Comunicando ciência
Uma das grandes vantagens das redes sociais é facilitar a comunicação. Na ciência isso acontece de diferentes formas, auxilia no fluxo de informações entre os pesquisadores e entre a sociedade e os cientistas. Meu contato com familiares de indivíduos com doenças neurológicas tem aumentado exponencialmente, principalmente através do projeto Fada do Dente, que tem como objetivo a coleta de material humano para estudo do autismo. Essa troca tem sido muito enriquecedora para minha formação profissional.
Nessas conversas, também percebo grandes equívocos ou interpretações errôneas do processo cientifico, muitas vezes por causa de uma leitura superficial de algum artigo na mídia. Interessante notar que os mitos não são idênticos em toda parte do mundo e estão relacionados à educação e ao acesso a profissionais atualizados.
Decidi reunir e tentar explicar três dos mitos mais comuns que percebo em conversa com familiares brasileiros, na esperança de educar o público sobre o processo científico e sobre como o conhecimento é transformado em um produto clínico.
1 - O mito da indústria farmacêutica
A visão de que os laboratórios e cientistas fazem parte de uma grande conspiração da indústria farmacêutica, seja para dominar o mercado com fármacos duvidosos ou para evitar a cura de uma determinada doença, pode parecer uma visão infantil, mas é muito comum no Brasil. Não é nada disso. Os laboratórios de universidades não são financiados pela indústria farmacêutica, mas sim com dinheiro público e filantropia.
As farmacêuticas costumam ter os próprios laboratórios. Existem, sim, colaborações entre universidades e empresas privadas, mas em geral são restritas à pesquisa básica ou durante o desenvolvimento e teste inicial de uma ideia.
Na verdade, a maioria dos laboratórios públicos adoraria ter suporte de uma indústria farmacêutica, ainda mais em momentos de crise na ciência como estamos vivendo. Existem diversos contratos de proteção da propriedade intelectual, por exemplo, que muitas vezes impedem que uma universidade receba ajuda financeira de uma farmacêutica. Por fim, esse não seria um problema apenas das farmacêuticas, mas de qualquer outro setor na área de saúde, como a indústria homeopática, da dieta, do comportamento etc. Todas elas possuem interesse financeiro e lucro como objetivo final, enquanto que o objetivo de laboratórios públicos é gerar conhecimento. Laboratórios públicos usando recursos privados são, pelo menos nos EUA, obrigados a declarar essa ajuda abertamente.
2 - O mito da comprovação científica
Familiares brasileiros costumam me perguntar se tal dieta ou terapia tem comprovação científica. Costumo desapontá-los dizendo que comprovação científica é uma blasfêmia. A ciência não é definitiva, ou seja, o que é verdade hoje pode não ser amanhã. Isso não é motivo para desacreditar na ciência, pelo contrário, significa que ela está sendo honesta e aberta com as possibilidades inexploradas, sempre se questionando, se autocorrigindo. O que existe na realidade são “evidências científicas” que, quando acumuladas e replicadas de forma independente, se aproximam da verdade.
No espaço clínico, essas definições são ainda mais relevantes. Por exemplo, existem fármacos aprovados para uso clínico, baseando-se em evidências cientificas e/ou clínicas. São os remédios mais tradicionais, que mesmo assim, ainda podem ter seu uso questionado. Outros medicamentos são aprovados clinicamente apenas com evidências cientificas. É o caso do canabidiol (CBD) para tratamento da epilepsia, composto extraído da planta da maconha, que não tem estudo clínico concluído em humanos ainda, mas tem ajudado milhares de pessoas.
O caso da hiperforina, molécula presente na erva de São João, sugerido para alguns casos de autismo, é semelhante. Por se tratar de um produto natural e barato, é pouco provável que esse tipo de produto seja alvo de um ensaio clínico controlado pela iniciativa privada, pois não há interesse comercial, e esses estudos tem custo elevado. Portanto, nem todo medicamento precisa ter um estudo clínico concluído para ser aplicado numa determinada doença. Mas é imprescindível que hajam evidências científicas sugerindo eficácia para qualquer uso clinico em humanos.
3 - O mito da publicação científica
Evidencias científicas são publicadas em revistas científicas. Porém, nem toda revista cientifica é confiável e nem todo estudo cientifico é rigoroso. No meio acadêmico, a moeda meritocrática são as publicações em revistas especializadas indexadas internacionalmente, onde acontece a revisão por pares. O trabalho, antes de ser publicado, é analisado por outros especialistas da mesma área de forma anônima. Os revisores verificam se os dados foram coletados de forma transparente e se os resultados podem ser usados para sustentar as conclusões do artigo. O manuscrito inicial pode ser recusado diretamente ou ser submetido novamente com respostas as críticas dos assessores.
No caso de recusa, os autores do trabalho procuram enviá-lo para outra revista científica, em geral, menos rigorosa. O sistema de publicação está longe de ser o ideal, e existem muitas falhas nesse processo. Trabalhos publicados em revistas boas não são, necessariamente, um selo de qualidade. Existem exceções, afinal as revistas estão atrás de trabalhos impactantes.
Recentemente, iniciativas de criar sistemas de publicações científicas de acesso livre acabaram dando origem a uma série de jornais de baixo impacto. Esses jornais predatórios facilitam a publicação do trabalho, sem se preocupar com o rigor científico. E por serem na maioria online, conseguem publicar um número extraordinário de trabalhos medíocres por ano, contaminando o meio acadêmico com informações irrelevantes ou mesmo erradas.
Esse “barulho” pode ser eliminado através de estudos de meta-análise, que levam em consideração todos os trabalhos que foram executados com os controles corretos, aumentando a confiança numa determinada conclusão. Recentemente, estudos de meta-análise foram publicados desmistificando vacinas como causa de autismo e a eficácia de tratamentos homeopáticos, por exemplo.
Obviamente esta não é uma lista completa, existem diversos outros equívocos científicos que percebo durante minha comunicação com alguns pais. De qualquer forma, acho que esses três tópicos têm aparecido muito frequentemente e vale a pena esclarecer. A ciência tem evoluído muito rapidamente, com novos processos e modelos científicos que ficam cada vez mais longe do leigo.
A carência de divulgação científica de qualidade no Brasil é preocupante e contribui para o afastamento do público não especializado. Mas a culpa não é só da mídia. Conheço poucos cientistas brasileiros que se preocupam com a tradução da linguagem científica. Uma política nacional que coloque a ciência em primeiro plano seria essencial para alterar esse triste cenário.
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