A advogada Juliane Silvestri Beltrame decidiu assumir a propriedade de seu pai após a morte dele, em 2010, com 30 anos de idade. — Foto: Arquivo pessoal
A advogada Juliane Silvestri Beltrame nunca havia pensado em ser pecuarista como o seu pai, Jovino Silvestri, até ele morrer, em 2010.
A partir daquele momento, com 30 anos e tomada por um "sentimento de gratidão", ela, que nem sabia subir em um cavalo, assumiu a fazenda de 230 hectares de sua família, que fica no município de Campo Erê, em Santa Catarina.
"Quando meu pai faleceu, meu irmão tinha 10 anos e minha irmã ainda estava na faculdade... decidi assumir...tomei conhecimento da área, conversei com pessoas da cidade para ter ideias, fiz cursos. Tudo isso com 3 meses de gestação. Na minha primeira venda de gado, eu já estava com 8 meses de gravidez", conta.
A sucessão inesperada a encorajou a debater o assunto com outras moradoras da cidade.
Apesar de avanços recentes, o processo de sucessão familiar de mulheres no campo ainda não é bem estruturado e pode acontecer de forma repentina, quando o marido ou o pai morrem, por exemplo, diz Juliane.
Já a sua experiência como advogada de família está levantando outro assunto delicado: a violência doméstica contra as mulheres no meio rural.
O tema ainda é invisibilizado por causa de particularidades do campo, como a distância geográfica das fazendas, que dificulta acesso a serviços e comunicação.
Juliane se tornou ela se tornou a primeira mulher a assumir a presidência do Sindicato Rural de Campo Erê-SC em 2020. — Foto: Arquivo pessoal
Esses temas têm sido abordados por Juliane de maneira informal e por meio do Sindicato Rural de Campo Erê-SC. No ano passado, ela se tornou a primeira mulher a assumir a presidência da entidade e já organizou um encontro de mulheres do município para o próximo dia 4 de dezembro.
Ela conta que, no início, sofreu preconceito de outros pecuaristas do sindicato por ser mulher. "Não é que nós somos mal recebidas. É que, primeiro, a gente precisa comprovar a nossa capacidade para, depois, ganhar credibilidade", diz.
"No começo, todo mundo ficou um pouco apavorado, mas as pessoas, com o tempo, vão se acostumando e pensando 'ah, ela também consegue'", acrescenta.
Em sua propriedade, a advogada trabalha com a pecuária de corte, que é voltada para a produção de carne. Ela atua, mais especificamente, na criação de bezerros e novilhas que são vendidos para outros produtores fazerem a engorda.
A produção é alternada ainda com o plantio de soja, milho e trigo, que é feito por um agricultor parceiro, em um sistema chamado Integração Lavoura-Pecuária, que, por aumentar a eficiência do uso de recursos naturais, gera menos impacto ao meio ambiente.
Sucessão repentina
Juliane Silvestri Beltrame conta que se apaixonou pelo campo e pelos animais. — Foto: Arquivo pessoal
"Acho que, se meu pai voltasse, ele diria 'eu não acredito que você deu continuidade'", conta Juliane que, quando criança, ia para a fazenda da família apenas para brincar e nunca pensou seriamente em seguir os negócios.
Ela diz que nunca foi muito estimulada. "Acho que a maioria dos pais antigos era assim, tem um patriarcado que a gente vive ainda, que a mulher é mais sensível, não aguenta os trabalhos do campo. Mas hoje isso já está mudando".
Por outro lado, a partida abrupta de seu pai, que sofreu um ataque cardíaco na fazenda, a fez repensar sua relação com o campo.
"Eu decidi seguir na fazenda por gratidão ao meu pai, por amor...E, no fim, acabei me apaixonando muito pelo campo, pelos animais. Se eu tivesse tido essa sensação lá atrás, acho que teria feito veterinária", diz.
Ela conta também que, nesse processo, teve muito apoio de sua mãe e de seus dois irmãos.
No local onde seu pai morreu, Juliane plantou até flores para homenageá-lo.
Juliane plantou uma flor no local em que seu pai morreu. — Foto: Arquivo pessoal
Desafio e superação
No início, a advogada teve muita dificuldade para entender todos os processos da fazenda e chegou a duvidar de si mesma durante muito tempo.
"Quando a gente fala da sucessão familiar, eu senti isso na pele isso. Passei várias noites pensando no que eu ia fazer: 'será que não vou colocar tudo a perder? Será que eu sei mexer com esses bichos?'", diz.
Mas a empreitada deu certo. Juliane estudou, contratou assistência técnica e financiamento e, a partir dessas iniciativas, melhorou a produção, a partir, por exemplo, da troca de animais mais velhos por mais novos e da mudança da alimentação das vacas, que recebem, hoje, uma ração mais forte para suportarem o inverno.
Juliane melhorou a produção a partir, por exemplo, da troca de animais mais velhos por mais novos e mudança da alimentação dos animais. — Foto: Arquivo pessoal
Debate com as mulheres
A vivência de Juliane faz com que, hoje, ela incentive outras mulheres a se inteirarem dos negócios dos pais e maridos o quanto antes.
"Eu sempre digo para as mulheres: 'vão acompanhando o que os maridos estão fazendo, vão na cidade com eles, na prefeitura, nas empresas em que eles compram os produtos, vejam o preço do milho, a arroba do boi'", diz.
"A gente sabe que, geralmente, o marido morre antes que a esposa. Então, uma hora ou outra, ela vai ter que gerenciar se não tiver filhos que cuidem. Se não é pela morte do marido, é por uma sucessão familiar porque o pai falece, como aconteceu comigo", acrescenta.
Violência doméstica no campo
Juliane tem usado a sua experiência como advogada para debater violência doméstica no campo. — Foto: Arquivo pessoal
Outro assunto espinhoso que ela tem abordado em Campo Erê é a violência doméstica contra as mulheres no meio rural.
"No campo, as mulheres têm dificuldade para chamar ajuda. As propriedades ficam longe uma da outra, muitas não sabem como pedir ou têm vergonha. Então fica ali velado, dentro da família", diz Juliane.
Por ser advogada, ela acaba orientando ou atendendo muitos casos de violência de diferentes tipos, como física, psicológica e patrimonial.
"Muitas apanham do marido, mas ficam caladas pensando como sustentarão os filhos em caso de separação. Tem aquelas que ajudam na fazenda, tirando leite da vaca, fazendo muitos trabalhos, mas, quando chega o final do mês, o marido pega todo aquele dinheiro pra ele e faz o que quer, a mulher nem vê", relata.
Para orientar melhor as moradoras de Campo Erê, Juliane convidou uma policial civil e uma assistente social para o encontro mulheres do município que vai acontecer no próximo dia 4 de dezembro.
Ela lembra ainda que as mulheres que sofrem violência podem pedir ajuda com um sinal criado pela Campanha Sinal Vermelho, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Por meio de um “X” escrito na palma da mão, ou em um pedaço de papel, as vítimas podem, de maneira discreta, sinalizar a situação de vulnerabilidade a funcionários de cartórios, prefeituras, órgãos do Judiciário e agências do Banco do Brasil (saiba mais aqui).
Material da campanha Sinal Vermelho — Foto: Divulgação