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  • Conheça o laboratório de Alysson Muotri na Califórnia

    No vídeo abaixo, Alysson Muotri apresenta seu laboratório na Universidade da Califórnia em San Diego e revela que a coluna Espiral vai virar livro. Em seguida, confira o texto do colunista sobre seu mais recente trabalho publicado na revista "Nature".

     



    O cérebro gregário
    Você já percebeu que não existem muitos projetos com contribuição de toda humanidade? Talvez você diga “Olimpíadas”, “Ida do homem à Lua” ou “Projeto Genoma”, e mesmo que esses sejam válidos, ainda seriam muito poucos. Sempre me questionei o porque de a humanidade ser incapaz de produzir de forma colaborativa. Logicamente sofremos com questões sócio-econômicas, como a divisão do mundo em países, mas acredito que a maior limitação esteja mesmo no cérebro humano, incapaz de funcionar de forma hipercolaborativa.

    Na última semana, um novo trabalho, liderado pelo meu grupo na Universidade da Califórnia, reportou um mecanismo relacionado a capacidade do cérebro humano em socializar.
    Nesse trabalho (Chailangkarn e colegas, Nature 2016), usamos a reprogramação celular para recriar o desenvolvimento neural de crianças com a síndrome de Williams. Essa é uma síndrome rara (1 em cada 10,000 nascimentos), causada por uma perda de ~25 genes no cromossomo 7, o que resulta em baixo rendimento intelectual e problemas de coração. Além disso, os portadores da síndrome apresentam dimorfismo na face (nariz pontudo, queixo fino, olhos grandes e boca larga), estão sempre sorrindo e fazendo contato com os olhos. Costumo chamar de “síndrome do Peter Pan”. Esses pacientes também são muito atraídos por música. P próprio Oliver Sacks escreveu sobre o assunto de forma grandiosa.

    Mas a síndrome é ainda mais interessante porque apresenta uma consequência única, uma característica que não existe em nenhuma outra condição humana: os afetados são supersociais, com pouca ou nenhuma inibição social. Isso mesmo, são indivíduos atraídos por estranhos, carismáticos e extremamente dóceis e ingênuos. Conseguem memorizar rostos muito facilmente além de possuir uma linguagem sofisticada, acima da média. Eles são muito vaidosos e têm um carinho e empatia admirável por aqueles que estão sofrendo.

    Escolhemos trabalhar com a síndrome de Williams para fazer um contraste com o espectro autista, em que indivíduos são, em geral, pouco sociáveis e com problemas de linguagem. Imaginamos que estudando o desenvolvimento neural desses pacientes poderíamos aprender algo sobre o cérebro social humano. Digo isso porque, ao contrario de outros primatas, como o chimpanzé, os humanos evoluíram o córtex cerebral para aumentar o processamento social em quase 3 vezes mais. Isso foi essencial para nossa espécie se tornar colaborativa e criar coisas muito superiores a outras espécies (poesia, musica, tecnologia etc).

    No trabalho, descobrimos que um dos 25 genes alterados na síndrome de Williams, o FZD9, é o responsável por má formações no córtex, levando a neurônios ultra conectados, com maior numero de sinapses. Isso tudo foi feito através da reprogramação genética de células de polpa-de-dente doadas para o projeto e convertidas em mini-cérebros in vitro. Os resultados foram validados através de ressonância magnética e em pedaços de tecidos de cérebros postmortem de indivíduos com portadores da síndrome.

    Investigamos o FZD9 e descobrimos vias moleculares que atuam durante o desenvolvimento neural humano responsável pelos circuitos socais. O impacto disso é difícil de avaliar. De certa forma, descobrimos o que origina um cérebro gregário, de fácil integração, independentemente da origem étnica ou cultural. Ou melhor, descobrimos um gene antirracismo, o gene da amizade, da tolerância.

    É interessante notar que o amor pelo próximo pode ser causado por um defeito genético, que faz com que humanos se conectem independentemente da aparência, revelando como seria a humanidade sem segundas intenções. Além disso, na prática, estamos usando essas vias para descobrir drogas que sejam eficazes no tratamento do autismo e outras síndromes do espectro, por exemplo.

    Acredito esse trabalho que vem num momento oportuno. Entender como funciona o cérebro social humano pode ter um valor inesperado, veja meu raciocínio:

    Vivemos numa era em que a tecnologia tem forças distintas, se por um lado nos une como espécie, também nos segrega e nos destrói. Os casos recentes de ódio nas redes sociais, terrorismo, racismo e radicalismo religioso são bons exemplos. O preconceito foi muito útil durante a evolução humana, quando nossos antepassados em pequenos grupos precisam lutar por fontes de alimentos restritas. Esse tipo de comportamento não tem mais espaço em nossa sociedade atual – nos tornamos perigosos para a nossa própria espécie. Infelizmente, a evolução é lenta e não iremos perder essa característica tão cedo. Dependemos então da evolução cultural para combater o preconceito, o que também leva tempo e, convenhamos, não é lá muito eficiente.

    Nossos dados com a WS revelaram vias moleculares envolvidas no cérebro gregário. É fascinante imaginar que um dia poderemos alterar essas vias farmacologicamente e nos tornar mais tolerantes uns com os outros. Poderíamos inclusive usar isso de forma seletiva, durante encontros entre líderes mundiais, por exemplo. Vale lembrar que a humanidade sempre usou moduladores de neurotransmissores para alterar seu estado. Alguns tomam café para ficar com melhor humor ou uma bebida para ficar mais relaxado e sociável.

    E como seria viver hoje em dia em comunidades livres de preconceito, repletas de amigos? Será que conseguiríamos realizar projetos mais audaciosos ao aumentarmos nosso poder de colaboração? Até aonde iria a capacidade humana se nos sentíssemos realmente parte da mesma família, conectados?

    É bem provável que o segredo para o futuro de nossa espécie esteja no cérebro social humano. Acredito que um simples defeito genético possa mostrar o caminho.

     

  • Lítio: do Big Bang ao cérebro

    Salar de Uyuni, o maior salar do mundo, localizado na Bolívia

     

     

     

     

     

     

     

     











     

     

    Foto: Montes de sal no Salar de Uyuni, na Bolívia, onde se calcula que esteja metade da reserva de lítio do planeta.


    Lítio, um dos mais simples átomos oriundos de explosões astronômicas durante a origem do universo há milhões de anos atrás, é um dos remédios psiquiátricos mais usados no mundo. Do Big Bang para seu cérebro, a história do uso clínico do Lítio mostra como um simples elemento da natureza pode alterar quem nós somos e nossa capacidade de interação com o mundo.

    Lítio é uma molécula simples, carregada positivamente e muito semelhante ao sódio. É o terceiro átomo da tabela periódica. É encontrado na natureza dissolvido na água em pequenas quantidades, ou em toneladas, encontradas em certas regiões do planeta, como nos desertos de sais da Bolívia. O Lítio era usado de forma empírica na medicina, antes mesmo de ser conhecido quimicamente. Por séculos foi recomendado a pessoas com distúrbios mentais, que consumiam o elemento naturalmente encontrado em certas “águas milagrosas” durante a Idade Média, até virar ingrediente principal em bebidas fortificadas com Lítio (7Up) no século 20. Mas não se preocupe, assim como a Coca-cola teve que remover a cocaína de sua formula, o Lítio foi retirado da 7Up em 1948.

    Com os resultados de ensaios clínicos controlados na década de 50, ficou claro que o elemento era capaz de estabilizar episódios maníacos em pacientes bipolares. Relatos epidemiológicos, também ligaram populações humanas que consumiam água com pequenas quantidades de Lítio naturalmente dissolvida, com a baixa frequência de indivíduos bipolares e episódios suicidas. É, desde então, o tratamento mais efetivo para controlar a síndrome bipolar e certos quadros depressivos. Mas o mecanismo de ação do átomo no cérebro ainda é desconhecido. Uma das hipóteses sugere que o Lítio atue como neuroprotetor, estabilizando contatos sinápticos em neurônios que controlam o humor. Faria isso auxiliando a regeneração axonal, melhorando o funcionamento das mitocôndrias (estruturas celulares responsáveis pela carga enérgica da célula), controlando inflamações ou participando na re-mielinização. Por causa desse espectro de ação, cientistas estão testando a eficácia do Lítio em outras doenças mentais, como o mal de Alzheimer ou a síndrome do X-Frágil. Mas os benefícios do Lítio dependem da dose correta, altas doses são toxicas para o organismo.

    O que mais me impressiona é que a capacidade do Lítio em modular o humor e crises compulsivas tem origens na explosão de estrelas durante o começo do universo. De alguma forma esse átomo persistiu durante milhões de anos no universo, sendo então dissolvido na água da Terra e, eventualmente, tornando-se uma pílula capaz de modificar a forma como nossos cérebros funcionam. Filosoficamente, estamos observando que as mesmas forças que contribuíram para modelar a formação do mundo, são responsáveis pela homeostasia de nossos cérebros. É muito provável que essas forças não apenas atuem no cérebro bipolar, mas no cérebro de todos os seres vivos.

  • O zika vírus e a microcefalia

    microcefalia jornal hoje

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

    Deu zica. Este ano o Brasil enfrenta um surto de recém-nascidos com microcefalia que é alarmante. Ao que tudo indica, essa epidemia está relacionada a um vírus emergente, o zika vírus, que está se espalhando rapidamente pelo país e pode ser o responsável por uma das piores catástrofes na área de saúde de todos os tempos. São mais de mil casos suspeitos de microcefalia em diversos estados, principalmente no Nordeste. A microcefalia é uma malformação incurável que causa redução do volume cerebral, com consequências graves e permanentes para o desenvolvimento do individuo. É grave porque afeta fetos em formação e o comprometimento é para vida toda.

    O zika vírus é um patógeno conhecido e identificado inicialmente em 1947 na floresta de Zika (Uganda), mas que desde 2007 estava restrito a África e Ásia. Esse vírus pertence ao gênero dos flavivírus, que inclui o vírus da dengue, febre amarela e do Nilo, e pode ser transmitido por um artrópode. No Brasil, são mais de 84 mil pessoas infectadas. No individuo adulto, o Zika pode passar despercebido, em alguns casos causando somente sintomas leves, como febre e dores pelo corpo. Não existe vacina para esse vírus.

    Após alguns meses de silêncio, o governo federal finalmente se manifestou sobre o problema. Com ajuda da Organização Mundial da Saúde e do CDC (Centro de Controle de Doenças) dos EUA, que se preocupa com uma eventual contaminação no continente americano, resolveram montar uma operação de emergência. De acordo com nosso atual ministro da Saúde, Marcelo Castro, o caos pode ser consequência direta de um descaso com o programa de combate ao mosquito Aedes aegypti – o mosquito da dengue, e potencial agente transmissor do zika vírus.

    Resolvi escrever sobre o assunto, refletindo sobre quais seriam as atitudes cientificas mais óbvias a serem tomadas. Isso não só seria uma oportunidade única para os cientistas brasileiros (pois o mecanismo de ação do vírus é ainda desconhecido), como permitiria que o governo investisse em soluções definitivas (ao invés de investir em evitar mosquitos). Os experimentos científicos descritos abaixo têm um baixo custo em comparação ao orçamento destinado ao extermínio de mosquitos e custos com futuros tratamentos para os afetados ao longo da vida.

    A primeira coisa a fazer seria buscar uma relação causal do vírus com o fenótipo dos pacientes, algo inédito na literatura mundial. Até agora, temos apenas uma correlação entre o vírus e material biológico dos pacientes. E essa evidência não é robusta: apenas dois fetos infectados com o vírus e com o diagnóstico de microcefalia por ultrassom existem até o momento. O vírus também foi encontrado em tecidos de um outro bebê com microcefalia que morreu ao nascer. Existem outras evidências circunstanciais vindas de outros países e que, juntas, tornam essa alternativa plausível. É possível que a versão do zika vírus brasileiro seja uma variante ou linhagem genética mais patogênica, selecionada através de algumas características da população nordestina, como exposição ao vírus da dengue ou ao mosquito transmissor.

    Mas a pergunta mais importante seria como o zika vírus causa microcefalia? Uma hipótese atraente seria que o zika vírus atravessasse a placenta, atingindo o feto em momentos críticos do desenvolvimento neural na gestação. O vírus poderia, por exemplo, infectar células do sistema nervoso central, causando a morte ou alterando o ciclo de células progenitoras neurais. Experimentos com modelos animais poderiam ajudar a confirmar essa correlação, mas o tempo de gestação humano é diferente da maioria dos animais em laboratório e ainda não sabemos se o vírus infectaria células nervosas de outras espécies.

    Um outro experimento possível é colocar o vírus diretamente em contato com “minicérebros” humanos. Felizmente o Brasil é um dos poucos países do mundo que já possui esse tipo de tecnologia, inclusive com participação privada, que poderia agilizar esses experimentos. Esse experimento apenas forneceria resultado interpretável caso o vírus causasse morte ou alteração na replicação e especialização de células progenitoras neurais. Um resultado negativo indicaria que o vírus deva atuar de forma indireta.

    Sinceramente, acho até mais provável que esse seja o caso, pois existem outros vírus já conhecidos que agem de forma indireta e causam problemas cerebrais. Nesse caso, o vírus não atingiria células progenitoras neurais diretamente, mas células da glia que, quando estimuladas, secretam moléculas imunológicas que afetam o desenvolvimento neural. Essa via pode também ser ativada pelo sistema imune da mãe quando infectada, e as moléculas imunológicas (não o vírus) seriam as responsáveis pela microcefalia. O mecanismo indireto é interessante do ponto de vista do vírus, pois sugere uma tentativa de coevolução. Uma análise genética, sequenciando o genoma da variante do zika brasileiro e comparando-a com as linhagens asiáticas e africanas, revelaria quais seriam os genes causadores da resposta imune e, consequentemente, da virulência inesperada no surto brasileiro.

    Se realmente descobrirmos que o zika vírus é modulado por sinalização do sistema imune, poderemos contra-atacar sua atuação durante a gravidez com certos anti-inflamatórios, por exemplo. Seria, com toda certeza, um plano de ação muito mais eficaz do que tentar combater o zika evitando mosquitos, estratégia que o Brasil fracassou no passado.

    Foto: TV Globo

     

  • Seria possível reconstruir o cérebro?

    Existe um grande debate entre os neurocientistas sobre a capacidade humana de reconstruir um cérebro. Alguns dizem ser impossível de criar artificialmente algo de tamanha complexidade. O argumento é que mesmo que todas as peças sejam identificadas e conhecidas, seria improvável determinar como as partes funcionam juntas. Outros, mais otimistas, acham que é uma questão de entender os princípios básicos e fundamentais para que se possa criar modelos computacionais de simulação que possam aprender com o novas informações para se alcançar o grandioso objetivo.

    Na última semana, a prestigiosa revista cientifica Cell publicou um artigo de 10 anos de 82 pesquisadores internacionais de 12 instituições diferentes, sugerindo a reconstrução funcional de um pedaço do cérebro. O trabalho, apoiado pelo organização europeia conhecida como Human Brain Project custou mais de 1 bilhão de dólares. É um dos artigos de neurociência mais longos da historia e acredito que serão poucos os pesquisadores que terão disposição de analisá-lo em detalhes.

    Uma das teorias é que déjà vu seria causado por pequenos espasmos no cérebroO time foi liderado pelo neurocientista Henry Markram, atualmente na escola politécnica federal de Lausanne. Parte da motivação de Henry veio do nascimento de seu filho, Kai, diagnosticado com autismo. Cansado da ciência tradicional, que busca mérito em publicações acadêmicas incrementais, Herny decidiu partir para algo cujo impacto na humanidade seria realmente mensurável e útil em futuras gerações.

    O trabalho de Henry é o primeiro rascunho da reconstrução digitalizada dos microcircuitos de uma região do córtex somatosensorial extraído do cérebro de um rato juvenil. A reconstrução usou princípios de organização celular e sinápticas para montar um algoritmo capaz de reconstruir em detalhes a anatomia e fisiologia, utilizando dados experimentais. A região reconstruída tem cerca de 0.3 mm3 e contém 31 mil neurônios, distribuídos em 55 camadas distintas morfologicamente com 207 subtipos de neurônios funcionais. As arborizações desses neurônios formam cerca de 8 milhões de conexões e mais de 37 milhões de sinapses ativas. A simulação em computador revelou um espectro de redes nervosas cujas atividades flutuam entre sincronia e caos, modulados por mecanismos fisiológicos. Esse espectro de redes tem a capacidade de se reconfigurar de forma dinâmica, dando suporte a teoria de que o neocortex usa diversas estratégias de processamento de informação ao mesmo tempo. Um vídeo sumarizando todas as etapas do processo pode ser visto aqui.

    O trabalho não deve ser considerado ainda como prova de principio que os cientistas conseguem recriar o cérebro humano, com cerca de 85 bilhões de neurônios, mas é um primeiro passo nessa direção. O objetivo é gerar uma ferramenta que possa codificar de forma digital as características desses neurônios e conexões que sejam comuns em todos os cérebros através de uma plataforma colaborativa virtual de neurocientistas. O próximo passo, talvez ainda mais futurístico, seja o de adicionar personalidade a esse programa e/ou situações que possam simular doenças neurológicas humanas.

    Porém, muitos cientistas não acreditam que o tour de force tenha valido a pena. Isso porque é difícil validar ou replicar os resultados. Tudo que foi mostrado no artigo da Cell pode ser apenas atividade aleatória e não uma simulação computacional como diz o trabalho. As futuras gerações é que irão confirmar ou não se tudo isso foi um grande desperdício.

  • A revolução dos minicérebros

    'Minicérebros' foram criados em laboratório a partir de células da pele de pacientes com a síndrome do MECP2

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     


    Se você não estava isolado do mundo ou hibernando semana passada, deve ter ouvido falar da criação de minicérebros humanos em laboratório. Essa nova ferramenta promete ser a grande vedete no tratamento de doenças neurológicas e genéticas, uma revolução na medicina.

    Formados a partir de células-tronco pluripotentes, reprogramadas de células periféricas (sangue, polpa de dente, pele etc) do próprio individuo, esses organoides são criados na placa de Petri, seguindo uma complexa receita química. Cada passo é importante e, dessa forma, consegue-se recapitular o desenvolvimento embrionário da pessoa em laboratório. Muito da técnica é ainda empírico, pois as células-tronco fazem a maior parte do processo sozinhas, se auto-organizam em estruturas cerebrais tridimensionais de forma espontânea, muito possivelmente seguindo suas instruções genéticas.

    Minicérebros - Infográfico - Pesquisa do Alysson Muotri, síndrome do MECP2A similaridade com o cérebro humano impressiona, mas é ainda uma versão miniatura, do tamanho das bolinhas de algodão que cismam em aparecer na sua malha. Isso porque ainda não temos as condições ideais para manter os minicérebros crescendo por muito tempo. Depois de um certo tempo, observamos que o centro das esferas torna-se escuro, um sinal de que as células estão morrendo devido a falta de nutrientes que só chegam por difusão. Acredito que no futuro iremos melhorar a tecnologia e criar estruturas de circulação, semelhantes a veias e artérias, que irão irrigar esses minicérebros e permitir seu crescimento. Ainda não estamos lá.

    Mas a escala menor também tem suas vantagens. Podemos criar literalmente milhares de minicérebros num pequeno frasquinho. E eles podem ser usados para testes de drogas em plataformas miniatura que permitam a comparação paralela simultaneamente. Esse tipo de escala é passível de automação, algo bem visto pelas indústrias farmacêuticas, por exemplo. Além do teste de drogas para eventuais doenças neurológicas, esse modelo permite uma analise do impacto de drogas ambientais (toxinas, fertilizantes etc) no desenvolvimento embrionário humano. Nosso laboratório consegue dizer rapidamente se existem toxinas que afetariam o cérebro embrionário em determinada amostra ambiental, fornecendo um selo de qualidade que deverá ser obrigatório para todos os futuros produtos, artificiais ou não, em alguns anos. Lógico que o modelo tem limitações, afinal os minicérebros não funcionam num sistema interconectado com outros tecidos (sistema imune, por exemplo). Muitas dessas limitações serão resolvidas num futuro próximo.

    Nosso grupo mostrou pela primeira vez que esse tipo de tecnologia pode ser muito útil para a medicina. Criamos minicérebros de pacientes com a síndrome do MECP2 duplicado, uma doença rara e severa, que atinge pessoas desde o nascimento. Não há cura ou remédios para essa síndrome, tudo o que os médicos fazem é tentar manter o individuo estável dentro do possível. Modelos animais para essa síndrome já existem há quase uma década, mas nunca ofereceram grandes insights no mecanismo molecular ou celular da doença pois não reproduzem exatamente a condição humana.

    Pois bem, com esse modelo, descobrimos que os neurônios nesses minicérebros são capazes de estabelecer um maior número de conexões nervosas (contatos sinápticos) comparado ao grupo controle (minicérebros derivados de pessoas sem a doença), causando uma alta sincronicidade das redes neurais. Essa sincronicidade foi medida diretamente usando plataformas com multi-eletrodos impressos em chips. Os eletrodos capturam o sinal elétrico que viaja pelos neurônios, como se fosse um eletroencefalograma (EEG). A alteração sináptica e o excesso de sincronicidade são provavelmente os causadores dos problemas neurológicos nos pacientes. O próximo passo foi encontrar uma forma de corrigir os defeitos. Testamos cerca de 40 drogas e encontramos uma que reverteu as alterações neurais de forma eficiente. É um excelente ponto de partida para futuros ensaios clínicos.

    O trabalho aconteceu no meu laboratório na Universidade da Califórnia ao longo de quase cinco anos. Foi uma colaboração internacional, com diversos pesquisadores, inclusive alguns brasileiros. Destaco a atuação dos doutores Cassiano Carromeu e Cleber Trujillo, dois cientistas de alto calibre que se dedicaram de forma excepcional para a conclusão do trabalho. Pelo nosso colaboratório já passaram mais de 50 profissionais brasileiros, a grande maioria voltando ao país e levando bagagem tecnológica. Por causa deles, já temos inclusive grupos de pesquisa brasileiros fazendo minicérebros, o que coloca o Brasil em posição de destaque na América Latina.

    É uma pequena, mas significante, amostra de como a colaboração internacional pode ser usada para acelerar o desenvolvimento cientifico. Um colega brasileiro alertou para o fato de que nossas colaborações com o Brasil somam, em fator de impacto dos jornais publicados, um valor maior do que todo o programa bilionário “ciência sem fronteiras” do governo brasileiro. Não sei se a informação é correta, mas se for sugere que o Brasil deveria repensar a forma de colaborar com laboratórios no exterior.

    Termino com uma visão filosófica e provocativa dessa área cientifica. Como quase sempre, a ciência avança de forma não-linear, e muitas vezes nos pega de surpresa, sem deixar muitas chances para a reflexão sobre aspectos fundamentais dos dados gerados. Uma pergunta interessante seria se esses minicérebros teriam a capacidade de pensar, ou se teriam consciência da própria existência numa placa de petri. Apesar de rudimentares, as estruturas cerebrais estão lá, principalmente regiões do córtex frontal, responsáveis por uma série de funções cognitivas altamente sofisticadas. Será essas redes nervosas seriam o principio da consciência humana?



     

  • O cérebro transgender

    Bruce Jenner na capa da 'Vanity Fair'Não me agrada quando tentam justificar todo tipo de comportamento humano pela genética ou neurociência, principalmente quando as evidencias são escassas. O caso do cérebro transgender cai nessa categoria e, para não surpreender o leitor, aviso que esse é apenas o começo das pesquisas nessa área.

    Sabe-se que a identidade sexual tem origens embrionárias, no balanço de certos neurotransmissores durante o desenvolvimento neural. Cérebros masculinos e femininos são anatomicamente e funcionalmente distintos. Na verdade, tudo é muito mais fluido e menos polarizado. Alterações, por menores que sejam, nesse período do desenvolvimento, têm como consequência um cérebro mais feminino ou masculino.

    Nosso cérebro é um espectro sexual, que se revela mais feminino ou masculino em diversas situações. Na maioria dos casos, o cérebro tende para um dos lados. Identidade sexual é mais complexo do que sexo em si, o sistema binário de reprodução, aonde produtores de esperma são considerados machos e de óvulos, fêmeas. No sexo, qualquer situação não binaria, intermediária, seria menos eficiente do ponto de vista evolutivo (existem exceções na natureza, certas espécies de formigas possuem três ou até mesmos quatro tipos de sexo). O mesmo não pode ser dito sobre a identidade sexual.

    Mas qual seria a pressão evolutiva para esse espectro de identidade sexual é ainda um mistério. Pode ser que simplesmente não descobrimos ainda vantagens no cérebro transgender, pois nossa sociedade reprime qualquer identidade sexual que não condiz com o sexo do indivíduo. Talvez pessoas bi-gender tenham mais flexibilidade em situações que requerem ora a parte mais racional, ora a parte mais sensitiva, por exemplo. Por outro lado, esse espectro pode ser apenas consequência de um cérebro humano mais complexo. Simplesmente não sabemos.

    O pouco que se sabe sobre o cérebro transgender vem de pesquisas feitas com ressonância magnética, sugerindo sutis alterações estruturais no córtex e em certas conexões nervosas. Um dos mecanismos propostos seria através do BDNF (Brain-derived neurotrophic fator), um fator responsável pela maturação de redes nervosas e que estaria alterado durante o desenvolvimento do cérebro de pessoas com identidade transgender. Porém, tratamentos experimentais com o objetivo de “curar” pessoas com crise de identidade sexual baseado em modulação de BNDF não parecem muito promissores até o momento.

    O cérebro transgender é um assunto que tem intrigado os neurocientistas por diversas décadas, mas nunca foi estudado com rigor. O fenômeno em si não é novidade na ciência (existem relatos até na Bíblia).

    Recentemente, a mudança de sexo do medalista olímpico americano Bruce Jenner (que agora se chama Caitlyn) tem causado alvoroço, em parte pelo interesse (é o padrasto das Kardashians), mas principalmente porque decidiu usar dessa exposição para dar voz a uma condição polêmica,que atinge milhares de pessoas no mundo e que tem sido ignorada por muito tempo.

    A atitude de Bruce pode ter um impacto mundial, instigando a pesquisa nessa área e contribuindo para uma melhor aceitação dos diversos tipos de sexualidade humana. Se conseguir, Bruce vai ofuscar sua própria imagem de medalhista olímpico ao mostrar que é possível viver duas vidas com identidades sexuais diferentes.

    Foto: Reprodução/ Vanity Fair

Autores

  • Alysson Muotri

    Biólogo molecular formado pela Unicamp com doutorado em genética pela USP. Com Pós-doutorado em neurociência e células-tronco no Instituto Salk de pesquisas biológicas (EUA). É professor da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia.

Sobre a página

No blog, os avanços da ciência e os desafios da nossa espécie são traduzidos em posts sob medida para despertar a paixão pelo conhecimento.