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  • Neuronal Hubs

    Até pouco tempo atrás, tentar desvendar as vias de informações neuronais parecia impossível. Isso porque o cérebro humano possui bilhões de neurônios que fazem milhares de conexões nervosas entre si. Essas interações são responsáveis por trilhões de sinapses, uma complexidade quase que inexplicável.

    Mas da mesma forma que a maioria dos aviões passam por hubs de aviação, as informações no cérebro trafegam por caminhos conhecidos. Um trabalho americano recente mostrou que 70% de todo fluxo de informação elétrica cortical passa por apenas 20% das rotas neuronais na mesma região. Essa observação sugere que exista um tipo de sub-rede nervosa, responsável pela linguagem, aprendizado e memória.

    O trabalho foi um misto de eletrofisiologia, aonde os cientistas “ouviram” a informação elétrica de 500 neurônios do córtex somatosensorial, registrando um volume grande de informação, numa região particularmente pequena do cérebro. Os dados foram usados em modelagens computacionais para gerar possíveis redes com o fluxo de informação encontrado. Esses modelos mostraram que a forma mais eficiente seria através desses hubs neuronais. Como consequência, foi possível inclusive distinguir a direção da informação, criando-se mapas com as conexões possíveis. Um ponto importante desse estudo é que ele não se restringiu a regiões corticais distantes, mas também mostrou que os hubs existem em micro-redes ou micro-estruturas locais.

    Esses “hubs neuronais” seriam cruciais para entender como funcionam as regiões com tráfego pesado de informação cortical. A ideia é que existam neurônios seletivos que estariam orquestrando essas redes de forma eficiente. Ou seja, apesar do alto nível de informação, apenas alguns neurônios seriam realmente importantes pela manutenção desse tráfego. Por isso, é também uma possível explicação do porque essas redes neuronais seriam tão vulneráveis, afinal, pequenos defeitos poderiam causar grandes estragos no sistema. O trabalho cria hipóteses evolutivas interessantes, por exemplo, a de que nosso cérebro parece favorecer a eficiência entre vulnerabilidade.

    O trabalho foi feito em roedores, mas sabe-se que esse tipo de trânsito pesado também existe em outros mamíferos, inclusive no cérebro humano. Por isso, acredita-se que o trabalho irá nos ajudar a desvendar como doenças neurodegenerativas, com perdas de neurônios, afetam a eficiência das redes nervosas. O estudo também gera hipóteses interessantes para doenças do neurodevenvolvimento, aonde mutações genéticas sutis poderiam causar um mal-funcionamento de neurônios essenciais nas redes, como é o caso do espectro autista. Para entender como esses neurônios mantém a informação no cérebro fluindo de forma dinâmica, será necessário entender como os hubs se coordenam para controlar o fluxo de informação.

  • Não deixe seu filho cabecear

    Um homem pula para cabecear durante treino de futebol em meio a neblina em um parque público de Kolkata, na Índia
    Sei que estou correndo o risco de me tornar um neurocientista pouco popular no país do futebol, mas acho que todo pai cujo filho joga e gosta de futebol, você deveria considerar essa opinião.

    Conforme a ciência avança, vamos descobrindo quais são os fatores que influenciam nosso cérebro e nossa saúde em geral. Por exemplo, na década de 60 a ciência mostrou que fumar é prejudicial à saúde do fumante e daqueles que o rodeiam. Por causa disso, a sociedade optou por evitar fumantes em lugares fechados. Também sabemos há quase meio século que o álcool afeta o desenvolvimento do embrião.

    Consequentemente, evitamos o consumo de bebidas alcoólicas durante a gestação. Conforme evoluímos cientificamente, ficamos mais sofisticados socialmente. O acesso a informação e ao conhecimento faz com que abandonemos práticas antigas ou tradicionais por uma atitude mais progressista e saudável.

    Nas últimas duas décadas, diversos trabalhos científicos revelaram que impactos repetitivos na cabeça durante certas práticas esportivas, colocam os atletas em risco de danos cerebrais permanente. Se uma criança pratica o cabeceio durante jogos de futebol, ela está, com certeza, dentro dessa área de risco.

    Estudos com outros esportes, como boxe e futebol americano, deixaram esse fator de risco muito claro: lesões cerebrais são detectadas imediatamente após o trauma, mesmo que o individuo não sinta nada e permaneça assintomático. As consequências mais sérias, podem aparecer anos mais tarde, já na fase adulta, e estão diretamente relacionadas a frequência e intensidade das batidas.

    O trauma repetitivo, mesmo com intensidade baixa, contribui para que as lesões celulares aumentem, causando traumas irreversíveis. É o que chamamos hoje em dia de Encefalopatia Traumática Crônica (ETC), descrita pela primeira vez em 2002. Os sintomas são graves, e incluem depressão, demência, tremores e pensamentos suicidas. A condição também está associada a tendência ao uso de drogas.

    A ETC é vista hoje como uma doença neurodegenerativa progressiva. Em 2009 a ETC foi detectada em diversos atletas. Em 2011, duas organizações de pediatria, uma Canadense e outra Americana, publicaram um manifesto contra a exposição infantil a lesões na cabeça durante a pratica esportiva.

    Em 2014 foi registrado o primeiro caso de um jogador de futebol com ETC. No mesmo ano, a Federação de Futebol dos Estados Unidos perdeu um processo judicial feito por famílias da Califórnia sobre negligência com lesões cerebrais e passou a recomendar a proibição das jogadas de cabeça em crianças menores de 10 anos, além de impor limites ao jogo aéreo com jogadores de 11 a 13 anos.

    Segundo o processo, em 2010 foram aproximadamente 50 mil jogadores de futebol em categorias estudantis que sofreram com lesões cerebrais, um número superior ao encontrado no basquete, beisebol e artes marciais. Infelizmente, a ação não conseguiu alterar as regras da FIFA, que não abordam esse assunto.

    Sabendo disso, profissionais de saúde passam a ter o dever de informar e educar as pessoas sobre os riscos associados a lesões na cabeça, incluindo-se aí o famoso cabeceio futebolístico. Ao informar um individuo adulto sobre os riscos de cabecear durante uma partida de futebol, ele tem livre-arbítrio para decidir o que quiser. O mesmo acontece quando explica-se sobre os riscos do cigarro e mesmo assim alguns optam por fumar. O cérebro humano somente amadurece durante os 18-25 anos.

    Temos idades legais para uma série de atividades, como votar, dirigir, fumar e ingerir álcool. Seguindo essa mesma lógica, acho que deveríamos proibir o cabeceio/jogo aéreo em nosso futebol infantil. Isso seria uma atitude sensata de proteção ao que temos de mais precioso em nosso país: o cérebro de nossas crianças, o único órgão que irá defini-las como indivíduos em nossa sociedade.

  • O mal das montanhas e os neurônios do Monge

    A doença do Monge é uma condição fisiológica que atinge mais de 140 milhões de pessoas que estão expostas a grandes altitudes (mais que 2.500 metros do nível do mar) por tempos prolongados. Nos Andes, a prevalência chega a 20%, sugerindo que a maioria dos “highlanders” são saudáveis. Porém, os que sofrem com o mal da montanha crônico são afetados por uma série de condições neurológicas, como fatiga, dor de cabeça, confusão mental e perda de memória. O quadro pode ser fatal se agravar para um edema cerebral, por exemplo.

    É impossível prever quais indivíduos são mais susceptíveis a síndrome do Monge. Em geral, descobre-se apenas quando já está em altas altitudes. Também não há muito o que fazer, não existe um tratamento ideal ou cura para a condição. Para entender um pouco mais sobre as bases neuro-genéticas responsáveis pelos sintomas, nosso grupo colaborou com um outro laboratório, especializado na fisiologia humana em condições limitantes de oxigênio.

    O grupo nos procurou interessado em reproduzir nosso trabalho com autismo, no modelo da doença do Monge. Ou seja, reprogramando células da pele de indivíduos afetados e saudáveis em neurônios no laboratório.

    O primeiro desafio foi conseguir biopsia de pele dessa população andina. Foi necessário um trabalho de logística intenso, com coleta do material na região de Cerro de Pasco, no Peru, com uma elevação de 4.300 metros e transferência do tecido para San Diego, Califórnia. Tudo em tempo recorde, usando todo transporte possível, inclusive mulas. Assim que chegaram, as células da pele desses indivíduos foram reprogramadas para um estágio de pluripotência induzida, semelhante a de células-tronco embrionárias.

    As células iPS foram então induzidas a se especializar em células do sistema nervoso, no caso neurônios excitatórios da região cortical. Em uma análise panorâmica morfológica, neurônios derivados dos pacientes eram muito semelhantes aos do grupo controle. Porém, do ponto de vista funcional, observamos uma alteração significativa.

    Neurônios derivados dos pacientes eram menos excitáveis que os controle, ou seja, precisavam de mais tempo para processar e transmitir a informação elétrica. Na tentativa de desvendar as possíveis causas desse defeito funcional, descobrimos que os neurônios dos pacientes apresentavam quantidades inferiores de canais de sódio, importantes para o funcionamento neuronal.

    Conforme previamente documentado por Carlos Monge ao descrever os sintomas em seus pacientes, o mal da montanha tem uma contribuição familiar e hereditária muito forte. É também mais frequente em homens europeus, comparado com outros grupos étnicos, sugerindo que o fator genético seja, de fato, relevante na fisiologia neural daqueles afetados pela condição.

    Validamos alguns dos genes candidatos, mostrando que esses podem influenciar diretamente na regulação dos canais de sódio em neurônios humanos.

    O trabalho acaba de ser publicado (Zhao e colegas, "Neuroscience" 2015) e pode levar os afetados a melhores tratamentos, usando-se drogas que atuem diretamente nos canais de sódio. Também promete ser uma ferramenta de diagnóstico interessante, auxiliando na seleção de profissionais que possam ser resistentes a altas altitudes, como atletas, por exemplo.

    Foto: Martin St-Amant/Creative Commons

Autores

  • Alysson Muotri

    Biólogo molecular formado pela Unicamp com doutorado em genética pela USP. Com Pós-doutorado em neurociência e células-tronco no Instituto Salk de pesquisas biológicas (EUA). É professor da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia.

Sobre a página

No blog, os avanços da ciência e os desafios da nossa espécie são traduzidos em posts sob medida para despertar a paixão pelo conhecimento.