Por Mateus Rodrigues, G1 DF


Ala norte do Instituto Central de Ciências da UnB — Foto: Mariana Costa/Secom UnB

Passados quase três meses desde a ocupação da reitoria e os atos que terminaram em confronto em frente ao Ministério da Educação, a crise financeira vivida pela Universidade de Brasília (UnB) segue quase inalterada.

Sem dinheiro para projetos e obras, a UnB conseguiu concluir o primeiro semestre letivo, mas ainda aguarda liberação financeira para planejar os próximos seis meses.

Nesta quinta-feira (27), em mais uma medida de austeridade, a instituição aprovou mais que dobrar o preço do almoço no restaurante universitário.

Nesta sexta (28), o G1 publica uma série de reportagens especiais analisando dez anos do orçamento das 63 universidades federais. Os dados, obtidos junto ao próprio Ministério da Educação, se concentram nas despesas "discricionárias", ou seja, as que podem sofrer cortes, como o subsídio para a alimentação dos estudantes, por exemplo. O levantamento mostra que, em 2017, o valor repassado pelo MEC ficou no menor patamar em sete anos.

'Remédios amargos'

Em entrevista ao G1, a decana de Orçamento e Planejamento da UnB, Denise Imbroisi, falou sobre os fatores que levaram a instituição a demitir terceirizados, rejeitar parcerias e cortar subsídios – e sobre os "remédios amargos" necessários para a reversão do cenário.

Segundo a gestora, a crise atinge o repasse federal, que cai a cada ano e é consumido pelos salários, e a arrecadação própria da UnB, que está sujeita a um teto cada vez mais restritivo.

Entenda, abaixo, cada um desses fatores, a posição do Ministério da Educação sobre eles e as medidas de austeridade propostas pela atual direção.

Salários em alta

Em termos gerais, o orçamento público é dividido em três "rubricas": gastos com pessoal, custeio e investimentos. Em instituições prestadoras de serviço, como a UnB, a folha de pagamento consome a maior parte do dinheiro.

Para cobrir todas essas despesas, a UnB pode obter dinheiro de três fontes:

  1. Tesouro Nacional: principal "mantenedor" das instituições federais
  2. Recursos próprios: obtidos com aluguéis e prestação de serviços, por exemplo
  3. Emendas parlamentares: incluídas no orçamento federal a cada ano

Orçamento da UnB, por fonte e destinação (em milhões de R$)

2015 2016 2017 2018
Pessoal e encargos 1.187,30 1.192,36 1.398,87 1.450,69
Custeio 268,74 379,15 208,52 229,92
Investimento 88,46 62,15 54,79 28,21
Total 1.544,5 1.633,66 1.662,18 1.708,82

A tabela acima, fornecida pela própria UnB, mostra a evolução desses valores entre 2015 e 2018. Na primeira análise, é possível ver que o orçamento global cresceu 10,63% no período. Os gastos com pessoal, no entanto, cresceram 22,18%.

Isso significa que a folha de pagamento, que correspondia a 76,87% do orçamento em 2015, e 72,07% em 2016, passou a comer 83,78% da verba "disponível" para a UnB em 2018 (veja nos dois gráficos abaixo).

Divisão do orçamento da UnB, em 2015
Dados constam na Lei Orçamentária Anual, e não incluem emendas parlamentares
Fonte: Universidade de Brasília
Divisão do orçamento da UnB, em 2018 (em milhões de R$)
Dados constam na Lei Orçamentária Anual, e não incluem emendas parlamentares
Fonte: Universidade de Brasília

Mas, em tempos de arrocho salarial e crise, como o gasto com pessoal pode crescer tanto? Segundo Denise Imbroisi, o aumento veio da "formalização" de cargos que, até então, eram ocupados por servidores sem vínculo – um regime chamado "Sicap". Em 2014, centenas de funcionários foram demitidos nestes contratos, e substituídos por servidores com vínculo regular.

"Era uma forma precarizada, paga com orçamento da universidade [e não, com repasse direto do MEC]. A UnB fez um termo de ajustamento com o Ministério Público, eles foram demitidos, e aí houve um acréscimo na força de trabalho. Como esse valor inclui os aposentados, é, obviamente, algo que cresce para sempre", diz a decana.

Custeio e investimentos em queda

Quanto maior a fatia de salários, benefícios e pensões – que é obrigatória e repassada, mensalmente, pelo Ministério da Educação –, menor o dinheiro para o resto. O resto, neste caso, é composto pelo custeio (operação e manutenção das estruturas) e pelo investimento.

Ao contrário do uso comum da palavra, o "investimento", nesse caso, não tem relação direta com a expansão das atividades da UnB. "Para a universidade, investimento é manutenção da capacidade de ensino. Equipamentos de laboratório, livros, mobiliário, tudo isso é investimento", explica Denise.

"Quando você reduz a capacidade de investimento, está afetando a qualidade do trabalho de ensino, pesquisa e extensão. Estamos reduzindo essa capacidade em razão das dificuldades."

A verba de custeio caiu 14,45% entre 2015 e 2018, e a de investimento, 68,1% no mesmo período. Com uma redução ainda mais intensa nos repasses federais, a UnB teve de aumentar o uso de recursos próprios para compensar a perda.

"Em termos de Tesouro [financiando investimento], de R$ 47 milhões [em 2016], caiu para R$ 24 milhões, esse ano estamos em R$ 8 milhões. O restante de investimento do MEC ficou no MEC, para ele administrar e gerenciar como achar melhor. É a primeira vez que isso acontece", diz a reitora.

Evolução do orçamento da UnB, entre 2015 e 2018
Dados constam na Lei Orçamentária Anual e não incluem emendas (em milhões)
Fonte: UnB e Lei Orçamentária Anual

Teto até para o dinheiro próprio

A afirmação esbarra no segundo "gargalo" apontado por Denise Imbroisi. Segundo ela, a UnB tem uma capacidade singular de arrecadação própria, "tanto pelos seus projetos de pesquisa e extensão, quanto pelos aluguéis".

Além de toda a extensão do campus, o patrimônio da UnB inclui uma quadra inteira sem edificações na Asa Norte, centenas de apartamentos funcionais, salas comerciais e a fazenda Água Limpa, usada por cursos como agronomia e engenharia ambiental. A UnB não pode vender patrimônio para custear as operações, mas recebe pelo aluguel e pelo uso dos espaços.

Como tudo isso é dinheiro público, a gestão desses recursos também passa pela União e pode ser contingenciada. De acordo com o decanato, os orçamentos anuais autorizaram uso de R$ 162 milhões em 2016, R$ 71 milhões em 2017 e R$ 92 milhões em 2018.

Campus Darcy Ribeiro da Universidade de Brasília, na Asa Norte — Foto: Luiza Garonce/G1

Se a arrecadação for maior que isso, o dinheiro fica travado nas contas do Ministério da Educação e vira superávit primário – ou seja, fica reservado para ajudar a União a bater as metas fiscais.

A UnB pode até pedir a liberação da verba, mas, para não estourar o orçamento definido, precisa abrir mão de igual montante no que já foi autorizado. Na prática, seria apenas um remanejamento, e não uma liberação adicional.

"Isso é recurso da universidade, e não do Tesouro. É a UnB querendo bancar a própria manutenção. Ano passado, a gente colocou R$ 30 milhões próprios para investimento. Neste ano, colocamos R$ 20 milhões", diz Denise.

"Como os recursos não estão dando conta da manutenção, estamos fazendo uma substituição perversa. Tirando do investimento, e colocando em custeio."

O que diz o MEC?

Segundo a UnB, pelo menos R$ 98 milhões de "superávit" de arrecadação própria foram travados pelo governo federal nos últimos anos. Em nota ao G1, o Ministério da Educação afirmou que não reconhece o valor, e que a apuração do superávit financeiro é feita pela Secretaria do Tesouro Nacional, do Ministério da Fazenda. Procurada, a pasta não retornou até a publicação desta reportagem.

Também em nota ao G1, o Ministério do Planejamento – responsável por assuntos orçamentários – informou que o limite orçamentário é "distribuído" às pastas de cada área e, neste caso, ao MEC. "Cabe exclusivamente ao órgão setorial [MEC] a responsabilidade pela distribuição desses recursos", diz o Planejamento.

MInistro da Educação, Rossieli Soares — Foto: André Nery/MEC

Questionado sobre a possibilidade de flexibilizar esse teto para que a UnB pudesse gastar mais do dinheiro que arrecada, o Ministério da Educação afirmou que essa incorporação deve "estar compatível com as metas fiscais de todo o governo federal".

O MEC citou ainda que o orçamento global da UnB cresceu de R$ 1,66 bilhão para R$ 1,73 bilhão entre 2017 e 2018. O valor inclui emendas parlamentares e de bancada que, segundo o decanato, já foram canceladas neste ano.

Conflito de versões

Em uma nota pública enviada à imprensa em 10 de abril, intitulada "A verdade sobre a UnB", o ministério afirmou:

  • que não havia corte de orçamento para a UnB, baseado nos dados de 2017 e 2018 citados acima;
  • que repassou 100% do orçamento das federais em 2016 e 2017, o que "não acontecia há dois anos";
  • que a UnB foi quem "mais gastou com despesas correntes" entre as universidades de mesmo porte, superando a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo;
  • que a UnB tem a maior verba de investimento em 2018 entre seis universidades "equivalentes", com R$ 47,3 milhões, e
  • que "os problemas enfrentados pela UnB são no âmbito da gestão interna da instituição".

Questionada sobre o "diagnóstico", Denise refuta a acusação de má gestão e diz que, mesmo cortando gastos e revendo contratos, a UnB não tem condições de manter excelência no ensino com o dinheiro previsto.

"Todo gestor tem a obrigação de ser eficiente, isso é básico, mas precisamos de um aporte condizente com a instituição. A gente é avaliado pelo desempenho. A UnB tem nota 5 no Inep, nota máxima. Nos rankings, temos bons resultados, isso é reflexo de boa gestão", rebate.

"Temos bons estudantes, bons docentes e bons servidores. Esse trabalho, estamos fazendo. Mas Além disso, precisamos de recursos compatíveis, e não temos."

Denise Imbroisi diz que, desde a troca de governo e da aprovação do novo regime de teto de gastos, o ministério passou a "segurar" parte dos recursos, e a liberar esses aportes projeto a projeto, a cada requisição das instituições. Para ela, isso fere o conceito de autonomia universitária.

"Esses recursos estão lá no MEC, é uma decisão de segurar os recursos que, tradicionalmente, deveriam vir para a universidade. Isso é muito difícil, até agora eu não tenho ciência de quais são os critérios, de como vai ser distribuído", afirma.

Denise Imbroisi, decana de Planejamento e Orçamento da Universidade de Brasília (UnB) — Foto: Beto Monteiro/Secom UnB

A decana diz que já enviou ofícios informando o ministério do andamento de obras – a lista inclui o prédio da engenharia florestal, no campus Darcy Ribeiro, a reforma das salas de professores da Faculdade de Saúde e a construção de três laboratórios nas áreas de saúde, tecnologia e transportes e energias alternativas.

"Mas investimento vai muito além de obra, há todo um apoio que a gente precisa adquirir. Um orçamento de R$ 8 milhões é trivial, é risível. Você vai adquirir um equipamento para um laboratório de pós-graduação de química, ele não vai custar menos de R$ 1 milhão."

Denise se diz "incomodada" com as afirmações de que a UnB está em uma situação boa. "Aí, é questão de sentar aqui na cadeira e ter que pagar as contas. O ministro se comprometeu a conversar de novo em setembro, espero que a gente tenha uma notícia positiva sobre suplementação orçamentária."

Segundo ela, de fato, o MEC liberou 100% (ou perto disso) da verba de custeio em 2017, primeiro ano da decana no cargo. "O problema é que liberaram nas últimas duas semanas de dezembro. Isso dificulta muito, porque você passa o ano contando só com 60%", diz.

Os mesmos 60% foram liberados para a UnB até o momento, em 2018. Ou seja, de cada R$ 10 previstos na peça orçamentária, até esta semana, só R$ 6 eram garantidos. Essa fração levou a reitoria a afirmar que, sem o pacote de austeridade, só poderia manter portas abertas até agosto. Segundo Denise, talvez, nem isso.

"Seria suficiente para chegar até agosto, mas sabe por que não é? Porque o total é insuficiente. Mesmo se liberarem 100% do orçamento, a gente não chega até dezembro porque o dinheiro é pouco. Estamos falando de 60% de R$ 137 milhões. Em 2016, estaríamos falando de 60% de R$ 216 milhões."

O déficit milionário

Alunos da Universidade de Brasília (UnB) ocupam prédio da reitoria — Foto: Arquivo pessoal

Em meio a tantas cifras, essa diferença entre receita e despesa é justamente o dado mais assustador. Em 2018, o déficit calculado pela UnB é de R$ 92 milhões. Significa que, se nenhuma medida for tomada, uma dívida desse tamanho teria de ser empurrada para 2019 como forma de manter a UnB em operação.

A reitoria aposta em dois caminhos para evitar o rombo:

  1. aumentar a arrecadação em R$ 50 milhões
  2. reduzir as despesas em R$ 40 milhões

O primeiro ponto está "adiantado" para esse ano, graças a um acordo com o Centro de Seleção e Promoção de Eventos (Cebraspe), que organiza o vestibular da UnB e centenas de concursos públicos pelo país. Ainda em 2018, o Cebraspe deve pagar R$ 35 milhões à UnB, referentes a dívidas acumuladas de 2014 a 2017.

"Nós temos esse recurso para esse ano, mas é pontual. Não resolve no médio prazo. E além disso, precisamos saber se isso cabe no nosso limite orçamentário. Talvez, a gente nem possa receber isso aí", ressalva Denise. Em 2017, o MEC autorizou uma manipulação contábil para contornar esse limite.

Redução de despesas

O problema, então, é reduzir as despesas. Até o momento, todas as medidas anunciadas pela UnB repercutiram mal entre a comunidade acadêmica. Como resultado, houve ocupação da reitoria, greve estudantil e de servidores, atos de terceirizados e episódios classificados pela própria reitoria como uma "escalada de intransigência".

O pacote de austeridade anunciado inclui:

  • corte de estagiários: dos 1,1 mil contratos existentes em janeiro, sobraram pouco mais de 200. O pagamento foi descentralizado, ou seja, saiu das planilhas da reitoria e passou a integrar a central de custos de cada departamento (que terá de remanejar dinheiro para cobrir essa nova despesa).
  • demissão de terceirizados: a UnB não divulga balanço das demissões porque, segundo a reitoria, o processo ainda não foi concluído. O sindicato estima mil desligamentos desde janeiro.
  • cortes na manutenção: o contrato de jardinagem, por exemplo, foi suspenso após a identificação de irregularidades. O estacionamento do campus Darcy Ribeiro passou a ser varrido semanalmente -- antes, o serviço era feito em dias alternados.
  • mudança no RU: a UnB quer reduzir o subsídio nas refeições do Restaurante Universitário para alunos que têm condições socioeconômicas melhores. O valor atual, de R$ 2,50, seria mantido apenas para quem está em situação de vulnerabilidade. Nesta quinta, foi aprovado o aumento do valor para R$ 5,20.

Fachada do restaurante universitário da UnB, no campus Darcy Ribeiro — Foto: Larissa Batista/G1

Com a revisão desses contratos, a UnB estima já ter garantido uma economia de, pelo menos, R$ 25 milhões para este ano. Só com o corte de estagiários, a universidade deve poupar R$ 6 milhões ao ano.

O problema é que, nesse ponto, reitoria, alunos e sindicatos concordam: as medidas afetam a qualidade do ensino. "Nada disso que estamos discutindo é o ideal. Você reduz tudo que é despesa, e faz o possível e o impossível para manter ensino, pesquisa e extensão funcionando", diz Denise.

"Como o recurso é escasso, você vai priorizar. De que congresso vamos participar? Estudante vai poder participar? Provavelmente, a prioridade é a pós-graduação. Então, você vai restringindo oportunidades."

Sem invenções

Na entrevista ao G1, Denise descartou a possibilidade de resolver a crise com duas soluções "alternativas" frequentemente apresentadas pelos opositores da gestão atual: as parcerias com o setor privado e a cobrança de mensalidades no ensino.

"As parcerias nós já temos e queremos ampliar. Mas se eu faço um contrato privado com uma ONG, por exemplo, ele bate no teto. Eu já estou, efetivamente e lamentavelmente, negando entrada de recursos porque acabaria comprometendo outros pagamentos. Eu não tenho espaço no orçamento", explica.

Outras barreiras vêm do status da UnB como fundação e autarquia federal. A universidade não pode, por exemplo, fazer operação de crédito (pegar empréstimo), e nem vender patrimônio para pagar fatura.

"E isso está certíssimo, o patrimônio é para a UnB investir em si mesma. Mas com essas barreiras, temos uma solução a menos."

A ideia de cobrar mensalidades – seja dos ricos, seja dos pobres – também não agrada à reitoria. Segundo a decana, a proposta fere a Constituição sem resolver o problema da grana.

Instituto Central de Ciências (ICC) da Universidade de Brasília (UnB) — Foto: Andre Borges/Agência Brasília

"Nas universidades públicas de qualidade do mundo inteiro, ou não há cobrança, ou há cobrança pífia. Aqui não é uma escola, não é só aula. A universidade tem uma série de coisas que não se pagam com mensalidade. São demandas da sociedade."

Apesar das discordâncias e da franca oposição sofrida pelo pacote, Denise encerrou o "raio-X da crise" na entrevista ao G1 dizendo que, para ela, a comunidade acadêmica já entendeu a crise há muito tempo. O que falta, agora, é entender a urgência das medidas que vêm sendo tomadas.

"Eu não acho que faltou entendimento. Os dados macroeconômicos são os mesmos, mas enquanto o MEC fala de orçamento global, a gente fala de custeio. Enquanto ele fala de valor nominal, a gente mostra a correção pela inflação. Por sermos fundação, pagamos R$ 8 milhões de Pasep que vêm do custeio, e não da verba de pessoal. É preciso detalhar para entender a crise."

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