Em 2010, o Espírito Santo foi denunciado na Organização das Nações Unidas (ONU) por graves problemas no sistema carcerário. Presos ficavam em contêineres de ferro a temperaturas desumanas, houve esquartejamentos e tortura. Mudanças estruturais permitiram que, anos depois, nenhuma morte fosse registrada dentro dos presídios.
As medidas para tirar o sistema estadual da calamidade são reconhecidas por juristas e especialistas em segurança pública, mas eles avaliam que a situação está longe de ser a ideal. Apesar de ter uma das menores taxas de superlotação do país (41,1%), hoje são quase 6 mil presos além da capacidade.
Muitos criticam o encarceramento excessivo e dizem que ainda há registros de violência dentro das cadeias capixabas, e uma série de violações de direitos que aumentam a tensão. "Nenhum tipo de superlotação é ideal, nem que seja pequena. A superlotação é mãe de todos os problemas", diz a juíza Gisele Souza de Oliveira, coordenadora das Varas Criminais de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Espírito Santo.
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Mesmo sem ter resolvido todos os seus problemas, o Espírito Santo tem aparecido como um modelo a ser seguido por estados que enfrentam rebeliões, massacres, guerras de facções e fugas em massa. Desde o início do ano, Amazonas e Roraima vivem uma das suas piores crises penitenciárias.
O que os capixabas têm feito para combater esse cenário é investir em trabalho, educação e garantia de direitos básicos dentro dos presídios, de acordo com a Secretaria Estadual de Justiça (Sejus).
Por exemplo, em 2005, havia 80 detentos matriculados na educação formal. Já em 2016, esse número chegou a 3,5 mil. Em 2008, havia 639 internos trabalhando. E, em 2016, houve um aumento de 300% neste número, com o registro de 2,6 mil presos em postos de trabalho.
Outra medida que contribuiu para as melhorias foram as audiências de custódia, que colocaram presos em flagrante na frente de um juiz em até 24 horas. Nos 23 municípios onde o procedimento é seguido, foram feitas 9.268 audiências que permitiram que 5.342 pessoas de baixa periculosidade respondessem ao processo judicial em liberdade, o que representa 46,7%. Além disso, nenhum preso ficou sem assistência jurídica.
Para o secretário de Justiça, Walace Tarcísio Pontes, a mão de obra especializada dentro dos presídios também é fundamental para o funcionamento do sistema. “Nós não temos mais carcereiros, temos agentes penitenciários. É por causa deles e pelos investimentos que o sistema prisional capixaba caminha em boa direção”, afirmou.
Construção de presídios
Há sete anos, um relatório apresentado na ONU dizia que várias pessoas tinham sido mortas e esquartejadas nas celas do estado entre 2006 e 2010 e que pelo menos 500 presos eram mantidos em contêineres onde a temperatura poderia chegar a 50°C. A superlotação de delegacias em Vila Velha também foi relatada.
Segundo o governo estadual, a mudança nos presídios foi possível após o investimento de R$ 453,7 milhões para melhorias em 26 unidades e construção de novas cadeias, entre 2003 e 2010. Só em 2009, foram entregues 13 presídios. Assim, presos que ficavam nas celas metálicas puderam ir para outros locais.
Em 2015, a taxa de superlotação no estado era de 27,9%. “Há um déficit de vagas. Estamos trabalhando em construção de novas unidades", afirma o secretário de Justiça. Serão feitas licitações para a construção de um presídio em Linhares, um em Cachoeiro de Itapemirim e outro em local ainda a ser definido, que será feito com verba federal.
A ONG Conectas, que participou da apresentação da denúncia na ONU em 2010, acredita que a construção de novos presídios é uma medida emergencial, mas não é suficiente para resolver os problemas dos cárceres brasileiros.
“Houve denúncias muito sérias sobre o Espírito Santo em Genebra. A resposta que o estado dá é a construção de novas unidades, o que consegue acabar com a superlotação em algum tempo. Essa situação é como apagar um incêndio. A taxa de encarceramento continua alta e crescente. A tendência é isso piorar. Há uma falsa ilusão de solução”, afirma a advogada da Conectas, Vivian Calderoni.
Para o doutor em direito penal e criminologia Thiago Fabris, investir na construção de presídios é como aumentar a dose de um remédio que não é eficaz.
“A gente vive um processo de encarceramento maciço, justamente de uma população pobre. Como a gente não consegue utilizar a política pública para reprimir a miséria, usa o sistema penal. O que aconteceu no Amazonas aconteceu aqui [no Espírito Santo]. Não houve um massacre, mas houve rebeliões e tortura. A gente teve uma melhoria estrutural, mas continua prendendo muito e prendendo mal”, diz Fabris.
O pesquisador coloca mudanças na legislação como alternativa à construção de presídios. “A regulamentação das drogas seria um passo importante contra o encarceramento. Quase 200 mil pessoas sairiam do sistema. Perdoar presos por crimes patrimoniais, sem violência, também é uma possibilidade. Se a gente não mudar a mentalidade, isso vai se voltar contra nós”, afirma.
Novas denúncias
A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-ES) está preparando um relatório com denúncias de violações de direitos em presídios do estado.
A presidente da comissão OAB-ES, Verônica Bezerra, avalia positivamente o balanço da Sejus, de que não houve mortes em presídios do estado em 2015 e 2016. Mas afirma que ainda há violações graves. “A gente, da comissão, diariamente recebe denúncia de maus-tratos, de tortura, de superlotação. Nesta semana mesmo chegaram duas denúncias de maus-tratos, espancamentos. O sistema não está às mil maravilhas. A gente não pode comemorar. Não pode morrer ninguém, não tem que morrer ninguém”.
Verônica lembra ainda que houve uma morte de um jovem de 20 anos em dezembro de 2016. "A gente teve uma morte no sistema socioeducativo, mas que de certa forma se iguala. Ele chegou e, em algumas horas, ele foi morto."
O presidente do Sindicato dos Agentes Penitenciários do Espírito Santo, Sostenes Araújo, afirma que ainda há falhas na segurança dos presídios.
“Devido ao baixo efetivo, a segurança fica extremamente comprometida, a exemplo das torres e muralhas, que em sua maioria ficam desativadas propiciando fugas ou até mesmo invasão; e as escoltas externas deveriam respeitar uma proporção de dois inspetores por preso, mas chegamos a realizar escoltas com quatro presos ou mais para apenas dois inspetores, colocando em risco a vida dos servidores, presos e a sociedade ao entorno”, diz.
O sindicato fala que os inspetores foram treinados, mas o processo de reciclagem periódica é deficiente por falta de investimentos do governo. “Chegamos ao cúmulo de ter servidores temporários sendo nomeados e assumindo suas funções sem sequer passarem por um treinamento e nunca terem pisado em uma cadeia”, afirma Araújo.
Medidas de ressocialização
Para Thiago Fabris, garantir saúde, educação e trabalho dentro dos presídios é uma forma de reduzir os danos do sistema penitenciário, mas não significa ressocializar. Enquanto existirem prisões, haverá violência dentro delas, segundo o pesquisador.
“A tortura e a violência são estruturais. A tortura é um ingrediente do sistema penitenciário, faz parte do funcionamento do regime fechado. As facções criminosas nasceram dentro dos presídios, não fora. Foram os presídios brasileiros que projetaram esse monstro. A gente quer mudar esse quadro construindo mais prisões, para alimentar o monstro”.
Verônica Bezerra, da OAB-ES, acredita que quando o encarceramento é necessário os detentos precisam ter condições de ressocialização. “Aquelas pessoas que precisam ficar, por conta de sua periculosidade, têm que ter todo o atendimento especial para que possam retornar ao seio da sociedade, ao núcleo familiar, à sua vida. As pessoas não são descartáveis. Você não pode transformar a pessoa numa coisa.”
Mais direitos
A juíza Gisele Souza de Oliveira, do TJ-ES, afirma que o sistema prisional capixaba foi impactado por dois principais projetos do Judiciário: as audiências de custódia e o projeto Cidadania nos Presídios.
Atualmente, essas audiências são realizadas em 23 municípios do estado. Nelas, o juiz se encontra com o acusado em até 48h, havendo chance de evitar o encarceramento. O dado mais atualizado é da realização de mais de 9 mil audiências. O próximo passo é a expansão do projeto para a região Norte.
O outro projeto, proposto pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), diz respeito a uma modificação na metodologia das Varas de Execução Penal. “Foi feito um trabalho maciço. Isso acabou gerando um número grande de direitos aos presos, fazendo com que o sistema pudesse respirar um pouco melhor.”
O presidente da Associação dos investigadores da Polícia Civil do Espírito Santo, Júnior Fialho, conta que depois de muitos protestos e reivindicações, no final do governo de Paulo Hartung, com continuidade no governo de Casagrande, os presos deixaram de ficar nas delegacias, onde havia superlotação e alguns chegavam a cumprir toda a pena.
“Antigamente, delegacias nossas, onde cabiam 30 presos, havia 300. Os policiais ficavam tomando conta dos presos. Hoje a polícia pode fazer o papel de polícia. Antes a gente ficava 24h vigiando presos. Havia rebeliões todos os dias, era um local completamente insalubre, havia fugas. O que eu sempre disse é que quem prende jamais vai servir para ressocializar. O quadro hoje é outro”, diz.