A advogada brasiliense Cintia Cecílio e sua esposa, em imagem de arquivo — Foto: Arquivo pessoal
O Distrito Federal registrou mais de 2 mil casamentos homoafetivos desde 2013, quando uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) passou a garantir a esses casais o direito de selarem a união em cartórios.
No entanto, nesta terça-feira (19), a Câmara dos Deputados retoma a análise de um projeto que proíbe o reconhecimento de casamentos entre pessoas do mesmo sexo (entenda mais abaixo). O texto adiciona um parágrafo ao artigo do Código Civil determinando que, na prática, relações entre pessoas do mesmo sexo não poderiam ser equiparadas ao casamento ou à entidade familiar.
Se aprovado, porém, o projeto não poderá afetar os casamentos homoafetivos que já foram registrados em cartório.
“A aprovação da lei não tem capacidade de retroagir. Seria quase impossível a desconstituição ou a anulação dos casamentos que já foram realizados. Existe ainda o princípio da vedação ao retrocesso, com finalidade de proteger esses direitos”, explica a advogada Cintia Cecílio, especialista em direitos LGBTQIA+.
Além disso, segundo Cintia, a Constituição Federal veda qualquer tipo de discriminação, com princípios que devem assegurar igualdade entre todos.
“O projeto ainda está na Câmara dos Deputados e precisa passar por um trâmite legislativo amplo. E em caso de aprovação, é esperado que a proposta seja reconhecida como inconstitucional pelo STF”, diz a advogada.
Cintia, que é homossexual, se casou em cartório no final do ano passado. Para ela, o projeto em discussão representa um retrocesso. "Existe, claramente, um ato de preconceito neste projeto", pontua.
"As nossas famílias têm que ser reconhecidas. [...] As pessoas precisam entender que a gente existe e que a gente não vai deixar de existir. A gente não vai 'voltar pro armário'. Nós estamos aqui e vamos continuar lutando pelos nossos direitos", ressalta a advogada.
'Quem é a favor das famílias deveria parar de perseguir as nossas'
A empresária Evelyn Dias, de 24 anos, conta que está nos seus planos se casar com a namorada Louise, com quem tem união estável há três anos. Ela diz que o projeto em discussão na Câmara é uma ameaça e precisa ser combatido "com urgência".
"Nós não deveríamos ter que lutar novamente por algo que já conquistamos, por algo que já é nosso. Então quem é a favor dessa discussão, quem é a favor da família, deveria parar primeiramente de perseguir as nossas famílias", diz Evelyn.
Evelyn e a namorada Louise, em imagem de arquivo — Foto: Mayara Senise
O bancário e psicólogo Daniel do Valle Silvestre, de 49 anos, é casado com Wilton Antônio de Souza desde 2017, apesar de estarem juntos há 18 anos. Juntos, os dois adotaram dois filhos.
"É uma uma tristeza muito grande você pensar que existem representantes do povo interessados em retirar um direito das pessoas. [...] É triste pensar que a gente vive em um mundo em que existe uma hierarquização entre pessoas. Pessoas que acham que são melhores do que outras e que possuem mais direitos e privilégios, e que assim deve ser mantido", diz Daniel.
O casal Daniel e Wilton, em imagem de arquivo — Foto: Arquivo pessoal
Entenda
Os casamentos homoafetivos não estão regulamentados em lei. A base jurídica para a oficialização dessas relações é uma decisão do STF de 2011.
À época, por unanimidade, os ministros decidiram que um artigo do Código Civil deveria ser interpretado para garantir o reconhecimento de uniões entre pessoas do mesmo sexo. A decisão também considerou essas relações como entidades familiares.
Dois anos depois, em 2013, o CNJ editou resolução para obrigar a celebração de casamentos homoafetivos em cartórios. Desde então, o número de casamentos homoafetivos cresceu quase quatro vezes no Brasil. Os registros saltaram de 3.700 em 2013 para quase 13 mil até 2022.
Agora, a Comissão de Previdência e Família da Câmara dos Deputados retoma a análise de um projeto apresentado em 2009 — três anos antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) permitir uniões homoafetivas — e desengavetado neste ano.
A retomada do projeto é patrocinada por parlamentares de oposição ao governo e ligados à bancada evangélica na Câmara. O colegiado no qual a discussão ocorre é visto como um dos mais dominados por deputados conservadores.
'Afronta' à Constituição
Relator da ação que assegurou o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, o ministro aposentado do Supremo Ayres Britto diz que a proposta em discussão na Câmara “está em rota de colisão” com o que decidiu o STF
“O que o STF decidiu, por unanimidade, foi à luz da Constituição. O entendimento é claro e assegura aos casais homossexuais os mesmos direitos de uniões formadas por pessoas de sexos diferentes”, afirma.
De acordo com o ministro, o projeto não tem “chance de prosperar”. “Juridicamente, é uma afronta aos princípios constitucionais”, explica Ayres Brito.
“Hipoteticamente, em uma chance muito remota, essa lei seria derrubada pelo Supremo. O STF reafirmaria o entendimento adotado em 2011", afirma o jurista.
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