Na semana em que o Instituto Royal encerrou suas atividades em São Roque, SP, a cientista Mayana Zatz e a ativista Luisa Mell defendem seus pontos de vista sobre a experimentação com animais. Mayana é geneticista e uma das principais vozes da ciência no Brasil. Luisa (Marina Zatz, no RG) defendeu a ação que resultou na retirada de 178 beagles do laboratório em 18 de outubro, sob a alegação de maus-tratos. Curiosidade: Mayana foi casada com um primo da mãe de Luisa.

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É possível abandonar o uso de animais para testes científicos?
Quais seriam as alternativas para manter nosso desenvolvimento científico?

Em primeiro lugar, gostaria de deixar registrado que adoro animais, principalmente cães, e que não como carne de nenhum mamífero, desde a minha adolescência, exatamente porque sou contra a matança de animais. Existem inúmeras pesquisas científicas que requerem o uso de animais antes de serem testadas em seres humanos. Por exemplo, terapias com células-tronco. Antes de testá-las em humanos precisamos saber: será que elas se dirigem e permanecem no órgão alvo depois de injetadas? Como garantir que elas se diferenciam no tecido que queremos e não em outro? E se queremos, por exemplo, reconstruir músculos e elas se diferenciarem em células ósseas? Qual é a melhor via de injeção? Local ou sistêmica? Qual é o efeito clínico dessas injeções em camundongos que têm distrofias musculares ou patologias semelhantes aos humanos? Como saber se as células injetadas não irão formar tumores? Essas são algumas questões que só podem ser respondidas com o uso de animais, a não ser que façamos o ser humano de cobaia

É possível e é necessário. A sociedade precisa saber que testes científicos em animais não são um sistema de teste robusto. Há vasta literatura a respeito. De acordo com Mike Leavitt, ex-secretário de Serviços Humanos e de Saúde dos EUA, nove em dez drogas experimentais falham em estudos clínicos pelo simples fato de que não podemos prever com acurácia como elas se comportam nas pessoas com base em estudos laboratoriais e animais. A indústria farmacêutica tem mais fracassos em suas prospecções e descobertas do que sucessos. Esses índices não são revelados por motivo óbvio: mercado. Cientistas partem do pressuposto errôneo de que resultados de testes com animais (mamíferos, por exemplo) com um fármaco podem ser extrapolados para seres humanos. Mas ratos, coelhos, gatos, cães, coelhos e primatas têm fisiologias, bioquímicas e genéticas, entre outros fatores, diferentes de nós. Possuem características relacionadas evolutivamente sim, mas diferentes em seus ajustes finos. E é no detalhe que o fármaco trabalha. É por isso que, o paracetamol, por exemplo, é nocivo para cães e não para humanos; e a penicilina é letal para porquinhos-da-índia, mas benéfica para humanos etc, etc. etc. Vários médicos e cientistas americanos já são contrários a experimentos com animais, não pela ética, mas sim por isso atrapalhar a ciência!

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É ético usar animais em testes que, em muitos casos, acabam causando sofrimento, se os resultados beneficiarão principalmente o ser humano?

Todas as pesquisas com animais precisam ser aprovadas antes por comitês de ética que são extremamente rigorosos no sentido de prevenir o sofrimento de animais

Não, não é ético. Não é ético instrumentalizar o outro (seja humano ou não-humano) e convertê-lo em mero meio para nossos fins. Precisamos perceber o outro (neste caso, os animais não-humanos sencientes) como um ser dotado de percepções, complexidades cognitivas, inteligência, consciência, vida social, interesses, projetos e preferências. Ao convertermos seres vivos complexos em mero instrumento para nossos desejos e necessidades, estamos ferindo os direitos mais básicos a que todos os seres vivos devem ter acesso: a liberdade e a integridade física. E isso, além de injusto, é imoral

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Se o fim do uso de cobaias representaria um atraso para o desenvolvimento de medicamentos, por exemplo, não valeria a pena a humanidade assumir esse atraso em prol do bem-estar dos animais?

Pergunto: seria ético poupar camundongos e usar cobaias humanas? Existem inúmeras doenças degenerativas que são letais, algumas na primeira infância. E existem inúmeros camundongos que têm patologias semelhantes a doenças humanas. Novamente, uma vez descoberto um possível medicamento em laboratório que possa tratar essas doenças é preciso antes testá-lo nesses modelos animais para verificar se são eficazes e não tóxicos. Repito: é ético ver crianças e jovens morrerem sem tentar nada para salvá-los em prol do bem-estar dos animais? E se fosse o seu filho?

O fim do uso de cobaias precisa ser aceito não unicamente pelo bem-estar animal, mas pelo fato de ser uma metodologia equivocada para atender uma necessidade exclusivamente humana. Veja a declaração do Dr. John Pippin (diretor acadêmico do Comitê de Médicos pela Medicina Responsável, nos EUA): ”O próprio FDA (a vigilância sanitária dos EUA) já admitiu que testes em animais não são capazes de prever o comportamento do organismo humano diante de uma droga. 92% de todas as drogas testadas com sucesso em animais, e depois em humanos, falham de alguma forma. Isso não é ciência, é bruxaria. Não deveria ser financiada e apoiada pela FDA, é uma fraude, e uma fraude que acontece por causa de dinheiro. Companhias farmacêuticas estão entre as maiores dos EUA, as mais ricas. O frustrante é que o FDA sabe que não faz sentido"

É ético ver crianças e jovens morrerem sem tentar nada para salvá-los em prol do bem-estar dos animais?

A indústria farmacêutica tem mais fracassos em suas prospecções e descobertas do que sucessos

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Adiantaria suspender o uso de bichos em testes científicos se existem milhões de animais sendo criados para servir de alimento? As cobaias não são um problema pequeno diante da questão do consumo de carne? São problemas comparáveis?

Não são problemas comparáveis. As cobaias em experimentos científicos não representam “nada” em comparação com a matança para alimentos. Pior ainda é matar animais para usar sua pele. Ou usar animais para divertimento como as touradas ou brigas de galo

O uso de animais na experimentação é apenas uma das inúmeras e terríveis formas de exploração animal. Seu uso como modelos experimentais é tão errado quanto criá-los para abate por questões tão frívolas como hábito, tradição ou conveniência. Precisamos parar de pensar como humanos da era paleolítica e enxergar que animais não-humanos sencientes não são coisa, objetos ou mera propriedade. Eles são fins em si mesmo, criaturas biográficas que percebem o mundo à sua volta e interagem com ele

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Seria possível chegar a um acordo para estipular um prazo para o fim do uso de animais em testes? Qual seria um prazo razoável?

É muito difícil estipular um prazo. A pesquisa científica é cheia de surpresas. A boa notícia é que é possível, com a tecnologia de células-tronco reprogramadas, derivar linhagens celulares de pacientes com diferentes patologias. São o que chamamos de “pacientes em placas de petri”. Isso permite testar inúmeras drogas nas células, no laboratório, antes de utilizar modelos animais o que reduz significativamente o uso de cobaias nas pesquisas

Toda mudança requer prazos e discussões. Essa é uma discussão necessária na qual especialistas em ética e ciência, junto à opinião imprescindível do público leigo, deve existir

Fotos: Caio Kenji / Reportagem: Eduardo Carvalho
Edição: Dennis Barbosa e Gustavo Miller (Conteúdo); Leo Aragão (Infografia)
Infografia: Daniel Roda, Dalton Soares e Elvis Martuchelli
Desenvolvedor: Thiago Bittencourt

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