Por Bruna Yamaguti, g1 DF


  • Clarice Lispector (1920-1977) escreveu duas crônicas sobre a capital do país: "Brasília", de 1963, e "Brasília: esplendor", de 1974.

  • Nos textos, ao mesmo tempo em que Clarice adjetiva a cidade como "gélida", "artificial", "apocalíptica" e "prisão ao ar livre", ela também diz que Brasília é "linda e nua".

  • Ao g1, o professor de literatura André Luis Gomes explica como Clarice se expressava em suas crônicas. Já o arquiteto e urbanista Sérgio Jatobá fala sobre como ela conseguiu falar sobre a realidade da capital usando seu estilo poético e sentimental.

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Foto: G1/Arte/Morgana Nascimento

Da janela de algum apartamento do Setor Hoteleiro nas décadas de 1960 e 1970, Clarice Lispector (1920-1977) observava Brasília com seu olhar atento aos detalhes e ao todo. Suas contemplações resultaram em duas crônicas: "Brasília", de 1963, e "Brasília: esplendor", de 1974.

Nos textos, ao mesmo tempo em que Clarice adjetivou a cidade como "gélida", "artificial", "apocalíptica" e "prisão ao ar livre", ela também disse que Brasília é "linda e nua". Afinal, qual era a relação de Clarice Lispector com a capital do país?

"Adoro Brasília. É contraditório? Mas o que é que não é contraditório?", diz a autora em uma das crônicas.

O professor André Luis Gomes, do departamento de Teorias Literárias e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB), explica que a autora esteve no Distrito Federal em três diferentes ocasiões. Uma em 1962, com os filhos, e outras duas em 1974 e 1976, a convite da Fundação Cultural do DF.

"As sensações vão do espanto, ao medo, ao mistério, e ao susto. Para ela, o espanto é maior que o ódio ou o amor. Clarice é processo e encantamento", diz Gomes.

Para o professor, Brasília é descrita pela autora por visões que se contrapõem, transitando entre o medo ("Aqui eu tenho medo") até o amor ("Este grande silêncio visual que eu amo").

"Neste sentido, é preciso ressaltar uma frase conhecida da autora: 'O silêncio está repleto de palavras'. [...] É uma relação de espanto, de alguém que está diante do novo e está em construção. A cronista estabelece com Brasília uma relação entre conhecidos, e ela personifica Brasília", diz Gomes.

'Clarice desordenou ideias para decifrar a cidade ordenada'

Clarice Lispector em entrevista — Foto: Reprodução TV Cultura/1977

O arquiteto e urbanista Sérgio Jatobá é autor do livro "Brasília, cidade construída na linha do horizonte". Nele, há três textos inspirados diretamente nos textos de Clarice Lispector sobre a cidade.

"A ordem espacial de Brasília a assustou e a fascinou ao mesmo tempo. Pelos olhos do delírio, ela procurou enxergar a lucidez. Na sua insônia, imaginava estar no sonho de uma cidade que despertaria o futuro. Clarice desordenou ideias para decifrar a cidade ordenada", diz Jatobá.

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Foto: Arte/G1/Morgana Nascimento

O título do livro de Jatobá também vem de uma frase que a própria Clarice disse após uma de suas visitas à capital do país. "Os textos de Clarice têm um tom delirante, uma licença poética que uma escritora pode se dar. No entanto, há ditos muito acertados, como o de que 'Brasília foi construída na linha do horizonte'."

"Uma das coisas mais destacadas em Brasília é a onipresente visão da linha horizonte. Não é por acaso. O Plano Piloto foi construído sobre um domo inserido em um vale circundado por chapadas. Para ajudar a visualização, pense em uma bacia que teve o seu fundo empurrado para cima", explica o arquiteto.

Segundo Jatobá, apesar do teor sentimental dos textos de Clarice, em cada trecho de suas crônicas sobre Brasília pode se extrair significados e gerar reflexões interessantes sobre a realidade, como quando ela diz que "Brasília é o fracasso do mais espetacular sucesso do mundo”.

"Brasília, como a capital, deveria ser uma cidade que espelhasse modernidade, igualitarismo, uma sociedade nova e socialmente avançada para o mundo. Mas a cidade logo reproduziu e até exacerbou as grandes desigualdades sociais do país e suas mazelas econômicas e políticas", afirma.

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Foto: Arte/G1/Morgana Nascimento

O arquiteto e escritor explica que Clarice não tentou explicar Brasília, como muitos intelectuais da época tentaram fazer, mas simplesmente relatou sua experiência sensorial com a cidade, mesclada com sua vivência pessoal.

"Com isso, criou um texto com alta carga poética e simbólica, que impacta muito a quem vive em Brasília e a quem a conhece pela primeira vez", diz Sérgio Jatobá.

Veja alguns dos trechos extraídos das crônicas "Brasília" (1962) e "Brasília: Esplendor" (1974):

"Porque é preciso que alguém chore em Brasília. Os olhos dos habitantes são secos demais. Então eu estou me oferecendo para chorar. Brasília é o meu martírio. E não tem substantivo. É só adjetivo. E como dói."

"A luz de Brasília me deixou cega. Esqueci os óculos escuros no hotel e fui invadida por uma terrível luz branca. Mas Brasília é vermelha. E é completamente nua."

"Você me incomoda, ó gélida Brasília, pérola entre os porcos. Oh apocalíptica."

“Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado.”

"Uma prisão ao ar livre. De qualquer modo não haveria pra onde fugir. Pois quem foge iria provavelmente para Brasília. Prenderam-me na liberdade. Mas liberdade é só que se conquista. Quando me dão, estão me mandando ser livre."

Quem foi Clarice Lispector

Clarice Lispector se despediu há 40 anos, mas sua obra permanece viva

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Dona de um estilo de escrita único e uma intensidade transparente em seus textos, Clarice Lispector foi um dos poucos nomes da literatura brasileira a conseguir reconhecimento ainda em vida. Seu romance de estreia, "Perto do Coração Selvagem" (1943), escrito aos 24 anos, lhe rendeu seu primeiro prêmio, o Graça Aranha.

Clarice é escritora brasileira mais traduzida do mundo. Dos seus 18 livros, entre romances, contos e crônicas, "A Hora da Estrela" (1977) é, desde 1983, o mais traduzido, com publicações em 27 idiomas.

Nascida na Ucrânia, Clarice chegou ao Brasil ainda bebê, em 1922, com sua família que fugia devido à perseguição aos judeus depois da Revolução Russa de 1917. Os Lispector chegaram a Maceió, de onde mudaram para Recife, em 1924, e daí para o Rio de Janeiro, em 1935, cidade em que se estabelecem definitivamente.

No Brasil, os membros da família aportuguesaram seus nomes. O pai Pinkhas ou Pinkhouss passou a ser Pedro, e a mãe Marian ou Mania transformou-se em Marieta. Das filhas, Leah virou Elisa; Tcharna, Tânia; e Chaya, Clarice.

Casada com um diplomata brasileiro, a escritora morou fora do país de 1944 a 1959 (Itália, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos), quando se separou e retornou ao Brasil, onde viveu até sua morte, em 9 de dezembro de 1977, um dia antes do seu aniversário de 57 anos.

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