A revolução dos minicérebros
Se você não estava isolado do mundo ou hibernando semana passada, deve ter ouvido falar da criação de minicérebros humanos em laboratório. Essa nova ferramenta promete ser a grande vedete no tratamento de doenças neurológicas e genéticas, uma revolução na medicina.
Formados a partir de células-tronco pluripotentes, reprogramadas de células periféricas (sangue, polpa de dente, pele etc) do próprio individuo, esses organoides são criados na placa de Petri, seguindo uma complexa receita química. Cada passo é importante e, dessa forma, consegue-se recapitular o desenvolvimento embrionário da pessoa em laboratório. Muito da técnica é ainda empírico, pois as células-tronco fazem a maior parte do processo sozinhas, se auto-organizam em estruturas cerebrais tridimensionais de forma espontânea, muito possivelmente seguindo suas instruções genéticas.
A similaridade com o cérebro humano impressiona, mas é ainda uma versão miniatura, do tamanho das bolinhas de algodão que cismam em aparecer na sua malha. Isso porque ainda não temos as condições ideais para manter os minicérebros crescendo por muito tempo. Depois de um certo tempo, observamos que o centro das esferas torna-se escuro, um sinal de que as células estão morrendo devido a falta de nutrientes que só chegam por difusão. Acredito que no futuro iremos melhorar a tecnologia e criar estruturas de circulação, semelhantes a veias e artérias, que irão irrigar esses minicérebros e permitir seu crescimento. Ainda não estamos lá.
Mas a escala menor também tem suas vantagens. Podemos criar literalmente milhares de minicérebros num pequeno frasquinho. E eles podem ser usados para testes de drogas em plataformas miniatura que permitam a comparação paralela simultaneamente. Esse tipo de escala é passível de automação, algo bem visto pelas indústrias farmacêuticas, por exemplo. Além do teste de drogas para eventuais doenças neurológicas, esse modelo permite uma analise do impacto de drogas ambientais (toxinas, fertilizantes etc) no desenvolvimento embrionário humano. Nosso laboratório consegue dizer rapidamente se existem toxinas que afetariam o cérebro embrionário em determinada amostra ambiental, fornecendo um selo de qualidade que deverá ser obrigatório para todos os futuros produtos, artificiais ou não, em alguns anos. Lógico que o modelo tem limitações, afinal os minicérebros não funcionam num sistema interconectado com outros tecidos (sistema imune, por exemplo). Muitas dessas limitações serão resolvidas num futuro próximo.
Nosso grupo mostrou pela primeira vez que esse tipo de tecnologia pode ser muito útil para a medicina. Criamos minicérebros de pacientes com a síndrome do MECP2 duplicado, uma doença rara e severa, que atinge pessoas desde o nascimento. Não há cura ou remédios para essa síndrome, tudo o que os médicos fazem é tentar manter o individuo estável dentro do possível. Modelos animais para essa síndrome já existem há quase uma década, mas nunca ofereceram grandes insights no mecanismo molecular ou celular da doença pois não reproduzem exatamente a condição humana.
Pois bem, com esse modelo, descobrimos que os neurônios nesses minicérebros são capazes de estabelecer um maior número de conexões nervosas (contatos sinápticos) comparado ao grupo controle (minicérebros derivados de pessoas sem a doença), causando uma alta sincronicidade das redes neurais. Essa sincronicidade foi medida diretamente usando plataformas com multi-eletrodos impressos em chips. Os eletrodos capturam o sinal elétrico que viaja pelos neurônios, como se fosse um eletroencefalograma (EEG). A alteração sináptica e o excesso de sincronicidade são provavelmente os causadores dos problemas neurológicos nos pacientes. O próximo passo foi encontrar uma forma de corrigir os defeitos. Testamos cerca de 40 drogas e encontramos uma que reverteu as alterações neurais de forma eficiente. É um excelente ponto de partida para futuros ensaios clínicos.
O trabalho aconteceu no meu laboratório na Universidade da Califórnia ao longo de quase cinco anos. Foi uma colaboração internacional, com diversos pesquisadores, inclusive alguns brasileiros. Destaco a atuação dos doutores Cassiano Carromeu e Cleber Trujillo, dois cientistas de alto calibre que se dedicaram de forma excepcional para a conclusão do trabalho. Pelo nosso colaboratório já passaram mais de 50 profissionais brasileiros, a grande maioria voltando ao país e levando bagagem tecnológica. Por causa deles, já temos inclusive grupos de pesquisa brasileiros fazendo minicérebros, o que coloca o Brasil em posição de destaque na América Latina.
É uma pequena, mas significante, amostra de como a colaboração internacional pode ser usada para acelerar o desenvolvimento cientifico. Um colega brasileiro alertou para o fato de que nossas colaborações com o Brasil somam, em fator de impacto dos jornais publicados, um valor maior do que todo o programa bilionário “ciência sem fronteiras” do governo brasileiro. Não sei se a informação é correta, mas se for sugere que o Brasil deveria repensar a forma de colaborar com laboratórios no exterior.
Termino com uma visão filosófica e provocativa dessa área cientifica. Como quase sempre, a ciência avança de forma não-linear, e muitas vezes nos pega de surpresa, sem deixar muitas chances para a reflexão sobre aspectos fundamentais dos dados gerados. Uma pergunta interessante seria se esses minicérebros teriam a capacidade de pensar, ou se teriam consciência da própria existência numa placa de petri. Apesar de rudimentares, as estruturas cerebrais estão lá, principalmente regiões do córtex frontal, responsáveis por uma série de funções cognitivas altamente sofisticadas. Será essas redes nervosas seriam o principio da consciência humana?