A falta de doadores humanos para transplante é a maior barreira para o tratamento de falência de órgãos. Em muitos casos, utilizamos partes de órgãos de porcos, cuja anatomia e fisiologia é semelhante à dos humanos, como certas regiões do coração ou mesmo pele. No entanto, nesse tipo de xeno-transplante corre-se o risco em potencial da transmissão de vírus endógenos porcinos (PERVs) para o hospedeiro humano, causando uma série de outros problemas imunológicos, comprometendo o transplante.

O genoma dos porcos contém uma série de cópias de vírus dormentes, os PERVs, que não podem ser eliminados como fazemos para outros patógenos (via antibióticos ou criação em condições estéreis). Esses PERVs fazem parte do genoma do porco e foram acomodados lá por milhões de anos durante a evolução. Porém, ao entrar em contato com tecido humano, esses vírus endógenos acordam e conseguem infectar células humanas.

Um porco mostrou a lingua ao ser fotografado em uma fazenda em Güira de Melena, na província de Artemisa, na Cuba, na terça-feira (3)
Recentemente, o grupo de George Church, um respeitado geneticista de Harvard, conseguiu inibir esses PERVs usando uma nova ferramenta genética (Yang e colegas, Science 2015). Diversos trabalhos anteriores haviam tentado inibir a transmissão dos PERVs usando vacinas, RNA de interferência ou fatores de transcrição artificiais, mas com sucesso reduzido. O time de Harvard usou a nova geração de enzimas de edição de DNA, conhecidas como CRISPR-Cas9, para inativar especificamente cópias de PERVs no genoma porcino. O problema é que essas enzimas, apesar de eficientes, nunca haviam sido usadas para atingir diversas regiões no genoma simultaneamente. Os PERVs possuem milhares de cópias espalhadas pelos cromossomos, aumentando a dificuldade do desafio.

A estratégia foi de encontrar regiões que eram comuns nos diversos PERVs e desenhar uma única enzima capaz de atingir a todos. Conseguiram construir uma versão da enzima que atingia 62 cópias ativas de PERVs no genoma do porco. O próximo teste foi funcional, ou seja, testar se células do porco geneticamente modificadas com a CRISPR-Cas9 seria ainda capaz de transmitir os PERVs para células humanas em um ensaio de co-cultura in vitro, simulando o contato das espécies durante um eventual transplante. A preocupação do grupo é que cópias inativas de PERVs poderiam ser usadas como modelos para corrigir as alterações feitas pelas enzimas modificadoras nos PERVs alvo. Mas a ausência de alterações genômicas foi um indicativo de que isso seria pouco provável. De qualquer maneira, o grupo fez o experimento e observou uma redução de até mil vezes na transmissão viral para células humanas.

O próximo passo dessa pesquisa é criar porcos transgênicos contendo essas enzimas para futuro uso em transplantes humanos. George Church é co-fundador de uma empresa de biotecnologia chamada eGENESIS, criada para aperfeiçoar esse processo e criar embriões de porcos para transplantes humanos. Se funcionar, a estratégia deve reduzir a dramática a fila de transplante de órgãos, que só nos EUA mata 30 americanos por dia.

O trabalho teve um grande impacto por diversas razões, mas principalmente porque mostrou um uso inesperado das CRISPR-Cas9 na edição genômica em sítios múltiplos (o máximo até então eram de 6 sítios genômicos ao mesmo tempo). Além disso, o trabalho inova no uso dessas ferramentas para controle de vírus endógenos com uma aplicação prática imediata em humanos. Os métodos descritos abrem novas possibilidades de edição genética em regiões repetitivas do genoma que possuem significado biológico, mas cuja manipulação genômica seria complicada.