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  • Em busca da saúde – a medicina personalizada

    DNA
    "Se não fosse pela variabilidade entre os pacientes, a medicina seria uma ciência e não uma arte
    ”. Essa frase do médico canadense William Osler, considerado por muitos o fundador da medicina cientifica moderna, resume muito bem o que vamos esperar da medicina num futuro próximo: personalização.

    Hoje em dia, a medicina atual se orienta a partir da doença. Chamamos de doença a todo estado sintomático não-saudável. Vale notar que a noção de “saúde” ou o conceito de “saudável” já é, por si mesmo, individualizado. Comunidades de surdos nos EUA rejeitaram exames genéticos para identificação desse sintoma no pré-natal, pois não consideram a surdez como deficiência. De forma semelhante, alguns autistas (diga-se os menos severos e capazes de se expressar) não buscam a cura, pois também não se consideram doentes. Para eles, basta a aceitação social.

    Mas se o próprio conceito de “saúde” varia, imagine o conceito de doença. Em resposta a essa medicina curativa, surgiu a medicina preventiva, preocupada com a manutenção da saúde publica, sem levar em consideração o individuo. Somos orientados a fazer exercícios, a comer menos açúcar, mas tanto médicos como cientistas olham para a média da população e não para cada pessoa. Em geral, essa medicina preventiva tem servido para orientar decisões estatísticas populacionais, em caráter meramente coletivo.

    A revolução genômica permite a leitura do código genético do indivíduo de forma detalhada, algo inexistente alguns anos atrás. Com isso, geramos um mapa genômico, capaz de prever de maneira probabilística a susceptibilidade a doenças. É diferente de exames anteriores, como o CGH array ou o cariótipo, que detectam alterações grosseiras no genoma. O sequenciamento genético “lê” cada uma das 3 bilhões de “letras” que compõem a estrutura genética de uma determinada pessoa. Sabendo-se disso, pode-se determinar a causa de doenças genéticas e investigar possíveis variantes que influenciem a saúde do individuo. Por exemplo, com esse conhecimento, é possível alterar o ambiente (dieta, frequência de exercício, uso de fármacos específicos, requisição de exames clínicos adicionais, etc) de forma a manter o individuo o mais saudável possível.

    Deu para perceber que essa revolução depende muito do conhecimento cientifico disponível no momento. Esse conhecimento é fluido, pois a ciência avança de forma gradativa. No entanto, a estrutura genética é estável. Isso permite que revisitemos os mapas genômicos de tempos em tempos, buscando novas informações e nos atualizando sobre o conhecimento cientifico relevante em cada caso. É uma medicina interativa, ou seja, o próprio individuo (ou responsável por ele) pode participar ativamente da busca por informações relevantes e decidir, juntamente com sua equipe médica, a melhor forma de lidar com as informações encontradas. Um exemplo disso pode ser encontrado na bibliografia do Steve Jobs, quando se reunia com sua equipe médica para tomar decisões sobre os medicamentos e estilo de vida a ser adotado após cada sequenciamento do seu câncer.

    A medicina genômica, apesar de ainda cara, já não é mais restrita aos mais ricos e está acessível para a população. Como toda tecnologia de ponta, o custo deve baixar significativamente. Chegará o momento em que isso será feito em todos, ao nascer, auxiliando cada um de nós na busca por uma vida cada vez mais saudável.

  • Os vírus endógenos e o transplante de órgãos

    A falta de doadores humanos para transplante é a maior barreira para o tratamento de falência de órgãos. Em muitos casos, utilizamos partes de órgãos de porcos, cuja anatomia e fisiologia é semelhante à dos humanos, como certas regiões do coração ou mesmo pele. No entanto, nesse tipo de xeno-transplante corre-se o risco em potencial da transmissão de vírus endógenos porcinos (PERVs) para o hospedeiro humano, causando uma série de outros problemas imunológicos, comprometendo o transplante.

    O genoma dos porcos contém uma série de cópias de vírus dormentes, os PERVs, que não podem ser eliminados como fazemos para outros patógenos (via antibióticos ou criação em condições estéreis). Esses PERVs fazem parte do genoma do porco e foram acomodados lá por milhões de anos durante a evolução. Porém, ao entrar em contato com tecido humano, esses vírus endógenos acordam e conseguem infectar células humanas.

    Um porco mostrou a lingua ao ser fotografado em uma fazenda em Güira de Melena, na província de Artemisa, na Cuba, na terça-feira (3)
    Recentemente, o grupo de George Church, um respeitado geneticista de Harvard, conseguiu inibir esses PERVs usando uma nova ferramenta genética (Yang e colegas, Science 2015). Diversos trabalhos anteriores haviam tentado inibir a transmissão dos PERVs usando vacinas, RNA de interferência ou fatores de transcrição artificiais, mas com sucesso reduzido. O time de Harvard usou a nova geração de enzimas de edição de DNA, conhecidas como CRISPR-Cas9, para inativar especificamente cópias de PERVs no genoma porcino. O problema é que essas enzimas, apesar de eficientes, nunca haviam sido usadas para atingir diversas regiões no genoma simultaneamente. Os PERVs possuem milhares de cópias espalhadas pelos cromossomos, aumentando a dificuldade do desafio.

    A estratégia foi de encontrar regiões que eram comuns nos diversos PERVs e desenhar uma única enzima capaz de atingir a todos. Conseguiram construir uma versão da enzima que atingia 62 cópias ativas de PERVs no genoma do porco. O próximo teste foi funcional, ou seja, testar se células do porco geneticamente modificadas com a CRISPR-Cas9 seria ainda capaz de transmitir os PERVs para células humanas em um ensaio de co-cultura in vitro, simulando o contato das espécies durante um eventual transplante. A preocupação do grupo é que cópias inativas de PERVs poderiam ser usadas como modelos para corrigir as alterações feitas pelas enzimas modificadoras nos PERVs alvo. Mas a ausência de alterações genômicas foi um indicativo de que isso seria pouco provável. De qualquer maneira, o grupo fez o experimento e observou uma redução de até mil vezes na transmissão viral para células humanas.

    O próximo passo dessa pesquisa é criar porcos transgênicos contendo essas enzimas para futuro uso em transplantes humanos. George Church é co-fundador de uma empresa de biotecnologia chamada eGENESIS, criada para aperfeiçoar esse processo e criar embriões de porcos para transplantes humanos. Se funcionar, a estratégia deve reduzir a dramática a fila de transplante de órgãos, que só nos EUA mata 30 americanos por dia.

    O trabalho teve um grande impacto por diversas razões, mas principalmente porque mostrou um uso inesperado das CRISPR-Cas9 na edição genômica em sítios múltiplos (o máximo até então eram de 6 sítios genômicos ao mesmo tempo). Além disso, o trabalho inova no uso dessas ferramentas para controle de vírus endógenos com uma aplicação prática imediata em humanos. Os métodos descritos abrem novas possibilidades de edição genética em regiões repetitivas do genoma que possuem significado biológico, mas cuja manipulação genômica seria complicada.

  • A síndrome de Marfan e as lições para 2015

    Paciente com a síndrome de Marfan
    A síndrome de Marfan é uma doença rara que afeta tecidos conjuntivos. É causada por mutações no gene FBN1, que codifica para a proteína fibrilina-1. Indivíduos com a síndrome de Marfan possuem, na maioria das vezes, estatura acima da média, membros longos e curvatura acentuada da espinha. Mas o problema maior está no coração, onde a fibrilina é importante para o desenvolvimento da aorta, causando aneurismas que podem ser fatais.

    Escolhi falar da síndrome de Marfan porque acho que ela simboliza um ciclo que tem se repetido com frequência na ciência biomédica: primeiro encontra-se a mutação causadora em humanos, depois criam-se modelos animais (roedores) que reproduzam os sintomas da doença, e por fim busca-se uma forma de corrigir o problema nos camundongos, levando o tratamento para os pacientes. A síndrome de Marfan tinha tudo para ser um exemplo de sucesso. Camundongos com a mutação no gene FBN1 reproduzem os sintomas em humanos, inclusive as alterações na aorta. A droga Losartan, disponível no mercado, bloqueia o efeito da fibrilina alterada e previne a morte dos animais doentes. Tudo pronto para os testes em humanos.

    Mas se por um lado as fases iniciais da pesquisa biomédica são importantes para o entendimento molecular da doença, a fase final desse ciclo cientifico é, em geral, a mais cara e a mais difícil, para não dizer frustrante. Em um trabalho publicado em novembro de 2014, cientistas mostram que a droga Losartan não traz beneficio algum para os portadores da síndrome de Marfan (Lacro e colegas, N. Engl. J. Med.). A decepção com esse modelo de pesquisa clínica é cada vez mais frequente. O problema parece ser o fato de que conforme a complexidade do sistema aumenta, a previsibilidade em humanos diminui. E o que pode ser feito para melhorar essa fase final?

    Especula-se que uma forma de aumentar a previsibilidade humana dos tratamentos pré-clínicos em roedores seria o de incorporar testes em primatas, assumindo que eles seriam um modelo animal melhor para o humano. Porém, apesar da distância evolutiva entre macacos e humanos ser realmente menor do que entre humanos e camundongos, a biologia primata continua sendo significativamente diferente dos humanos. O sistema nervoso é um clássico exemplo. Além disso, existe um custo muito maior para manter colônias de macacos para estudos biomédicos quando comparamos com roedores.

    Outra alternativa seria o uso de células-tronco de pluripotência induzida (também conhecidas como células iPS). Essas células, reprogramadas diretamente do indivíduo doente, têm a capacidade de gerar quantidades virtualmente ilimitadas de células-alvo (cérebro, coração, fígado etc) para estudos em laboratório. Com elas, pode-se criar tecidos humanos in vitro para testes de drogas, inclusive de forma personalizada. Em outra escala, essas células iPS podem também ser utilizadas para gerar órgãos inteiros, aumento a complexidade do sistema experimental. Essa alternativa também não é infalível. Apesar de já conseguirmos criar órgãos simples em laboratório, como fígado e pulmão, ainda estamos distantes de gerar um cérebro. Além disso, esses órgãos artificiais seriam usados para testes isolados, fora do contexto do organismo, aonde os tecidos se comunicam de forma intrincada (por exemplo, sistema nervoso e imune).

    A história da síndrome de Marfan, e de tantas semelhantes que se acumulam na literatura cientifica, é um alerta. Não acho que o modelo animal irá desaparecer tão cedo, pois continua essencial para o entendimento a nível genético, molecular e celular nos estágios iniciais da pesquisa. Porém não acredito que será mais tão valorizado no futuro. A busca de novas formas e metodologias para prever as respostas a tratamentos é um dos grandes desafios da medicina nos próximos anos.

    *Foto: Paciente com um dos sinais da síndrome de Marfan - Divulgação/ National Marfan Foundation (NMF)

Autores

  • Alysson Muotri

    Biólogo molecular formado pela Unicamp com doutorado em genética pela USP. Com Pós-doutorado em neurociência e células-tronco no Instituto Salk de pesquisas biológicas (EUA). É professor da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia.

Sobre a página

No blog, os avanços da ciência e os desafios da nossa espécie são traduzidos em posts sob medida para despertar a paixão pelo conhecimento.