Agro: A indústria-riqueza do Brasil

Por Vivian Souza, g1


Entenda o que é o extrativismo tradicional

Entenda o que é o extrativismo tradicional

Com sua cesta nas costas, Dione Torquato sai mais um dia para colher o patauá. Quando chega ao pé do fruto, com seu facão preso ao short, ele escala a árvore até alcançar o topo e poder cortar o ramo, que cai no chão.

Este rito, usado para colher os frutos da floresta, não é exclusivo de Torquato. Ele é uma das mais de 5 milhões de pessoas que formam as comunidades tradicionais extrativistas no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010.

Os povos extrativistas são aqueles que fazem o manejo florestal que não é madeireiro, ou seja, realizam as coletas de frutos, como o açaí e a castanha. Além disso, eles pescam e utilizam da agricultura familiar de subsistência, inclusive a caça artesanal, para completar a renda.

Em troca dos produtos, eles cuidam da natureza e protegem as florestas.

Neto de indígena e de seringueiros, Torquato, de 34 anos, cresceu na Floresta Nacional de Tefé, no Amazonas, aprendendo a cultura extrativista. Sua família atua com três cadeias: o açaí, a castanha e a pesca artesanal. Atualmente, o látex se fortaleceu na região, sendo incluído nas atividades.

Além de extrativista, Torquato é uma liderança da região e é secretário geral do Conselho Nacional das Populações Extrativistas, também conhecido como CNS, por ser o antigo Conselho Nacional das Populações Seringueiras, fundado por Chico Mendes.

Devido à sua ocupação, ele divide seu tempo entre o extrativismo e viagens do CNS. Mas isso não afeta o seu sentimento de pertencimento à comunidade: “O extrativismo, ele não sai da gente, né? Está na nossa cultura e no nosso modo de viver”, afirma.

Apesar de viajar muito por causa de sua função no CNS, Torquato, sempre que pode, retorna para as atividades de coleta extrativista — Foto: Arquivo pessoal

Cuidado com a onça

Uma das características das comunidades extrativistas é levar as crianças desde cedo para aprender a prática. Torquato explica que isso não é considerado um trabalho infantil, pois elas não realizam atividades realmente pesadas e as crianças querem acompanhar os pais.

“Eu lembro que, nessa idade de seis até nove anos, eu ia somente para vigiar meu pai, por medo de uma castanha cair na cabeça dele ou a onça pegar ele”, narra. “Então, eu ia para, eventualmente, caso alguma coisa acontecesse, eu tinha que voltar para casa, para avisar à minha mãe, que iria avisar a outras pessoas”, relata.

“Quando eu cresci, comecei a trabalhar no pesado. O que eu mais queria era poder carregar peso para substituir ali ou para ajudar meu pai, para não deixar ele ter o mesmo sacrifício que eu via quando eu ainda era criança e não podia ajudar”, narra.

Aos 65 anos, Paulo Torquato, pai de Dione, ainda atua nas coletas — Foto: Arquivo pessoal

Quem se sacrifica

Aos seis anos, Torquato começou a ser alfabetizado. A escola chegou à comunidade, mas de forma bem precária.

“Era uma escolinha simples, o teto coberto de palha, o giz era carvão e a gente tinha que dividir o caderno em quatro, cinco partes e o lápis também, duas, três partes. A borracha era a coisa mais fácil porque a gente pegava o solado da sandália Havaiana e dividia ela para vários colegas”, lembra.

Quando terminou o ensino fundamental I, aos 13 anos, o extrativista teve que deixar o campo, para dar continuidade aos estudos. A cada ano, um de seus cinco irmãos o seguia. Com menos mão de obra na floresta, eles chegaram a passar fome.

Quando mais três irmãos chegaram à cidade, alguém tinha que voltar para ajudar o pai no trabalho. “Nós fomos obrigados a tomar uma decisão entre os adolescentes: quem de nós iria abandonar o estudo para poder voltar e ajudar o pai, né? E aí fui eu, como era o mais velho”.

Recentemente, Torquato conseguiu passar na prova do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) e pretende fazer o curso técnico de informática.

Luta no sangue

Torquato acompanhava a sua mãe nas reuniões de uma associação da comunidade desde pequeno. Aos 13 anos, ele começou a ser mais ativo. O extrativista diz que uma das grandes motivações foi o fato de não acreditar em ter de sair da sua casa e ir para a cidade para poder ter educação.

Raimunda do Nascimento, mãe de Dione, foi quem o apresentou aos movimentos sociais dos povos tradicionais — Foto: Arquivo pessoal

Em 2010, ele começou a trabalhar voluntariamente no projeto de jovens protagonistas do fortalecimento comunitário. Dois anos depois, o extrativista ganhou um prêmio da coordenação de Educação Ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em reconhecimento pela iniciativa.

Após isso, ele foi convidado para fazer parte da secretaria da direção executiva do CNS e depois da secretaria de desenvolvimento. Em paralelo, integrou a Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar (Reaf), que é um fórum que discute as pautas dos povos campesinos e das comunidades tradicionais a nível do Mercosul.

Como diversas outras lideranças das comunidades tradicionais, Torquato enfrenta constantes ameaças de morte, que são enviadas por garimpeiros, madeireiros e pecuaristas, afirma o extrativista.

“Na primeira ameaça de morte que recebe, você acaba morrendo antes mesmo de ser assassinado”, afirma.

Pai de duas filhas adolescentes, o extrativista diz que elas não podem contar na escola qual a sua profissão e que teme por elas.

Torquato acredita que as motivações para as ameaças são as denúncias que faz apontando irregularidades na região, como desmatamento, crimes contra os povos tradicionais e mineração.

Relação de troca

De acordo com o secretário do CNS, as comunidades extrativistas movimentam no Brasil, anualmente, mais de R$ 5 bilhões. Contudo, fora dos dados oficiais, o valor seria ainda mais alto, diz.

Estes povos coletam os produtos que estão em época, por isso dificilmente trabalham com um só cultivo. A comercialização acontece de 2 formas: a organização de associações e cooperativas ou a venda individual.

As mudanças climáticas são, hoje, um grande desafio para essas populações, que já têm as suas coletas prejudicadas pela falta de previsibilidade da natureza.

“E isso tem um impacto diretamente no nosso modo de viver e de produção, mas o impacto é, principalmente, na nossa relação socioambiental”, explica Torquato.

Torquato com a sua esposa Cátia Santos de Melo, também extrativista. — Foto: Arquivo pessoal

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