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  • A síndrome de Marfan e as lições para 2015

    Paciente com a síndrome de Marfan
    A síndrome de Marfan é uma doença rara que afeta tecidos conjuntivos. É causada por mutações no gene FBN1, que codifica para a proteína fibrilina-1. Indivíduos com a síndrome de Marfan possuem, na maioria das vezes, estatura acima da média, membros longos e curvatura acentuada da espinha. Mas o problema maior está no coração, onde a fibrilina é importante para o desenvolvimento da aorta, causando aneurismas que podem ser fatais.

    Escolhi falar da síndrome de Marfan porque acho que ela simboliza um ciclo que tem se repetido com frequência na ciência biomédica: primeiro encontra-se a mutação causadora em humanos, depois criam-se modelos animais (roedores) que reproduzam os sintomas da doença, e por fim busca-se uma forma de corrigir o problema nos camundongos, levando o tratamento para os pacientes. A síndrome de Marfan tinha tudo para ser um exemplo de sucesso. Camundongos com a mutação no gene FBN1 reproduzem os sintomas em humanos, inclusive as alterações na aorta. A droga Losartan, disponível no mercado, bloqueia o efeito da fibrilina alterada e previne a morte dos animais doentes. Tudo pronto para os testes em humanos.

    Mas se por um lado as fases iniciais da pesquisa biomédica são importantes para o entendimento molecular da doença, a fase final desse ciclo cientifico é, em geral, a mais cara e a mais difícil, para não dizer frustrante. Em um trabalho publicado em novembro de 2014, cientistas mostram que a droga Losartan não traz beneficio algum para os portadores da síndrome de Marfan (Lacro e colegas, N. Engl. J. Med.). A decepção com esse modelo de pesquisa clínica é cada vez mais frequente. O problema parece ser o fato de que conforme a complexidade do sistema aumenta, a previsibilidade em humanos diminui. E o que pode ser feito para melhorar essa fase final?

    Especula-se que uma forma de aumentar a previsibilidade humana dos tratamentos pré-clínicos em roedores seria o de incorporar testes em primatas, assumindo que eles seriam um modelo animal melhor para o humano. Porém, apesar da distância evolutiva entre macacos e humanos ser realmente menor do que entre humanos e camundongos, a biologia primata continua sendo significativamente diferente dos humanos. O sistema nervoso é um clássico exemplo. Além disso, existe um custo muito maior para manter colônias de macacos para estudos biomédicos quando comparamos com roedores.

    Outra alternativa seria o uso de células-tronco de pluripotência induzida (também conhecidas como células iPS). Essas células, reprogramadas diretamente do indivíduo doente, têm a capacidade de gerar quantidades virtualmente ilimitadas de células-alvo (cérebro, coração, fígado etc) para estudos em laboratório. Com elas, pode-se criar tecidos humanos in vitro para testes de drogas, inclusive de forma personalizada. Em outra escala, essas células iPS podem também ser utilizadas para gerar órgãos inteiros, aumento a complexidade do sistema experimental. Essa alternativa também não é infalível. Apesar de já conseguirmos criar órgãos simples em laboratório, como fígado e pulmão, ainda estamos distantes de gerar um cérebro. Além disso, esses órgãos artificiais seriam usados para testes isolados, fora do contexto do organismo, aonde os tecidos se comunicam de forma intrincada (por exemplo, sistema nervoso e imune).

    A história da síndrome de Marfan, e de tantas semelhantes que se acumulam na literatura cientifica, é um alerta. Não acho que o modelo animal irá desaparecer tão cedo, pois continua essencial para o entendimento a nível genético, molecular e celular nos estágios iniciais da pesquisa. Porém não acredito que será mais tão valorizado no futuro. A busca de novas formas e metodologias para prever as respostas a tratamentos é um dos grandes desafios da medicina nos próximos anos.

    *Foto: Paciente com um dos sinais da síndrome de Marfan - Divulgação/ National Marfan Foundation (NMF)

  • Nova estratégia contra o câncer (e outras doenças que evoluem rapidamente)

    detalhe de obra de Domenico Tiepolo sobre o Cavalo de TroiaQuem leu a biografia de Steve Jobs (fundador da Apple) deve ter notado que ele conseguiu estender sua batalha contra o letal câncer de pâncreas muito além do que a grande maioria dos pacientes com o mesmo tipo de câncer. Jobs conseguiu isso mesmo tendo tomado a decisão errada de recorrer a medicina alternativa logo após o diagnóstico. Uma das razões dessa sobrevida excepcional foi seu entusiasmo pela vida. A outra razão, acesso a tecnologia de ponta.

    Parte dessa tecnologia consistem em sequenciar o genoma de células do tumor, comparando-o ao genoma das células saudáveis. Esse sequenciamento revela quais as mutações nos genes envolvidos com a desregulação do ciclo celular, o que torna o câncer mais agressivo.

    Com essa informação, os médicos podem receitar medicamentos apropriados, ou seja, drogas que atuam nas vias alteradas. Infelizmente, esses medicamentos não são específicos (causando diversos efeitos colaterais) e não atingem todas as células do câncer.

    Essa “brecha” no tratamento permite que as células não-tratadas sofram novas mutações, contribuindo para a reincidência do câncer. Faz-se então, um novo sequenciamento para descobrir quais as novas mutações genéticas, quais as vias alteradas e qual então seria o novo medicamento a ser prescrito. Esse ciclo vai se repetindo até exaurir as drogas disponíveis ou quando o efeito colateral passa a não compensar mais para a saúde do paciente.

    Uma das ferramentas mais promissoras para o tratamento de doenças complexas, como o câncer pancreático, é uma molécula pequena de RNA (ribonucleic acid), chamada de RNAi. Moléculas pequenas de RNA são usadas rotineiramente em ensaios pré-clínicos em laboratório para interferir de forma específica em vias metabólicas celulares.

    São moléculas superflexíveis e consegue-se adequá-las a um infinito repertório de vias moleculares. Portanto, em teoria, conseguimos inativar diferentes vias metabólicas em câncer de forma específica usando RNAi. Do ponto de vista terapêutico, seria fantástico, pois o custo é baixíssimo comparado com o desenvolvimento de drogas químicas (cerca de US$ 1 bilhão/droga). O maior impedimento na clínica tem sido o fato de que o ambiente extracelular degrada a molécula de RNAi antes que ela consiga penetrar na célula e inativar o alvo.

    Um trabalho publicado nessa semana por um outro Steve, um colega da Universidade da Califórnia em San Diego, promete mudar essa realidade (Meade e colegas, Nature Biotechnology 2014). Steve Dowdy e seu grupo passaram os últimos 8 anos buscando formas de entregar as moléculas de RNAi para dentro das células, driblando as enzimas predatórias de ácidos nucleicos no ambiente extracelular. Conseguiram isso combinando duas técnicas descritas anteriores: neutralização química e fusão com peptídeos TAT, conhecidos como penetradores de membrana celular.

    Steve conseguiu neutralizar o caráter acido do RNAi, alterando os grupos de fosfato da molécula, deixando-a neutra, e passando despercebida pelos inimigos extracelulares. A molécula quimicamente alterada foi batizada de RNNi (ribonucleic neutral). Outra grande vantagem do sistema é que essas modificações são reversíveis por enzimas presentes somente dentro da celula, deixando o RNNi ativo justamente quando precisamos. Um verdadeiro cavalo de Troia. Curioso que, segundo ele, os químicos juravam ser impossível fazer esse tipo de modificação na molécula e sugeriram ao grupo desistir de tentar. Felizmente existem os inconformados em ciência – nada como desafiar o “impossível”. O RNNi foi então fusionado com os peptídeos TAT para facilitar a entrada na célula. Pode-visualizar a molécula modificada no site da revista.

    Esse trabalho inaugura o uso de uma nova técnica fundamental para entrega de RNAi terapêuticos que promete revolucionar o tratamento de câncer e outras doenças que evoluem rapidamente no corpo humano, como aquelas causadas pelo HIV ou Ebola. Imagino que num futuro não muito distante, pacientes com câncer irão se aproveitar dessa descoberta para controlar de forma mais eficiente o progresso da doença. Médicos terão em suas prateleiras, RNNis previamente desenhados para diversas vias moleculares, prontos pra uso em consultório. Após a análise genômica, esses RNNi terapêuticos podem ser inalados pelo paciente de forma completamente não invasiva. Um presente de grego para células cancerígenas, mas um belo presente de Natal para a humanidade.

    Imagem: detalhe de 'A procissão do cavalo de Troia', de Domenico Tiepolo (Wikimedia Commons)

  • O futuro mercado médico da Cannabis

    Bedrocan CannabisA história do uso da Cannabis na medicina é antiga. Mas talvez uma das situações mais relevantes que marcam a entrada da maconha no mercado farmacêutico foi a que aconteceu nos anos 90. Oficiais ingleses começaram a notar algo frequente acontecendo nos julgamentos de pessoas portando marijuana: um alto número de pacientes com esclerose múltipla justificavam o consumo alegando que a erva trazia relaxamento muscular e aliviava a dor. Em 1998, um comitê inglês de ciência e tecnologia encarregado de estudar o fenômeno, concluiu que a planta poderia dar origens a compostos de interesse médico.

    Diversos cientistas e empresários foram consultados, e desse interesse surgiu uma das primeiras empresas de biotecnologia destinadas a gerar linhagens de Cannabis ricas em canabinoides específicos e testá-los em uso clinico. É um dos raros casos aonde a experiência dos pacientes guia a pesquisa científica.

    A marijuana contém pelo menos 108 tipos diferentes de canabinoides. Alguns interagem direta ou indiretamente com os receptores presentes no corpo humano. Apenas dois são bem caracterizados, o THC e o CBD. Enquanto o THC estimula efeitos psicotrópicos e controla a dor, o CBD é anti-psicotrópico, e possui propriedades neuroprotetoras e anti-inflamatórias. No final dos anos 80, pesquisadores identificaram dois receptores em nossas células que respondem a moléculas humanas semelhantes as presentes na marijuana, chamados de endocanabinoides. O receptor CB1, encontrado no sistema nervoso central e periférico, e o CB2, predominantemente expresso no sistema imune. De forma coletiva, esses receptores participam de diversas funções fisiológicas do corpo, influenciando o equilíbrio dos sistemas e, portanto, alvos terapêuticos em potencial.

    Primeiras vendas
    Em 2010, Sativex, o primeiro extrato de Cannabis medicinal entra no mercado, comercializado pela Bayer e Novartis. Hoje, Sativex é aprovado para uso em 24 países, incluindo França, Alemanha, Itália e Austrália. Nos EUA, é vendido pela farmacêutica japonesa Otsuka, que levou o extrato a ensaios clínicos para esclerose múltipla e câncer. No começo desse ano, os EUA aprovaram o uso do antiepilético derivado de Cannabis, Epidiolex (99,9% CBD), para doenças órfãs como a síndrome de CDKL5 ou Dravet, por exemplo.

    Existem diversas outras empresas de olho nesse mercado. Algumas delas, como a AbbVie americana ou a Valeant canadense, apostam em compostos sintéticos ao invés de extrair da planta. Os sintéticos dronabinol (Marinol) e nabilone (Cesamet) já são aprovados clinicamente para controle de náuseas e vômitos associados com quimioterapia. O Marional também foi aprovado para estimular o apetite em pacientes com HIV.

    O sucesso desse tipo de tratamento tem sido limitado pelos efeitos colaterais (ansiedade e depressão) e tempo de efeito (leva-se cerca de uma hora para agir). Pensando nisso, a INSYS Therapeutics desenvolveu um composto líquido oral, de ação rápida e com menos efeitos colaterais, além de permitir uma flexibilidade maior na dosagem quando comparado com medicamentos em capsulas. A firma entrou com o pedido de aprovação no FDA, agência americana que regula o setor de alimentos e remédios, em agosto desse ano. A combinação de THC e CBD também pode ser controlada para otimizar um determinado efeito. O Sativex, por exemplo, contém altas concentrações dos dois reagentes em partes iguais. Baseando-se nessa prova de principio, algumas firmas desenvolveram plataformas para testar diversas combinações de canabinoides, na expectativa de amplificar o espectro de ação da Cannabis.

    A corrida para testes clínicos dessas farmacêuticas tem, obviamente, um interesse comercial. É garantido pelo FDA sete anos de mercado exclusivo a quem demostrar efeitos positivos em ensaios clínicos controlados para doenças raras.

    Dificuldades 
    Mas em contaste com esse reconhecimento em certas circunstâncias médicas, nos EUA, a maconha é ainda classificada como substância controlada, ao lado da heroína e LSD, com potencial viciante e “sem uso clínico comprovado”. Obviamente isso complica o meio de campo, aumentando a burocracia e dificultando a logística na pesquisa acadêmica e em ensaios clínicos. Mesmo assim, já soma-se mais de 25 anos de evidências mostrando vantagens do uso medicinal da Cannabis. Infelizmente, a grande maioria dos estudos foi feita em modelos animais, sem validação em humanos, atrasando ainda mais o reconhecimento clínico.

    Na minha opinião, uma forma de acelerar o uso medicinal da Cannabis é descobrir o mecanismo de ação molecular dos canabinoides diretamente em modelos humanos, como células nervosas reprogramados a partir de células periféricas de pacientes com doenças raras. É infinitamente mais fácil para os cientistas testar diversas variáveis em um modelo controlado em laboratório do que em longos e caros ensaios clínicos. Obviamente não sou o único a pensar dessa forma e antecipo diversos insights vindos desses modelos humanos nos próximos anos.

    *Foto: Divulgação/Sensi Seeds

  • Procuram-se super-heróis genéticos

    X-MenO entendimento de doenças genéticas tem se beneficiado muito com os recentes avanços e progressos da genômica, especialmente no que se refere ao sequenciamento do DNA. A tecnologia tem evoluído tanto que em breve será possível sequenciar todos indivíduos do planeta, principalmente com a queda no custo operacional.

    Uma das grandes vantagens do sequenciamento genético é justamente descobrir quais são os genes ou vias metabólicas que estão alteradas no individuo, ou em uma determinada doença. Conhecer a genética facilita a compreensão do quadro clínico e, em alguns casos, auxilia no tratamento.

    Descrevi um exemplo na coluna anterior sobre como a descoberta de uma mutação numa criança autista revelou uma nova forma de tratamento usando um produto natural em um espaço de tempo excepcionalmente curto. Exemplos como esse são raros. Na maior parte dos casos, não sabemos muito sobre o(s) gene(s) mutado(s).

    Na verdade, os cientistas conhecem apenas 1% das funções dos cerca de 25 mil genes presentes em nosso genoma. E mesmo com genes conhecidos, muitas vezes não há o que fazer. Mas esse quadro muda diariamente, pois sempre existem novos trabalhos sendo publicados, mostrando como determinados genes atuam e podem ser modulados. Portanto, resultados genéticos nunca são inúteis.

    Ultimamente, tenho pensado de forma alternativa e complementar. Em vez de procurar genes que causam doenças ou vulnerabilidade, pensei em procurar por genes que levam à resistência. Essa ideia tem como princípio a hipótese de que existem mutantes naturais andando entre nós, super-heróis genéticos.

    Seriam aqueles que podem ter a mutação em genes que causam doenças, mas que são saudáveis. Existem precedentes para essa forma de pensar. Por exemplo, pessoas com mais de 75 anos de idade que possuem mutações no gene Apoe4 (um gene associado a alto risco para o mal de Alzheimer) e que são cognitivamente normais.

    A estratégia seria sequenciar esses indivíduos na esperança de encontrar variações genéticas que conferem resistência ou proteção ao Alzheimer. Ao entender como o processo funciona nessas pessoas, poderíamos aplicar o conhecimento de forma protetiva no resto da população.

    A ideia, em princípio, poderia funcionar para qualquer doença ou condição genética. Na verdade, isso já foi feito para doenças cardiovasculares. Hoje, sabemos que algumas pessoas que possuem uma variante não-funcional do gene PCSK9 são mais resistentes, quase imunes, a doenças do coração.

    Não importa o que você come, se faz exercícios ou qual a sua pressão arterial, essa variante consegue controlar seus lipídeos de uma forma muito mais eficiente do que na maioria da população. Atualmente, a indústria farmacêutica tem desenvolvido anticorpos contra o PCSK9, na tentativa de inativar o gene em pessoas com doenças cardiovasculares.

    No caso de doenças neurológicas ou psiquiátricas, como autismo ou esquizofrenia, achar resistentes é um pouco mais complexo. Porém, o fato de que essas condições têm uma contribuição genética forte sugere que isso seria, sim, possível. A forma como meu laboratório tem estudado essa questão é comparando indivíduos autistas com trajetórias clínicas distintas.

    Ao sequenciar o genoma daqueles que conseguiram se curar espontaneamente e sair do espectro, podemos definir uma assinatura neuro-genética que confira resistência ao autismo. Imagino que esses genes estariam envolvidos com a plasticidade neuronal ou capacidade de formar novas conexões nervosas. O mesmo serve para esquizofrenia. Gostaria de comparar o genoma de indivíduos que tiveram apenas um episódio psicótico com aqueles que continuam a sofrer com a condição.

    Obviamente, estou simplificando os quadros clínicos, inclusive deixando de lado contribuições do ambientes ou epigenéticas, mas já é um começo.

    *Foto: Divulgação

  • Pesquisa consegue reverter defeitos em neurônios de autistas clássicos

    Nesta semana Jô Soares surpreendeu na TV. Em vez de começar seu tradicional programa de entrevistas com um tom humorístico, Jô deu uma aula sobre autismo. Seu filho autista, Rafael, com 50 anos, faleceu em decorrência de um tumor cerebral.

    Se o tumor teve alguma relação com o autismo de Rafael não sabemos, mas é uma hipótese factível. Recentemente foi mostrado que cérebros de autistas contêm regiões com excesso de neurônios, o que, muito provavelmente, é causado por mutações em genes que regulam a divisão de células progenitoras neurais. Mas até o momento não existe nenhum estudo mostrando alta frequência de cânceres em indivíduos autistas. Nem consigo imaginar como era o mundo quando Rafael nasceu. Sabíamos muito pouco sobre autismo.

    O estudo do autismo e outras doenças neurológicas é complicado porque não temos disponíveis para testes neurônios humanos de indivíduos afetados. Lógico que existem outros modelos, como o material post-mortem ou mesmo animais que simulam o comportamento autista. No entanto, nenhum desses modelos oferece as vantagens de um modelo experimental humano.

    Reprogramação celularEm 2010, usamos uma nova estratégia para estudar o espectro autista, a reprogramação celular. Utilizando indivíduos com a síndrome de Rett como prova de princípio, reprogramamos células da pele em neurônios. Dessa forma, obtivemos neurônios vivos para estudos em laboratório pela primeira vez na história. Optamos por fazer isso com a síndrome de Rett porque entendemos a base genética: mutações num único gene, conhecido como MeCP2.

    Descrevemos que neurônios derivados de indivíduos com síndrome de Rett eram menores e menos complexos que neurônios derivados de indivíduos não afetados. Além disso, neurônios Rett tinham dificuldade em estabelecer conexões nervosas ou sinapses. Talvez o mais impressionante foi mostrar que tratamentos com drogas experimentais foram capazes de reverter os defeitos desses neurônios, sugerindo que certas doenças do desenvolvimento neural poderiam ser tratadas ou mesmo curadas. Usando nossos métodos, outros pesquisadores reproduziram essa descoberta e também mostraram que a reversão era possível em outras formas sindrômicas de autismo, como a síndrome de Phelan-McDermid.

    Na próxima semana, será publicado um novo trabalho de meu grupo, junto a colaboradores internacionais, mostrando que o que aprendemos com a síndrome de Rett também acontece com o autismo clássico (Molecular Psychiatry, 2014). Dessa vez, reprogramamos células da polpa de dente de leite de um indivíduo autista brasileiro. As células desse indivíduo fazem parte de um estudo que já estava em andamento por Maria Rita Passos-Bueno (Genoma/USP) desde 2008, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Quem liderou o artigo foi a brasileira Karina Griesi Oliveira, em parceria com um aluno americano, Allan Acab.

    Mutação em gene de neurônioO que a Karina e o Allan mostraram foi que morfologia dos neurônios derivados desse autista mostrou-se menos complexa, com uma arborização menor do que o grupo controle. O número de sinapses e fisiologia das redes nervosas também estavam alteradas. Mas, ao contrário das formas sindrômicas do espectro, autistas clássicos possuem uma base genética complexa. Para entender o porquê dos defeitos nos neurônios desse paciente, decidimos sequenciar o genoma do paciente. Encontramos diversas mutações, inclusive uma que anulava uma das cópias do gene TRPC6. Esse gene codifica para um canal na membrana celular que permite a entrada de cálcio, um sinalizador para a formação de sinapses e maturação neuronal. Como o paciente possui apenas uma cópia funcional do gene TRPC6, isso explicaria a redução de sinapses e as alterações morfológicas observadas.

    Mostramos que esse gene era realmente responsável pelos defeitos nos neurônios de duas formas. Primeiro, aumentamos a dose de TRPC6 nos neurônios do autista e eles passaram a se comportar como neurônios controle. Em seguida fizemos o oposto: reduzimos a atividade do TRPC6 em neurônios normais e estes se comportaram como se fossem autistas. Segundo, usamos uma droga chamada hiperforina, o princípio ativo da erva de São João (Hypericum perforatum), que estimula a entrada de cálcio pelo canal TRPC6. Curiosamente, o chá dessa erva é usado como um antidepressivo natural, ajudando casos de inquietação, ansiedade e nervosismo, principalmente na Europa. Ao expor os neurônios do autista a hiperforina por duas semanas, conseguimos reverter os falhas neuronais, aumentando o número de sinapses e recuperando as alterações morfológicas. É possível que o uso do extrato dessa planta ajude a melhorar os sintomas autistas em indivíduos com mutações nessa via metabólica. Até aonde sabemos, menos de 1% dos autistas carregam mutações nesse gene e se beneficiariam de um eventual tratamento.

    Uma outra descoberta desse estudo foi que a atividade do gene TRPC6 é controlada pelo MeCP2 (o responsável pela síndrome de Rett). Isso mostra que diferentes tipos de autismos dividem vias moleculares semelhantes, algo muito útil do ponto de vista terapêutico. E para validar essa observação, testamos o efeito de IGF-1 (uma droga em teste clínico para síndrome de Rett) em neurônios do autista clássico. Como prevíamos, o IGF-1 também conseguiu reverter os defeitos nos neurônios do autista clássico, validando seu futuro uso clínico para autismo não-sindrômico.

    Esse trabalho confirma a plasticidade dos neurônios humanos, capazes de se adaptar e reverter defeitos morfológicos e funcionais. É mais uma forte evidência de que o “estado autista” não é permanente, e pode ser reversível. Por muito tempo se acreditou que as síndromes genéticas do desenvolvimento seriam simplesmente incuráveis.

    Abrimos precedente para a medicina personalizada para o espectro autista. Ao combinar a reprogramação celular com a genômica, conseguimos detectar vias metabólicas que estariam implicadas no quadro clínico, possibilitando receitar medicamentos e doses adequadas para cada individuo. Pode parecer ficção científica, mas não é. Num futuro próximo, cada autista terá seu genoma sequenciado e seu “minicérebro” em laboratório para estudo e testes de drogas.

    Não sei o quanto o Jô Soares acompanha os avanços na pesquisa sobre o autismo, mas com certeza aprendemos muito nesses 50 anos. Compreendemos melhor as bases genéticas do autismo e sabemos que o determinismo genético não tem a última palavra. Desmistificamos as vacinas como causadoras do autismo e aprendemos mais sobre como outros fatores, como idade dos pais, podem contribuir para a frequência de autismo na população humana. Estamos vivenciando uma transformação conceitual que, em geral, precede movimentos revolucionários na medicina.

    *Imagens: Alysson Muotri

  • Naturalmente obcecados

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    Recentemente, uma das minhas alunas me perguntou como balancear a vida acadêmica com a vida pessoal. A pergunta faz sentido e me levou a uma reflexão. Por um momento, pensei o seguinte antes de responder.

    Poucos sabem, mas cientistas da área biológica tornam-se quase que escravos voluntários do laboratório, principalmente pelo longo tempo que leva para concluir os experimentos. Cientistas fazem parte da classe que menos ganha por hora, justamente por causa desse elevado número de horas no trabalho. Durante o período no laboratório, as pessoas se transformam, a convivência cria amigos ao mesmo tempo que gera inimigos, limites físicos e mentais são colocados a teste, casamentos começam e acabam, bebês nascem, e no final do dia, um pouco do conhecimento sobre nosso universo é acrescentado. Esse nobre sentimento de contribuição para a humanidade, mistura-se com sentimentos menos nobres, como ego, orgulho e vaidade.

    Sempre quando uso a palavra “medíocre”, alguns colegas se incomodam, pois assumem um tom pejorativo. Então, antes de continuar, deixo claro ao leitor que o uso de “medíocre” aqui se refere a média, a mediana, aonde a grande maioria se encontra. Portanto, a grande maioria dos cientistas são medíocres. Assim como a grande maioria dos médicos, dos políticos, etc. São medíocres porque suas ações individuais tem um baixo impacto, com uma contribuição pequena ao se comparado aos não-medíocres. Reconhecemos os cientistas medíocres porque estão, em geral, confortáveis. São eles os responsáveis pela maior parte do conhecimento gerado pela humanidade. São imprescindíveis para a ciência, mas caminham num ritmo lento, pois nunca deixam a ciência em primeiro plano.

    Felizmente, para a humanidade, existe uma outra classe de cientista, quase uma subespécie rara. São aqueles naturalmente obcecados. Essa classe é movida por algo, inexplicável ainda, que se manifesta na busca incansável do saber. Não existe balanço na vida pessoal e profissional – tudo faz parte da mesma coisa, dentro e fora do laboratório. Os obcecados querem saber mais, sempre envolvidos com projetos grandiosos: Como um determinado gene funciona? Como o cérebro se organiza? Cada pequena conquista no conhecimento alivia a ansiedade momentaneamente. Em geral, começam a trabalhar cedo e terminam tarde. São conhecidos como ratos de laboratório. Trabalham compulsivamente e não conseguem parar até encontrar uma solução para o problema investigado.

    Ao contrário dos cientistas medíocres, os obcecados não são equilibrados. A busca insana por grandes questões em ciência é arriscada. Muitas carreiras são prejudicadas pelo alto risco ou pela competição nesse ambiente, infelizmente. Mas a obsessão traz diversos benefícios para a humanidade, os chamados saltos do conhecimento, quando alguém descobre algo que altera a forma de pensarmos sobre um assunto especifico, mostrando um lado ainda não explorado. Dessa ciência heroica surgem insights que explicam determinado fenômeno, trazem a cura de doenças. Vale ressaltar que as descobertas dos obcecados são feitas, na maioria das vezes, baseando-se em fatos reportados pelos cientistas medíocres. Por isso mesmo, as duas categorias são da mesma importância e devem sempre coexistir.

    De volta a realidade, respondi que o balanço entre a vida acadêmica e pessoal iria depender do tipo de cientista que você é, ou quer ser.

Autores

  • Alysson Muotri

    Biólogo molecular formado pela Unicamp com doutorado em genética pela USP. Com Pós-doutorado em neurociência e células-tronco no Instituto Salk de pesquisas biológicas (EUA). É professor da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia.

Sobre a página

No blog, os avanços da ciência e os desafios da nossa espécie são traduzidos em posts sob medida para despertar a paixão pelo conhecimento.