Violência doméstica no campo: a saga de mulheres para denunciar agressões no meio rural
Horas para chegar até hospitais, delegacias e serviços de assistência social. Medo de denunciar e não ser acolhida. Isolamento. Falta de recursos financeiros.
Esses são alguns obstáculos que mulheres de áreas rurais e de floresta ainda enfrentam para conseguir romper com a violência no ambiente doméstico e familiar.
O crime passou a ser punido no Brasil em 2006, a partir da implementação da Lei Maria da Penha. Mas vítimas e pesquisadoras entrevistadas pelo g1 afirmam que, de lá para cá, pouca estrutura foi criada por órgãos públicos para levar suporte a moradoras do interior do país.
Também faltam dados sobre o assunto. Levantamento exclusivo do g1 mostra que menos da metade dos estados brasileiros especificam, no Boletim de Ocorrência (BO), que os crimes de violência doméstica ocorreram em uma zona rural.
Nos 12 estados onde há essa especificação, mais de 30 mil denúncias de mulheres foram registradas em 2022 (saiba mais no final da reportagem).
A seguir, três vítimas moradoras de áreas rurais relatam como foi viver com os seus agressores durante anos em regiões isoladas, sem nenhuma ajuda, e as dificuldades para romper relações e conseguir denunciar.
Ivany “Foram 16 anos acordando e dormindo sendo agredida."
Foto: Arte g1
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Ivany Schultz Reichardt, moradora de Teófilo Otoni (MG), passou boa parte de sua vida em estado de violência. Primeiro, por causa de seu esposo. Depois, por causa do irmão. Ela estava grávida quando sofreu a primeira agressão do ex-marido, no final dos anos 80.
“Ele correu atrás de mim e eu fui por um rio. Quando entrei no rio, minha perna não alcançou e eu caí de cabeça pra baixo, e ele ficou em cima de mim me espancando”, lembra.
As agressões tiveram início quando o marido começou a beber. “Eu não tinha para quem pedir ajuda. Não tinha vizinho e meus pais moravam longe”.
Os dois trabalhavam na roça, como empregados em fazendas da região. Mas era o esposo quem ficava com todo o dinheiro. Ela chegou a denunciá-lo algumas vezes. “Mas a polícia soltava ele na estrada. Ele voltava”.
Em um dos episódios mais dramáticos, o ex-marido a agrediu com uma enxada. O golpe chegou a afundar a cabeça do filho recém-nascido que Ivany segurava nos braços.
A partir daquele momento foram mais de 10 horas de terror até ela conseguir ajuda. O marido a trancou no quarto com medo de ser descoberto, mas Ivany conseguiu fugir pela janela com o filho.
Com a criança ferida, Ivany pediu carona a um caminhão e viajou 1h até o Hospital de São Bento, no centro de Novo Cruzeiro, localizado a 35 km de sua comunidade.
Chegando lá, a equipe médica não tinha especialização craniana e nem ambulância para transferi-los ao hospital mais próximo, na cidade de Teófilo Otoni.
Ivany teve que esperar até o dia seguinte pelo ônibus que ia para a cidade vizinha, onde estava localizado o Hospital São Lucas, que tinha a especialidade em cirurgia craniana.
“Passei a noite velando o meu filho”, lembra. De manhã, ela finalmente seguiu viagem e foram mais 3 horas de espera. “Quando eu cheguei, meu filho estava com o rostinho todo azul, mas respirava”.
O filho de Ivany conseguiu ser operado e hoje, com mais de 30 anos, vive sem sequelas. Mas ela só rompeu o casamento 16 anos após este episódio. O ex-marido morreu há alguns anos.
“Pensei que eu estava livre, mas era só no pensamento, porque eu tinha um irmão muito agressivo também. Ele me ameaçava com facão, me pisoteava com cavalo”.
Em 2018, Ivany ganhou forças para denunciar o irmão, uma decisão que contrariou toda a sua família. Isso aconteceu graças a um projeto criado por uma policial militar, chamado Mulher Livre de Violência (MLV), que parou na pandemia, e está retomando, aos poucos, as atividades.
A iniciativa leva informações sobre a Lei Maria da Penha a mulheres rurais, com o objetivo de prevenir e combater casos como o de Ivany.
“Quando tinha encontro era uma festa. Mulheres que moravam distante saíam cedinho pra poder participar. Chegavam cheia de lama, empoeiradas, de bicicleta, mas iam, porque eram mulheres iguais mim, que tinham medo”, lembra Ivany sobre o projeto.
Luzia - "A gente acha que é uma discussão normal de casal"
Foto: Arte g1
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Ser ameaçada com uma arma foi o estopim para Luzia Dercília Costa, de Rio Branco (Acre), decidir terminar a relação, que durou 8 anos. Na época, ela morava em uma área de floresta em Bujari, a cerca de 51 km da capital.
Primeiro, o ex-marido era agressivo com as palavras. "Mas a gente nunca pensa que isso é uma agressão", diz a mulher.
Quando ele arranjou uma amante, começou a ficar ciumento e a ameaçar Luzia. O companheiro saía de casa com uma faca na mochila, dizendo que iria matá-la se descobrisse que tinha outro homem. Em outra ocasião, ele colocou uma arma em cima da mesa, repetindo o discurso.
Quando o ex-marido resolveu assumir a sua amante, a expulsou de casa, colocou seus bens na estrada e trocou a fechadura. Foi o que motivou a professora a ir à delegacia pela primeira vez. Sem serviços de segurança próximos, a professora rural precisou esperar o dia seguinte, pois precisava fretar um transporte.
Foto: Arte g1
Apesar do esforço, o marido não foi chamado para depor. Luzia, então, resolveu invadir a própria casa, mas recebeu mais ameaças e suas coisas foram novamente colocadas para fora. Além disso, o marido a denunciou por invasão e ela foi chamada para depor.
“Uma coisa que me deixou triste, né? No meio disso tudo, foi que ele só foi chamado para a delegacia quando ele foi lá fazer queixa de mim e, então de imediato, eu fui chamada para fazer o depoimento, quando ele ainda nem sabia que eu tinha feito uma queixa contra ele”, relata.
Apesar de o marido já ter a propriedade quando se casaram, Luzia investia seu salário na produção da família. Ainda assim, o marido vendeu parte das cabeças de gado e repassou um valor inferior a ela.
Com medo de ele preparar alguma emboscada em meio à mata, a professora decidiu deixar a zona rural e se mudar para Rio Branco, onde dá aulas hoje.
“Tudo o que me aconteceu me afetou muito. Eu pesava 60 kg na época, dentro de 1 mês perdi 8,6 kg. Eu fui muito afetada também no meu trabalho”.
Atualmente, Luzia tem uma liminar que impede que o ex-marido se aproxime dela.
"É tudo novo pra mim, é como se eu tivesse saído da cadeia"
Foto: Arte g1
Foto: Gisele Ramalho | Arte g1
A prisão da produtora rural Helena José Gomes, de João Pinheiro (MG), era o seu relacionamento, que durou 9 anos.
Ela vivia em isolamento. O companheiro não permitia que ela convivesse com outras pessoas, nem mesmo uma filha já adulta de um relacionamento anterior. A produtora também não podia ter redes sociais ou até um celular.
Helena explica que essa prisão foi construída aos poucos e de forma subliminar: “Ele não falava que não queria que eu fosse na vizinha, mas, se eu fosse lá, quando chegasse em casa, ele estaria bravo”. E, para evitar brigas, ela não ia.
A produtora rural foi diagnosticada com depressão, mas o marido não permitia que ela tratasse a doença, para ele “depressão se cura com reza”.
A agricultora era constantemente ofendida pelo marido, chamada de “idiota”, por exemplo. Mas fora de casa, ninguém sabia como era a verdadeira convivência do casal.
“Eu fiquei calada durante os nove anos. Os vizinhos já disseram que pensavam que nós dois vivíamos bem. E quando eu resolvi dar o grito, eu não tinha falado antes de vergonha, porque a gente era considerado aqui o casal nota 10”, relata.
Clique no player e ouça relato da Helena.
A princípio, ela creditava o comportamento violento às dívidas, mas, quando os pagamentos da propriedade foram quitados, Helena entendeu que era algo a mais. Foi aí que o “grito” aconteceu e ela resolveu fugir de casa e ir morar com a filha.
Contudo, como muitas mulheres do campo, todos os bens e dinheiro eram controlados pelo marido, que decidiu vender parte das cabeças de gado do casal e ficar com todo o valor, dinheiro que nunca foi recuperado por Helena.
Hoje, a agricultora tem uma medida protetiva contra o ex-marido, enfrenta o processo de divórcio na Justiça e recuperou o direito à sua casa.
Três histórias, um drama social
As histórias de Ivany, Luzia e Helena, apesar de muito particulares, revelam um drama que milhares de mulheres passam em silêncio no interior do Brasil.
Relatos como o delas são comuns, por exemplo, no dia a dia de trabalho das pesquisadoras do curso de enfermagem da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Marta Cocco da Costa e Jaqueline Arboit.
Elas estudam como se dá a violência doméstica em áreas rurais do Sul do Brasil e o acesso das vítimas à rede de saúde.
Já a pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Juliana Lemes da Cruz estuda o tema no Vale do Mucuri, no nordeste de Minas Gerais. Ela é policial militar e conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Segundo as três, o que é comum entre as vítimas são:
➤ o isolamento: o fato de muitas mulheres do campo morarem distantes de vizinhos, familiares e de espaços de coletivos de convivência dificulta o pedido de socorro e o acesso à informação sobre como romper o ciclo de agressões.
➤ a distância dos serviços de saúde: hospitais com mais estrutura dificilmente estão localizados nos municípios das vítimas e os postos de saúde, em geral, têm horário de funcionamento limitado. Além disso, muitas não têm carro e dependem de ônibus e barcos fretados, que passam em horários específicos.
➤ a distância de delegacias e o medo de denunciar: da mesma forma que na saúde, as mulheres estão, em geral, distantes de delegacias e têm medo de a denúncia não dar em nada.
➤ impedimento de acessar bens e dinheiro: nas áreas rurais, ainda é comum que o homem centralize os recursos financeiros e impeça que a mulher tenha acesso a bens. Apesar disso, elas trabalham junto aos maridos e cuidam das casas e dos filhos.
Subnotificação
Em 2022, o Brasil teve pelo menos 32.448 denúncias de mulheres que foram vítimas de violência doméstica e familiar em zonas rurais, segundo levantamento do g1, com dados de Secretarias de Segurança Pública dos estados e Distrito Federal (DF).
Os números, no entanto, devem ser bem maiores. "Nas áreas rurais, há uma subnotificação absurda dos casos de violência doméstica", destaca a pesquisadora e policial militar Juliana Lemes da Cruz, que é conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e estuda o tema no Vale do Mucuri, no nordeste de Minas Gerais.
Foi ela que fundou, em 2018, o projeto Mulher Livre de Violência (MLV), que ajudou a Ivany a denunciar o irmão.
“A gente viu, nos encontros [do MLV], que muitas mulheres das zonas rurais não entendiam o que era a violência psicológica, moral e patrimonial, por exemplo. Muitas não associavam com uma agressão”, diz.
“A violência, em si, acaba sendo mais compreendida quando há uma lesão corporal”, acrescenta Juliana, que é pesquisadora na Universidade Federal Fluminense (UFF). O MLV parou na pandemia e está retomando, aos poucos, as atividades.
Foto: Luisa Rivas | Arte g1
O campo tem outras particularidades, destaca ela. Apesar dos avanços nos últimos anos, nem todas as áreas, por exemplo, têm sinal de internet ou de telefonia fixa, o que dificulta a vida da vítima na hora de pedir socorro.
Em seus estudos sobre a violência no nordeste de Minas, Juliana fez uma outra constatação.
Segundo ela, apesar do disque denúncia 190 da Polícia Militar ser muito divulgado como um canal para as vítimas, nem todos os municípios têm postos policiais que recebem, diretamente, as ligações desse serviço.
Dos 60 municípios que integram a 15ª Região Integrada de Segurança Pública de Minas Gerais (RISP), 78,3% não recebem ligações diretas do 190. Essas cidades representam metade da população da região, diz Juliana.
"Sendo assim, dificilmente as campanhas que destacam tão somente o acionamento do 'Disque 190' terão o sucesso almejado. Essa linguagem será rapidamente identificada pelas mulheres como: 'esse serviço não é para mim'", afirmou a pesquisadora, em um dos seus artigos.
Ela explica que uma pessoa que mora em um local sem 190, ao acionar o Disque Denúncia, terá a sua ligação transferida para a cidade mais próxima. "E essa central vai precisar ligar para o policial que está trabalhando [no município da vítima] no dia. Há, nesse caso, uma demora para a vítima ser atendida", ressalta.
Como os dados foram obtidos
Para obter os dados, o g1 solicitou, via Lei de Acesso à Informação (LAI), os registros de Boletins Ocorrência (BOs) enquadrados nos crimes da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), que aconteceram entre 2006 e 2022, em zonas rurais dos municípios.
Os estados que enviaram os dados selecionaram recortes de tempo distintos entre si. O que tinha em comum entre eles eram apenas as informações de 2022. Por causa disso, o gráfico acima tem somente os registros policiais do ano passado.
Outro obstáculo é que cada estado tem uma forma distinta de organizar as informações dos Boletins de Ocorrência. Nem todos utilizam o termo "zona rural" para especificar que o crime ocorreu no campo. Alguns usam o termo "interior", por exemplo.
Para criar uma padronização, o g1 somou apenas os dados dos estados que utilizam o termo "zona rural".
Veja a seguir a situação dos 26 estados mais o Distrito Federal (DF).
- Separam os BOs por zona rural (12): Bahia, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Roraima, São Paulo e Tocantins;
- Não separam (5): Alagoas, Distrito Federal, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Santa Catarina;
- Não responderam (7): Acre, Amapá, Maranhão, Paraíba, Piauí, Rondônia e Sergipe;
- Amazonas selecionou os BOs de todos os municípios, menos os da capital Manaus;
- Ceará organiza os dados de crimes rurais por Interior Sul e Interior Norte do estado;
- Pernambuco também separa os registros rurais por interior, levando em consideração o agreste, o sertão e a zona da mata.
O que diz o governo federal
O g1 entrou em contato com o Ministério das Mulheres para saber se o governo tem algum plano para dar suporte às vítimas de violência doméstica e familiar no campo.
Em resposta, o órgão afirmou que está retomando o Programa Mulher Viver sem Violência, que funcionou até 2016, oferecendo, por meio de unidade móveis, atendimento especializado em saúde, segurança pública, justiça, assistência social e autonomia financeira.
"Até 2016, o Programa Mulher Viver sem Violência distribuiu cerca de 60 unidades móveis para as capitais dos estados e DF com o objetivo de atender mulheres vítimas de violência em áreas rurais e de floresta".
"Neste momento, o Ministério das Mulheres está realizando um levantamento dessas unidades móveis, a fim de reavaliar as melhores estratégias para levar o atendimento".
Créditos do especial violência doméstica no campo
- Coordenação editorial: Luciana de Oliveira
- Reportagem: Paula Salati e Vivian Souza
- Coordenação de arte: Guilherme Gomes
- Direção de arte e ilustrações: Luisa Rivas e Veronica Medeiros
- Roteiro do vídeo: Paula Paiva
- Edição do vídeo: Marih Oliveira