Revertendo a síndrome de Kabuki
Indivíduos com a síndrome de Kabuki são raros (cerca de 15.000 pessoas no mundo). Porém, são facilmente reconhecidos pela aparência facial peculiar. Aliás, a síndrome leva o nome do tradicional teatro japonês justamente devido à semelhança com a maquiagem criada para os atores, incluindo a forma alongada dos olhos, com sobrancelhas arqueadas. Além da expressão facial característica, os indivíduos apresentam anomalias esqueléticas e atraso mental.
A síndrome de Kabuki pode ser causada por mutações em dois genes, KMT2D e KDM6A, ambos envolvidos na regulação epigenética da cromatina. A cromatina é uma estrutura proteica que mantém o DNA compactado, mas que permite a ativação de genes no genoma através de alterações epigenéticas. Apesar da redundância na função desses dois genes Kabuki, acredita-se que exista um desequilíbrio crônico na regulação gênica nuclear, justamente controlada pela acessibilidade à cromatina.
Essa semana, um grupo da universidade de Johns Hopkins, nos EUA (Bjornsson e colegas, Science 2014) publicou um artigo cientifico mostrando a criação de um modelo animal para estudar a síndrome de Kabuki, desligando geneticamente um dos genes Kabuki durante o desenvolvimento embrionário de camundongos. O grupo mostrou que os camundongos apresentavam problemas de aprendizado e memória semelhante aos pacientes, e que isso estava correlacionado a diversas anomalias encontradas no giro dentado do hipocampo (região do cérebro que continua a produzir novos neurônios, mesmo no adulto). Além de um volume reduzido nessa região, o grupo notou que existia uma redução no número de novos neurônios sendo produzidos nos animais sem o gene da síndrome.
A administração oral de uma molécula capaz de ajustar a estrutura da cromatina (AR-42) foi capaz de reverter as deficiências neurológicas nesses animais, tanto em camundongos jovens quanto adultos. A droga, já em uso em ensaios clínicos para câncer de próstata, conseguiu compensar o efeito deletério das mutações nos genes Kabuki, reestruturando a dinâmica da regulação gênica neural e revertendo os efeitos cognitivos dos animais. É possível que outras moléculas, com um mecanismo semelhante, possam entrar em clínica imediatamente, como a droga antiepilética conhecida como ácido valpórico. Dietas específicas ou suplementos, como o acido fólico ou curcumina, podem eventualmente também ser benéficos, pois atuam de forma semelhante na célula.
O impacto além de Kabuki
Na ciência, muito se aprende com as síndromes raras. Em geral, é o conhecimento adquirido com formas mais raras da doença que informam sobre os mecanismos de ação e possíveis intervenções terapêuticas para outras formas ou condições mais comuns. Com a síndrome de Kabuki não será diferente, e os estudos terão implicações para outras formas de atraso mental e tipos de autismo.
Recentemente, com o baixo custo de sequenciamento do DNA, mais e mais pacientes com doenças neurológicas estão tendo acesso a informações genéticas. Quem acompanha as evoluções genéticas nessa área deve ter notado que uma porcentagem significativa dos indivíduos com atraso mental e autismo apresentam mutações em genes que regulam a conformação da cromatina, permitindo a ativação ou repressão de outros genes. Esses genes, também conhecidos como reguladores epigenéticos, são a segunda classe mais comum de genes implicados nessas doenças, perdendo apenas para genes diretamente relacionados com as conexões nervosas, ou sinapses. Outra novidade é a implicação do hipocampo e neogêneses em síndromes comportamentais. Sabia-se que a produção de novos neurônios era regulada por fatores epigenéticos. Mas desconhecíamos o quão importante era o fenômeno para Kabuki e possivelmente outras formas de atraso mental.
A reversão neurológica em Kabuki é mais um exemplo da plasticidade neural do cérebro adulto e reforça a ideia de que doenças do desenvolvimento neural são passiveis de reversão ou cura. A mesma prova de princípio já foi demonstrada para síndromes do espectro autista, como a síndrome de Rett e Phelan-McDermid. A descoberta de que drogas epigenéticas que favoreçam o acesso à cromatina possam contribuir para retardar ou reverter essas síndromes é fascinante.
*Foto: Wikimedia Commons