta os rumos do planeta – em meio a uma crise internacional com a ocupação russa da Crimeia – Luís Fernando Silva Pinto foi entrevistar, para o Milênio, Angela Stent. Especialista nas relações entre Estados Unidos, Rússia e Europa, Stent já serviu ao governo americano no Departamento de Estado, foi consultora da OTAN e, hoje, ocupa o cargo de diretora do centro para estudos Eurasianos, Russos e do Leste Europeu e professora de governo e diplomacia da Universidade Georgetown.

por Rodrigo Bodstein

O lado humano do vício

qui, 27/02/14
por rodrigo.bodstein |
categoria debate, Extras, Programas

 

O neuropsiquiatra norteamericano Carl Hart defendeu, em entrevista ao Milênio, a importância de se considerar a dimensão humana do vício e uma transformação na política contra as drogas: descriminalizar sem legalizar.

A razão que leva ao vício é uma questão que ainda não foi completamente explorada. Há um gene escondido em algum trecho do nosso DNA que indica que nos renderemos às drogas? É o contexto social ou a condição psicológica? Independente da resposta, as drogas estão presentes na sociedade e são parte da vida de milhares de pessoas direta ou indiretamente. É um tema que afeta a saúde, a segurança pública e, até mesmo, a política externa dos países.

A proposta da legalização ganhou força nos últimos meses, muito por causa do debate sobre a maconha, mas o assunto acompanha a política desde o início do século. Os Estados Unidos enfrentaram esse desafio com a proibição do álcool na década de 1920. As gangues tomaram conta do pais, a corrupção aumentou e os custos da proibição foram sentidos naquela sociedade. Pouco mais de uma década depois, a lei foi revogada. A máfia se enfraqueceu, a violência foi reduzida, mas continuaram os problemas de abuso e dos efeitos adversos que o consumo do álcool produzem.

Carl Hart, neuropsiquiatra, lembra, em entrevista a Jorge Pontual para o Milênio, que “a relação entre drogas, violência e crime sempre serviu a um objetivo político maior.” Enquanto o álcool foi uma decisão de política doméstica dos Estados Unidos, o ópio, desde o início, foi uma questão internacional. No século XIX, o ópio trazido da Índia pela Companhia Britânica das Índias Orientais começou a ameaçar a economia e a estabilidade do império chinês. O volume de importação estava tão grande que, em 1839, o Imperador determinou o fim do comércio. O Reino Unido não demorou a decretar guerra e duas Guerras do Ópio se seguiram, terminando em 1860. 15 anos depois, os Estados Unidos começaram a ter um problema com a droga. Uma lei surgiu para proibir o fumo do ópio, mas foi dirigida especialmente para os chineses que moravam no país. No início do século XX, ligaram a cocaína aos negros, que ao consumirem a substância supostamente estrupariam as mulheres brancas. Nesse meio-tempo, como Carl Hart cita na entrevista, começou um embargo informal de comerciantes chineses aos produtos norteamericanos. Em uma tentativa de responder a essa questão, os Estados Unidos buscaram realizar um tratado internacional, a Convenção Internacional do Ópio, mas precisavam ter uma lei interna que reforçasse a iniciativa. A conexão entre entorpecentes e crimes hediondos foi feita e foram lançadas as bases para a atual guerra contra as drogas.

Nesse sentido, uma pergunta feita por Inge Fryklund, ex-promotora de Chicago que trabalhou no Afeganistão, no Iraque, na Cisjordânia, no Tadjiquistão e no Kosovo, em artigo para a publicação Foreign Policy in Focus, torna-se essencial: “Qual é o problema que estamos tentando resolver ao tornarmos as drogas ilegais?” e, ainda nesse contexto, o dinheiro que está financiando guerras ao redor do mundo está diminuindo efetivamente o consumo?

As questões ainda estão em aberto, mas, para haver um debate mais profundo sobre o tema, é necessário ir além da polarização entre legalizar ou não. Carl Hart faz uma contribuição importante ao trazer a dimensão humana do vício. O neuropsiquiatra defende que há muitos níveis na relação que as pessoas têm com as drogas – incluindo as possíveis psicopatias presentes já antes do consumo – e coloca uma outra opção na mesa: descriminalizar as drogas sem legalizá-las. Isso significa que a venda continuaria proibida, mas quem estivesse em posse de entorpecentes – o usuário – poderia ser encaminhado para algum tipo de ajuda ou orientação em vez de ser fichado criminalmente, aumentando as possibilidades destas pessoas contribuírem para a sociedade em que vivem.

por Rodrigo Bodstein

 

 

 

 

 

O anarquismo e a democracia atual

qui, 20/02/14
por Equipe Milênio |

 

 

Os frequentadores da pitoresca Portobello Road, em Londres, com suas barraquinhas que vendem bugingangas e pseudo-antiguidades a turistas desavisados, talvez não se surpreendessem de saber que ali vive um anarquista. A casa que David Graber compartilha com vários companheiros de militância radical não ganharia exatamente um prêmio de decoração da Casa & Jardim, encaixando-se mais no estilo que se poderia esperar de uma república de estudantes. Ainda assim, conseguimos encontrar um cantinho menos caótico para gravar nossa conversa (ah, como a câmera engana…), que no mínimo pode ser caracterizada como “pouco ortodoxa“.

Isso porque as ideias de Graeber pouco têm de tradicionais e acadêmicas, como talvez se pudesse esperar de um professor de Antropologia da conceituada London School of Economics, onde ele dá aulas e orienta teses de mestrado e doutorado. Nascido e educado nos Estados Unidos, foi professor da Universidade de Yale, onde seu radicalismo causou desconforto suficiente para que o afastassem. Surgiu daí o que ele considera uma “lista negra” não oficial, mas capaz de impedir sua contratação por outras universidades americanas. Foi acolhido então pelo Goldsmith College de Londres e, a partir deste ano, transferiu-se para a LSE.

Graeber é um radical, na medida em que propõe virar a sociedade de cabeça para baixo, por meio de uma revolução que acabe com o sistema capitalista (“não vai durar muito mais tempo”, ele insiste) e adote princípios anarquistas: sem governo e sem estado. O que Graeber oferece de interessante para quem acompanha as entrevistas do Milênio é justamente o confronto de ideias, a defesa de um radicalismo pouco frequente nos debates políticos tradicionais. A postura dele não se limita a um plano intelectual e distante, mas se compromete com ação, demonstrada em seu envolvimento com manifestações de rua e ativismo com grupos militantes.

por Silio Boccanera



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