As áreas de saúde e educação podem deixar de receber até R$ 504 bilhões em nove anos, entre 2025 e 2033, caso as regras atuais para o piso (valor mínimo) nessas áreas sejam alteradas, estimou a Secretaria do Tesouro Nacional.
O cálculo, que considera simulações feitas pelo órgão, consta no relatório de projeções fiscais, divulgado na semana retrasada.
Essa mudança das regras dos gastos mínimos em saúde e educação já foi defendida pelo próprio Tesouro Nacional, com o objetivo de evitar, no futuro, uma compressão dos chamados "gastos livres" dos demais ministérios - problema do arcabouço fiscal já relatado pelo g1.
O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, informou em abril de 2023 que seria encaminhada, no segundo semestre do ano passado, uma proposta de emenda à Constituição (PEC) para alterar o formato de correção do piso (valor mínimo) dos gastos com saúde e educação.
Até o momento, porém, isso ainda não foi feito.
Sem limitação de outras despesas obrigatórias, a estimativa do órgão é que as despesas livres dos demais ministérios (aquelas que não são obrigatórias) não terão mais espaço a partir de 2030.
- Economistas já consultados pelo g1, porém, apontaram que há outras alternativas em cortes de gastos que não sejam necessariamente em saúde e educação.
- Eles citaram uma reforma administrativa, uma reforma previdenciária, a consolidação de programas sociais e mudanças no abono salarial, entre outras possibilidades.
- O governo tem dito que vai propor revisão de gastos públicos, mas até o momento não indicou outras propostas que não fossem a limitação de despesas em saúde e educação.
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Entenda os pisos de saúde e educação
Desde o início de 2024, foram retomadas as regras anteriores ao teto de gastos (mecanismo aprovado em 2017, que vigorou até o ano passado) para o piso (despesas mínimas) em saúde e educação - que voltou a ser vinculado à arrecadação federal.
Com isso, os gastos em saúde voltaram ser de, ao menos, 15% da receita corrente líquida e os de educação, de 18% da receita líquida de impostos.
- Entre 2017 e 2023, com o teto de gastos, os pisos foram corrigidos apenas pela inflação do ano anterior - o que gerou perda de mais de R$ 50 bilhões para essas áreas.
- Com o retorno dos pisos mínimos, em 2024, que vigoravam antes do teto de gastos, a saúde foi contemplada com R$ 60 bilhões a mais e a Educação com outros R$ 33 bilhões.
Cálculos do Tesouro Nacional
De acordo com os cálculos divulgados pelo Tesouro Nacional, a mudança das regras atuais para os pisos em saúde e educação poderia gerar uma perda (recursos que não seriam mais "carimbados" para essas áreas) de R$ 190 bilhões a R$ 504 bilhões entre 2025 e 2033 -- dependendo do novo formato que for adotado.
O órgão fez essas estimativas com base em três possibilidades. Que os pisos em saúde e educação passem a ser corrigidos:
- pelo o limite de despesa do arcabouço fiscal (de até 2,5% ao ano acima da inflação);
- pelo crescimento do PIB real per capita do ano anterior;
- pelo crescimento populacional do ano anterior.
Veja abaixo o "espaço adicional" que seria aberto para gastos livres dos ministérios, ano a ano, com consequente perda de recursos que seriam necessariamente destinados a saúde e educação, de acordo com as estimativas do Tesouro Nacional.
Estudo da Secretaria do Tesouro Nacional — Foto: Reprodução do relatório de Projeções Fiscais de março de 2024
"Esses efeitos são importantes para reforçar a perenidade do Regime Fiscal Sustentável [arcabouço fiscal] no médio e longo prazo, uma vez que são os recursos projetados como 'demais discricionárias' que estão disponíveis para implementação de novos projetos governamentais não obrigatórios e que visam atender às necessidades da população em momentos específicos do tempo", avaliou o Tesouro Nacional.
Especialista comenta
De acordo com Élida Graziane, professora da FGV e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, não seria adequado reduzir os pisos em saúde e educação "porque eles atendem aos serviços públicos mais essenciais para a população, onde há grande demanda reprimida pela expansão da ação governamental".
A especialista citou exemplos:
- Na educação, o déficit de vagas em creches, a baixa oferta de vagas em horário integral na educação básica, a falta de cumprimento do piso do magistério pela maioria dos Estados e Municípios e o inadimplemento de 90% das metas e estratégias do Plano Nacional da Educação.
- Na saúde, a demanda reprimida é ainda mais notável pelo tempo de espera por procedimentos eletivos e pela judicialização em busca de medicamentos e procedimentos mais atualizados. A própria incorporação universal de vacinas (vide o caso recente da vacina da dengue) é relativamente lenta, haja vista a restrição de recursos para seu custeio.
"Não há como reduzir tais políticas públicas, sem comprometer ainda mais o acesso da população ao SUS e à educação básica, em afronta a direitos que, por serem tão recorrentemente negados e/ou adiados, têm sido cada vez mais judicializados", declarou Élida Graziane, professora da FGV e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.
A alternativa à uma eventual "revisão reducionista" de gastos em saúde e educação, segundo ela, seria sua qualificação para que fossem efetivamente cumpridos os planos setoriais.
"Se os pisos em saúde e educação fossem materialmente aderentes aos planos sanitário e educacional, visando ao cumprimento tempestivo e pleno das suas metas, o foco não seria a redução imediata dos gastos, mas a sua qualidade, mitigando a alocação balcanizada das emendas parlamentares desatentas a tais planos setoriais e os desvios que ocorrem durante a execução orçamentária", concluiu.
O que diz o Tesouro Nacional
O g1 entrou em contato com o Tesouro Nacional e perguntou se a equipe econômica irá encaminhar, de fato, proposta ao Congresso para mudar os atuais formatos de pisos em saúde e educação, e se há possibilidade de utilização das simulações do estudo divulgado na semana retrasada.
O órgão respondeu que os questionamentos "fogem à discussão técnica ilustrada no RPF [relatório], já que tratam de decisões políticas que envolvem questões de conveniência e oportunidade sobre a alteração de regras vigentes".
Confirmou, entretanto, que os exercícios ilustrados no relatório "mostram critérios alternativos de vinculação dos mínimos com saúde e educação que trariam maior disponibilidade de recursos para uso em despesas discricionárias [livres dos ministérios], as quais pressupõem maior liberdade de alocação pelo Estado".
"Esses recursos adicionais poderiam ser alocados em saúde e educação também, de acordo com a prioridade social de cada momento. Assim, não se pode afirmar que 'saúde e a educação deixariam de receber esses mesmos R$ 500 bilhões nos nove anos da estimativa'", acrescentou o Tesouro Nacional.
Desta forma, o que o Tesouro explicou é que, mesmo que esses recursos deixem de ser destinados necessariamente à saúde e à educação com a eventual mudança de regras, defendida pela equipe econômica do governo Lula, decisões políticas do governo e do Congresso Nacional poderiam, posteriormente, direcionar novamente os valores para estas áreas "de acordo com a prioridade social de cada momento".