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  • Nossos cérebros coloridos

    Milho criouloAinda aprende-se na escola que cada um de nós possui um genoma distinto. Não é bem assim. Cada um de nós possui diversos genomas distintos. Bom, pelo menos em nossos cérebros.

    Durante a evolução, nossas células acumularam fragmentos de DNA que possuíam um comportamento inusitado, eram capazes de se movimentar dentro do núcleo da célula, alterando sua posição no genoma. A descoberta desses “genes saltadores” foi responsável pelo prêmio Nobel de Medicine para a americana Barbara McClintock, em 1983 (a única mulher a receber o prêmio sozinha nessa categoria).

    Barbara havia observado o movimento desses elementos transponíveis no genoma do milho, causando a variação de cores entre os grãos na planta selvagem. Isso aconteceu na década de 50. Naquela época, as descobertas da pesquisadora foram vistas com certo descrédito pela comunidade cientifica, o que causou um atraso de mais de 30 anos no reconhecimento de seu mérito cientifico. Ela chegou a escrever em seu diário que “era preciso esperar o momento certo para mudanças conceituais”. Apesar do merecido mas tardio prêmio Nobel, o conceito de transposição gênica em células somáticas, revelado por Barbara, fora tido como um fenômeno restrito a certas plantas, sem impacto no reino animal.

    Somente em 2005, quando um destemido pesquisador brasileiro mostrou que o fenômeno não era restrito a plantas, mas acontecia também em mamíferos (Muotri e colegas, Nature), foi quando o interesse nessa área renasceu. Afinal, o tecido alvo dessa atividade era o cérebro. A atividade desses elementos saltadores pode influenciar o comportamento dos neurônios por diversas maneiras: alterando a ação de certos genes, duplicando regiões no genoma ou mesmo interferindo na migração cromossomal.

    A possibilidade de termos um cérebro “imperfeito” é assustadora. Assim, como o trabalho de McClintock, a descrição da mobilização genética no cérebro também foi recebida com suspeita, afinal não era apenas o dogma da genética que estava em cheque, mas o da neurociência também, que previa um cérebro estável do ponto de vista molecular. O momento não era ainda oportuno para uma nova revolução conceitual.

    Passaram-se dez anos e agora um novo trabalho, publicado na revista "Cell" desse mês (Upton e colegas, 2015) confirmou que neurônios do cérebro humano são realmente geneticamente distintos. Isso mesmo, nosso cérebro é um mosaico genético, assim como o milho. Essa validação só foi possível com o surgimento de novas técnicas de sequenciamento genético, que permitem a leitura do genoma de células individualizadas. O trabalho da Cell mostra justamente isso, com um nível de detalhe genético impressionante. O grupo estima que cada neurônio humano possa acomodar, em média, 13.7 novas mutações somáticas, ou seja, únicas do individuo.

    A atividade dos genes saltadores acontece durante o desenvolvimento da pessoa. Como os neurônios são mantidos por toda a vida do individuo, acabam acumulando essas cicatrizes genéticas, deixando-os geneticamente únicos entre os outros bilhões de células em nossos cérebros. Essas alterações concentram-se em regiões ricas em sequências regulatórias dos genes neuronais, sugerindo uma relevância funcional.

    Alterações somáticas em nossos genomas também acontecem em cânceres, por exemplo. Por causa disso, essas mutações são geralmente associadas a algo ruim, danoso para o tecido. Dados mais recentes sugerem que estariam implicados também em doenças neurológicas complexas, como autismo e esquizofrenia, afetando regiões discretas do cérebro. Essas observações são realmente importantes e permitem um melhor conhecimento das doenças envolvidas. Porém, a conotação negativa do passado pode estar mascarando uma visão mais abrangente desse fenômeno, mesmo na condição saudável.

    Ainda não sabemos para que servem as diversas cores nos grãos de milho selvagem, o mesmo vale para a função dos genes saltadores no cérebro. Talvez o cérebro não apenas tolere essas mutações somáticas, mas dependa delas para uma constante adaptação a novos ambientes. Se confirmada, essa hipótese deixaria nosso cérebro ainda mais plástico e extraordinário.

    Foto: Reprodução/Globo Rural

  • O segredo dos velhinhos que deram olé no Alzheimer

    Idosos participam de projeto com estudantes da Unesp em AssisNeurônios são células do cérebro que não se dividem e portanto, nossos neurônios nos acompanham por toda a vida. A divisão celular permite que certos tecidos rejuvenesçam, eliminando os efeitos deletérios do tempo. Como nossos neurônios não se dividem, eles acabam acumulando uma série de pequenos defeitos metabólicos ao longo da vida. Essa é uma das possíveis explicações do porquê a idade avançada seja um dos fatores de risco em certas doenças neurodegenerativas, como o mal de Alzheimer, condição caracterizada por uma severa perda de memória.

    A perda de memória no mal de Alzheimer é, em geral, precedida por uma fase de neurodegeneração cumulativa no cérebro, ainda sem grandes consequências para a independência da pessoa. Pois bem, para entender se essa fase pré-Alzheimer é uma involução natural do cérebro humano com o passar dos anos e se existem formas de evitá-la, um grupo decidiu estudar o cérebro de “supervelhinhos”.

    Esses seriam senhores e senhoras com mais de 80 anos, cuja capacidade cognitiva (testes de memória) seria igual ou melhor a de pessoas com 50-60 anos de idade. Assume-se que pessoas assim tenham conseguido superar a fase pré-Alzheimer de alguma forma. Os resultados com a análise de cérebro post-mortem desse grupo foram publicados recentemente (Gefen, e colegas, The Journal of Neuroscience, 2015).

    De acordo com a primeira autora do artigo, a interação com esses supervelhinhos era extraordinária. Não porque a memória deles era extraordinária, mas sim porque eram pessoas com uma sabedoria e humor contagiantes.

    À parte essa observação, o grupo era bem heterogêneo, alguns fumavam, outros não, alguns tinham uma dieta saudável, outros não se importavam com isso, uns sedentários e outros fisicamente ativos, com diploma universitário ou sem, e por aí vai. Alguns anos após o recrutamento, cinco deles já morreram e haviam concordado em doar seus cérebros para a pesquisa, o que revelou algo bem interessante. Apesar de serem fisicamente velhinhos, como esperado pela idade avançada, os cientistas concluíram que o cérebro havia permanecido com características joviais.

    Uma das grandes descobertas dessa analise revelou que o cérebro dos supervelhinhos tinham uma diferença peculiar, tinham cerca de cinco vezes mais de um tipo de neurônio gigante conhecido como neurônios von Economo. O dado corrobora as observações feitas em vida através de um escâner cerebral: a região onde os neurônios von Economo residem no cérebro, o córtex cingulato anterior, eram 6% mais desenvolvida nos supervelhinhos. Essa região do cérebro está relacionada na detecção de erros, atenção, compaixão e motivação.

    Esses neurônios gigantes foram reportados inicialmente pelo anatomista ucraniano Vladimir Betz em 1881, mas foi somente na década de 20 que o austríaco Constantin von Economo fez uma análise detalhada dessas células. Infelizmente, esse trabalho ficou esquecido por muito tempo e foi somente nos anos 90 que os pesquisadores redescobriram essas células, batizando-as de neurônios von Economo em 2005.

    Esses neurônios são morfologicamente diferentes, longos e finos, com ramificações que se estendem por diversas regiões do cérebro. Pessoas com demência ou alcoólatras tem 60% a menos desses neurônios do que a média da população humana.

    Até hoje, não sabemos para que servem exatamente, mas existem evidências sugerindo que seriam como vias expressas de sinalização elétrica no cérebro. Uma hipótese sugere que essa comunicação nos ajude a controlar diversos impulsos e nos mantém focados para atingir objetivos a longo prazo. Outros veem nos neurônios von Economo a chave para um cérebro mais otimista e, consequentemente, mais social e jovial. A possibilidade de que eles ajudem a manter a lucidez e memória num cérebro envelhecido é intrigante.

    O aumento de neurônios von Economo pode ser a chave para manter o cérebro humano funcional por mais tempo. Seria interessante saber se esse excesso neuronal é variável durante a vida ou se estaria geneticamente codificado. Pela característica heterogênea dos participantes, diria que o fator genético deva ser forte. Uma forma experimental de resolver isso sem depender de cérebros humanos seria através da reprogramação genética.

    Células de pluripotência induzida (iPS) dos supervelhinhos e grupos controle, com ou sem Alzheimer, poderiam ser usadas para gerar neurônios von Economo. Se as células iPS dos supervelhinhos produzirem mais desse tipo neuronal, é uma forte evidência de que essa característica teria uma base genética.

  • Imune ao estresse?

     

    Existem pessoas que conseguem lidar muito melhor com os reveses da vida do que outras. Essa atitude “zen” pode ter uma base genética e é provável que os segredos de como não se deixar levar pelo estresse esteja escondido em algum circuito neuronal de nossos cérebros. Ou não.

    Em um trabalho recente, publicado por um grupo americano liderado por Miles Herkensham, demonstrou-se uma forma contra-intuitiva de lidar com o estresse via sistema imune, pelo menos em camundongos ('Brachaman e colegas', Journal of Neurosciences 2015). O grupo queria saber se as células do sistema imune poderiam reter memorias de um estresse psicológico quando transplantadas num outro animal.

    Os pesquisadores transplantaram células branca sanguíneas (linfócitos) de um camundongo com comportamento depressivo em uma outra linhagem animal geneticamente alterada para não rejeitar as células transplantadas. Enquanto células oriundas de um animal controle (não depressivo) apresentaram efeito nulo, aquelas derivadas de animais depressivos deixaram os hospedeiros mais sociais, menos ansiosos e com menor taxa de inflamação. Mais intrigante ainda, as células transplantadas alteraram o nível de neurogenesis (produção de novos neurônios) no cérebro dos camundongos recipientes. Como os linfócitos estariam alterando o cérebro e o comportamento dos animais hospedeiros é um mistério.

    Num outro trabalho foi mostrado que níveis altos de uma molécula conhecida como interleucina 6 (IL-6) são encontrados em animais que evitam interações sociais, após contatos estressantes com um animal dominante (Hodes e colegas, PNAS 2014). Ao transplantar células do sistema imune de animais estressados em animais controles, estes últimos passaram a ter comportamento depressivo e anti-social, mesmo sem nunca ter interagido com um roedor dominante. Ao bloquear o IL-6 o transplante perdia o efeito, indicando que o IL-6 é uma molécula chave nesse processo de comunicação do sistema imune e nervoso. Não é surpresa que os níveis de IL-6 são também bastante elevados em crianças autistas e indivíduos depressivos.

    Esses dois estudos sugerem que diferenças individuais no sistema imune podem afetar a susceptibilidade ao estresse. Se os dados em camundongos puderem ser realmente extrapolados para humanos (o que ainda não sabemos), podemos concluir que nossas respostas emocionais a diversos estresses podem ser amenizadas através de intervenções via sistema imune periférico.

    A história é semelhante aos microorganimos que habitam nossos intestinos e foram relacionados a comportamentos anti-sociais em camundongos. Ainda não sabemos se isso realmente se aplica em humanos, mas foi o bastante para fortalecer a idéia de que bactérias intestinais estariam implicadas em autismo. Ainda é cedo para tirar conclusões desse tipo. De qualquer forma, acho que estamos vivenciando uma era cientifica menos neurocêntrica, e que começa a flertar com a interação de diversos sistemas.

    Foto: Voisin/Phanie

Autores

  • Alysson Muotri

    Biólogo molecular formado pela Unicamp com doutorado em genética pela USP. Com Pós-doutorado em neurociência e células-tronco no Instituto Salk de pesquisas biológicas (EUA). É professor da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia.

Sobre a página

No blog, os avanços da ciência e os desafios da nossa espécie são traduzidos em posts sob medida para despertar a paixão pelo conhecimento.