Mergulho no Victory 8B. — Foto: Acqua Sub
Com potencial turístico já conhecido devido às mais de 50 praias que possui, o balneário de Guarapari, no Litoral do Espírito Santo, esconde um tesouro submerso, que convida mergulhadores do Brasil e do mundo. Eleita a capital nacional da biodiversidade marinha, a cidade tem quatro navios naufragados em sua costa, que abrigam animais e plantas marinhas e preservam a história de mercantes e cargueiros.
Segundo especialistas, o município abriga a maior biodiversidade marinha devido à junção de alguns fatores, como a localização da cidade, a combinação de temperaturas das águas e a existência de sedimentos diversos, como ilhas rochas cristalinas. Com isso, os quatro navios naufragados na costa de Guarapari, se tornaram um paraíso à parte quando o assunto é vida marinha.
Entre os navios naufragados está o Victory 8B, um cargueiro afundado de forma planejada para criar um recife artificial. Com mais de 89 metros de comprimento, o navio atrai mergulhadores experientes, que exploram seus porões e corredores, repletos de vida marinha.
Navios naufragados viram point de mergulho em Guarapari
O instrutor de mergulho em naufrágios Eduardo Serra já realizou mais de 800 mergulhos em geral e estima que pelo menos um quarto deles tenha sido em Guarapari.
Para ele, o afundamento do Victory 8B e as suas mais de três toneladas de material, em 2003, deu certo, e onde havia apenas um banco de areia, hoje são vistos muitos cardumes e vida marinha.
“Deu muito certo, um recife enorme, 89 metros, um comprimento muito bom, com muita vida, isso torna o mergulho especial. Você tem as penetrações por dentro do naufrágio, ali dentro tem muita vida. Aqui você tem opções para todo o tipo, você tem um bom mergulho noturno, tem naufrágios, mergulhos de ilha, são muitas opções para se mergulhar, torna completo”, avaliou.
Vejas cenas exclusivas do Globo Repórter gravado no litoral do ES
Outra estrutura que se destaca é a do Bellucia, navio a vapor que encalhou no início do século XX e se tornou um dos pontos de mergulho mais populares da região.
O mergulhador Ivan Costa Santos é um dos mais experientes do Espírito Santo, com uma média de 150 mergulhos por ano, só em Guarapari. É responsável por uma operadora de turismo marinho, dá cursos de mergulho técnico e leva pessoas para mergulhar pelo Brasil.
Cardumes vistos junto ao naufrágio Índia. — Foto: Acqua Sub
Ivan explicou que a visibilidade dos mergulhos é sazonal na costa de Guarapari, como ocorre no litoral brasileiro de forma geral.
''Começa a melhorar nos meses de outubro e novembro, e vai até o início de maio, mas temos janelas de tempo boa em outros períodos'', explicou.
Em nenhuma das quatro embarcações é possível ter acesso para mergulho de batismo, com curso básico ou iniciante, que vão até 18 metros de profundidade. A prática é apenas para pessoas com nível avançado.
Combinação de climas e ambientes explicam biodiversidade
Na foto, cardume próximo ao Oceano I. — Foto: Acqua Sub
O oceanógrafo Paulo Rodrigues explicou que a cidade está localizada em uma zona de transição biogeográfica, com espécies de diferentes regiões convivendo no mesmo ambiente, criando um ecossistema diversificado e rico.
“O posicionamento do Espírito Santo, em geral, é propício para o desenvolvimento de vida marinha por vários fatores. Temos a água que vem da Corrente do Brasil, que desce aquecendo a costa; e também a ressurgência do Cabo Frio que vem do Sul, e traz águas geladas. É como se a gente tivesse dois climas. Só por isso já teríamos a possibilidade de ter espécies de águas tropicais e subtropicais, ou seja, a gente dobra as condições adequadas para dois tipos de clima”, pontuou o oceanógrafo, Paulo Rodrigues.
Mas a combinação das temperaturas das águas não é o único fator. De acordo com Paulo, a existência tanto de corais como de ilhas, proporciona a existência de sedimentos diversos.
“A gente tem a Plataforma dos Abrolhos, no Norte do estado, com uma grande diversidade de corais, que criam peixes, biodiversidade até de bichos maiores, adultos, com grande potencial de reprodução, que se espalham nas águas quentes mais ao Sul, chegando à Vitória e Guarapari. É como se fosse a transição, no Norte, praias grandes, recifes, fundos de águas calcárias, e ao Sul, a partir de Vitória, quando começa a ter ilhas de rochas cristalinas, como granitos”.
Capital Nacional da Biodiversidade Marinha
Badejo se abriga na estrutura do navio Índia. — Foto: Acqua Sub
No dia 17 de outubro, a Presidência da República sancionou o Projeto de Lei (PL 4.258/2021) que confere o título de Capital Nacional da Biodiversidade Marinha ao município de Guarapari. O texto é de autoria da ex-deputada capixaba Soraya Manato, e foi aprovado na Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado Federal, em setembro.
Além de dar visibilidade para a biodiversidade de Guarapari, o PL argumenta que o reconhecimento legal é essencial para promover a conservação e uso sustentável dos recursos naturais, além de incentivar pesquisas científicas e melhorar a proteção das espécies ameaçadas na região.
Arquipélago das Três Ilhas, em Guarapari (ES) — Foto: Samy Ferreira | TV Gazeta
"A cidade de Guarapari, localizada no nosso Espírito Santo, é uma das maiores referências turísticas no país, por possuir um rico patrimônio natural. Com esse título, trazemos um marco para a preservação e valorização do nosso meio ambiente”, destacou o senador Fabiano Contarato (PT-ES), vice-presidente da CMA, que apresentou relatório favorável ao projeto.
Para Paulo Rodrigues, o Espírito Santo ainda está 'engatinhando' na questão do turismo marinho, mas é importante dar atenção a essa riqueza.
"Não é só a praia, na frente tem a biodiversidade marinha e com potencial de atrair turistas. Um turista que é interessante, que quer conservar, conhecer a vida marinha, gerir a biodiversidade. Um Projeto de Lei como esse ajuda a consideração dessa biodiversidade, ajuda as pesquisas e a criação um ambiente favorável para o ecoturismo", avaliou.
Necessidade de preservação
Na foto, mergulhador próximo ao Oceano I. — Foto: Acqua Sub
De acordo com Ivan, quando se mergulha em Guarapari, a abundância da vida marinha é bem perceptível em relação à outros pontos do Brasil, mas, na sua avaliação, não existe a atenção devida para a questão da preservação desse ambiente, e a cultura da caça submarina e pesca de rede é muito forte na região.
"O pescador fala que seleciona, mas não faz, mata matrizes reprodutoras. O aprendiz mata para treinar. Encontramos redes de espera com facilidade. [...] Já foi feito um levantamento das espécies marinhas da região, em 2021, para sensibilizar os órgãos governamentais para que possa ser fomentada a ideia da criação de um parque marinho. Precisa de fiscalização, fomento, educação ambiental, fontes alternativas para o pescador, envolver ele nesse processo, capacitar para serem guias locais de snorkel, para ver a parte de superfície nas Três Ilhas. Cuidar do ambiente e promover o turismo”, relatou.
Para Ivan, a aprovação do projeto de lei é bem-vinda e vem para trazer mais visibilidade para a questão ambiental e o potencial turístico de Guarapari.
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No entendimento do mergulhador, o mergulho contemplativo de cilindro é um potente atrativo turístico, traz retornos financeiros para a região - desde à cadeia relacionada a atividade de mergulho como na movimentação de hotéis e pontos turísticos da cidade - e poderia ser mais explorado, como acontece em outros estados e locais do mundo, por exemplo.
“Afundamentos planejados já acontecem na Bahia, em Pernambuco, Recife é a cidade campeã em afundar embarcações no Brasil, tem apoio da universidade federal, doação de embarcações velhas por empresas. São mais de dez embarcações afundadas”.
Segundo Ivan, o processo de agregar vida marinha em uma estrutura afundada, em um recife artificial, é rápido.
“Acompanhei todo o processo do Victory 8B, desde o início quando estava lisinho, até ficar cheio de vida marinha agregada. Mais ou menos um mês depois já tem um monte de peixinho em volta, foi muito rápido, deixou a gente impressionado. Isso varia dependendo do local, mas aqui foi muito rápido”, lembrou.
“Baú do tempo”
Mergulhadores fazem foto mostrando a carcaça que indica o nome do Oceano I. — Foto: Acqua Sub
De acordo com os instrutores de mergulho em naufrágios, quando uma embarcação é afundada é conveniente deixar os sinais históricos que a identifiquem.
“É preciso tirar os poluentes, os contaminantes, mas deixa sinais é legal, deixa o mergulho mais interessante, o naufrágio é um baú do tempo, fica aquele mistério, o mergulhador está buscando história também. No Bellucia, por exemplo, é possível ver caldeiras da época e chaminés”, contou Ivan.
🚢 Saiba mais sobre os navios naufragados no litoral de Guarapari:
- Bellucia
Navio inglês de 102 metros de comprimento, 12,8 metros de boca e 7,5 metros de calado. Saiu do sul do Brasil com destino a New Orleans carregado com café, e afundou em 1903, após colidir com a baixa próxima às Ilhas Rasas em Guarapari devido a problemas técnicos.
Ficou encalhado nesta baixa por mais de 24 horas até se partir em duas partes. A popa ficou entre a baixa e a Rasa de Terra e a proa ficou na parte de fora.
Já foi eleito o “Melhor naufrágio do Brasil” por uma revista especializada, é considerado um dos melhores pontos de mergulho da região, devido ao visual, além da abundante vida marinha. No local, é possível avistar cardumes, além de hélices, caldeiras e vários compartimentos do navio.
O navio está a 27 metros de profundidade e para mergulhar no local é preciso ter uma certificação de nível avançado. A visibilidade é de 2 a 20 metros, e a melhor época do ano para a atividade é de novembro a abril.
- Victory 8B
Navio grego apreendido no Espírito Santo por oferecer riscos à navegação, além de problemas de impostos e multas não pagas. Em 1997, depois de 18 meses de espera e término de combustível, água e comida, a tripulação de 22 homens pediu a extradição e abandonou o navio.
Foi afundado em julho de 2003, entre as Ilhas Rasas e Ilha Escalvada, de forma planejada para a indústria do turismo, cumprindo todos os protocolos de estudo de impacto e limpeza da época. Ainda hoje, é considerado o maior naufrágio planejado da América Latina.
O navio está a 35 metros de profundidade e para mergulhar no local é preciso ter uma certificação de nível avançado. A visibilidade é de 2 a 20 metros, e a melhor época do ano para a atividade é de novembro a abril.
Confira imagens internas do navio Victory 8B, quando passou pelo processo de limpeza e retirada de resíduos para que pudesse ser afundado, em 2003:
Confira imagens do navio Victory 8B, antes de ser afundado na costa de Guarapari - Imagens: Carlos Palito
- Oceano I
Pequeno rebocador afundado acidentalmente em novembro de 2020, nas proximidades da ilha Escalvada. Um ano depois, foi encontrado por mergulhadores, liderados por Ivan Costa Santos. Ponto para observação de cardumes.
O navio está a 27,5 metros de profundidade e para mergulhar no local é preciso ter uma certificação de nível avançado. A visibilidade é de 5 a 20 metros, e a melhor época do ano para a atividade é de setembro a maio.
- Índia
O navio está a 52 metros de profundidade, para mergulhar no local é preciso ter uma certificação Tec 65, ou seja, pode ser feito apenas por mergulhadores técnicos. Por estar a mais de 20 milhas do litoral, a visibilidade é de 15 a 40 metros, e a região é boa para a prática durante todo o ano.
A identidade do Índia é desconhecida, assim como quando ele afundou e devido a quais circunstâncias. Pesquisadores não sabem nem exatamente qual tipo de embarcação ele foi, entende-se apenas que é antiga, devido a suas lanternas de navegação a óleo encontradas.
Um sino com o nome ‘Índia’ foi retirado da embarcação, e acabou apelidando a estrutura.
Sem previsão de novos navios afundados para turismo
Carcaça do navio Bellucia. — Foto: Acqua Sub
Depois que uma embarcação afunda, aparecem, primeiramente, os pequenos cardumes que se alojam dentro das áreas escuras do navio para se proteger. Com o tempo, eles atraem os maiores para caçar. Na sequência, começa a agregar vida marinha de plânctons, crustáceos, larvas, a vida incrustante.
“Para alguns pesquisadores e cientistas, um aspecto negativo dos afundamentos é que a estrutura submarina vira ‘atrator’, local de pesca, o pescador pega mais facilmente peixes porque sabe que está tudo concentrado ali, então tem haver proteção desse naufrágio para não haver uma ação predatória”, pontuou Ivan.
Um segundo aspecto negativo levantado é que hoje no Brasil existe um aumento de espécies invasoras encontradas no ambiente, como o coral sol, que também são atraídas por esses recifes artificiais.
“Eu acredito que pode ser muito bem estudado, para que seja utilizado com materiais que são adequados, temos rochas que poderiam virar recifes, ao invés de metal de navio se for o caso. Fazer em locais que não vão concorrer com a biodiversidade local, de maneira controlada”, avaliou Paulo.
Em 2003, durante o processo de preparo e afundamento do Victory 8B, as secretarias de estado de Meio Ambiente e de Turismo, encamparam o projeto de afundamento de navios na costa do Espírito Santo, chamado de Projeto de Recifes Artificiais Marinhos (RAM).
O Victory 8B foi afundado em julho e, havia a promessa de que, até o final desse mesmo ano, outros três navios teriam o mesmo destino, também de forma planejada, cumprindo protocolos de estudo de impacto e limpeza, para a indústria do turismo.
Mergulhador na parte interna do Victory 8B. — Foto: Acqua Sub
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O projeto, entretanto, foi abandonado, e nenhum outro navio foi afundado com essa finalidade desde então.
Procurado pelo g1, o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) informou que atualmente, há apenas o Victory B afundado no litoral de Guarapari com o objetivo de atender o turismo. Não há, por parte do governo do estado, qualquer previsão de afundamento de mais nenhum navio no litoral capixaba.