Nova estratégia contra o câncer (e outras doenças que evoluem rapidamente)
Quem leu a biografia de Steve Jobs (fundador da Apple) deve ter notado que ele conseguiu estender sua batalha contra o letal câncer de pâncreas muito além do que a grande maioria dos pacientes com o mesmo tipo de câncer. Jobs conseguiu isso mesmo tendo tomado a decisão errada de recorrer a medicina alternativa logo após o diagnóstico. Uma das razões dessa sobrevida excepcional foi seu entusiasmo pela vida. A outra razão, acesso a tecnologia de ponta.
Parte dessa tecnologia consistem em sequenciar o genoma de células do tumor, comparando-o ao genoma das células saudáveis. Esse sequenciamento revela quais as mutações nos genes envolvidos com a desregulação do ciclo celular, o que torna o câncer mais agressivo.
Com essa informação, os médicos podem receitar medicamentos apropriados, ou seja, drogas que atuam nas vias alteradas. Infelizmente, esses medicamentos não são específicos (causando diversos efeitos colaterais) e não atingem todas as células do câncer.
Essa “brecha” no tratamento permite que as células não-tratadas sofram novas mutações, contribuindo para a reincidência do câncer. Faz-se então, um novo sequenciamento para descobrir quais as novas mutações genéticas, quais as vias alteradas e qual então seria o novo medicamento a ser prescrito. Esse ciclo vai se repetindo até exaurir as drogas disponíveis ou quando o efeito colateral passa a não compensar mais para a saúde do paciente.
Uma das ferramentas mais promissoras para o tratamento de doenças complexas, como o câncer pancreático, é uma molécula pequena de RNA (ribonucleic acid), chamada de RNAi. Moléculas pequenas de RNA são usadas rotineiramente em ensaios pré-clínicos em laboratório para interferir de forma específica em vias metabólicas celulares.
São moléculas superflexíveis e consegue-se adequá-las a um infinito repertório de vias moleculares. Portanto, em teoria, conseguimos inativar diferentes vias metabólicas em câncer de forma específica usando RNAi. Do ponto de vista terapêutico, seria fantástico, pois o custo é baixíssimo comparado com o desenvolvimento de drogas químicas (cerca de US$ 1 bilhão/droga). O maior impedimento na clínica tem sido o fato de que o ambiente extracelular degrada a molécula de RNAi antes que ela consiga penetrar na célula e inativar o alvo.
Um trabalho publicado nessa semana por um outro Steve, um colega da Universidade da Califórnia em San Diego, promete mudar essa realidade (Meade e colegas, Nature Biotechnology 2014). Steve Dowdy e seu grupo passaram os últimos 8 anos buscando formas de entregar as moléculas de RNAi para dentro das células, driblando as enzimas predatórias de ácidos nucleicos no ambiente extracelular. Conseguiram isso combinando duas técnicas descritas anteriores: neutralização química e fusão com peptídeos TAT, conhecidos como penetradores de membrana celular.
Steve conseguiu neutralizar o caráter acido do RNAi, alterando os grupos de fosfato da molécula, deixando-a neutra, e passando despercebida pelos inimigos extracelulares. A molécula quimicamente alterada foi batizada de RNNi (ribonucleic neutral). Outra grande vantagem do sistema é que essas modificações são reversíveis por enzimas presentes somente dentro da celula, deixando o RNNi ativo justamente quando precisamos. Um verdadeiro cavalo de Troia. Curioso que, segundo ele, os químicos juravam ser impossível fazer esse tipo de modificação na molécula e sugeriram ao grupo desistir de tentar. Felizmente existem os inconformados em ciência – nada como desafiar o “impossível”. O RNNi foi então fusionado com os peptídeos TAT para facilitar a entrada na célula. Pode-visualizar a molécula modificada no site da revista.
Esse trabalho inaugura o uso de uma nova técnica fundamental para entrega de RNAi terapêuticos que promete revolucionar o tratamento de câncer e outras doenças que evoluem rapidamente no corpo humano, como aquelas causadas pelo HIV ou Ebola. Imagino que num futuro não muito distante, pacientes com câncer irão se aproveitar dessa descoberta para controlar de forma mais eficiente o progresso da doença. Médicos terão em suas prateleiras, RNNis previamente desenhados para diversas vias moleculares, prontos pra uso em consultório. Após a análise genômica, esses RNNi terapêuticos podem ser inalados pelo paciente de forma completamente não invasiva. Um presente de grego para células cancerígenas, mas um belo presente de Natal para a humanidade.
Imagem: detalhe de 'A procissão do cavalo de Troia', de Domenico Tiepolo (Wikimedia Commons)