• Naturalmente obcecados

    Cientista 690_Blog Espiral

     

    Recentemente, uma das minhas alunas me perguntou como balancear a vida acadêmica com a vida pessoal. A pergunta faz sentido e me levou a uma reflexão. Por um momento, pensei o seguinte antes de responder.

    Poucos sabem, mas cientistas da área biológica tornam-se quase que escravos voluntários do laboratório, principalmente pelo longo tempo que leva para concluir os experimentos. Cientistas fazem parte da classe que menos ganha por hora, justamente por causa desse elevado número de horas no trabalho. Durante o período no laboratório, as pessoas se transformam, a convivência cria amigos ao mesmo tempo que gera inimigos, limites físicos e mentais são colocados a teste, casamentos começam e acabam, bebês nascem, e no final do dia, um pouco do conhecimento sobre nosso universo é acrescentado. Esse nobre sentimento de contribuição para a humanidade, mistura-se com sentimentos menos nobres, como ego, orgulho e vaidade.

    Sempre quando uso a palavra “medíocre”, alguns colegas se incomodam, pois assumem um tom pejorativo. Então, antes de continuar, deixo claro ao leitor que o uso de “medíocre” aqui se refere a média, a mediana, aonde a grande maioria se encontra. Portanto, a grande maioria dos cientistas são medíocres. Assim como a grande maioria dos médicos, dos políticos, etc. São medíocres porque suas ações individuais tem um baixo impacto, com uma contribuição pequena ao se comparado aos não-medíocres. Reconhecemos os cientistas medíocres porque estão, em geral, confortáveis. São eles os responsáveis pela maior parte do conhecimento gerado pela humanidade. São imprescindíveis para a ciência, mas caminham num ritmo lento, pois nunca deixam a ciência em primeiro plano.

    Felizmente, para a humanidade, existe uma outra classe de cientista, quase uma subespécie rara. São aqueles naturalmente obcecados. Essa classe é movida por algo, inexplicável ainda, que se manifesta na busca incansável do saber. Não existe balanço na vida pessoal e profissional – tudo faz parte da mesma coisa, dentro e fora do laboratório. Os obcecados querem saber mais, sempre envolvidos com projetos grandiosos: Como um determinado gene funciona? Como o cérebro se organiza? Cada pequena conquista no conhecimento alivia a ansiedade momentaneamente. Em geral, começam a trabalhar cedo e terminam tarde. São conhecidos como ratos de laboratório. Trabalham compulsivamente e não conseguem parar até encontrar uma solução para o problema investigado.

    Ao contrário dos cientistas medíocres, os obcecados não são equilibrados. A busca insana por grandes questões em ciência é arriscada. Muitas carreiras são prejudicadas pelo alto risco ou pela competição nesse ambiente, infelizmente. Mas a obsessão traz diversos benefícios para a humanidade, os chamados saltos do conhecimento, quando alguém descobre algo que altera a forma de pensarmos sobre um assunto especifico, mostrando um lado ainda não explorado. Dessa ciência heroica surgem insights que explicam determinado fenômeno, trazem a cura de doenças. Vale ressaltar que as descobertas dos obcecados são feitas, na maioria das vezes, baseando-se em fatos reportados pelos cientistas medíocres. Por isso mesmo, as duas categorias são da mesma importância e devem sempre coexistir.

    De volta a realidade, respondi que o balanço entre a vida acadêmica e pessoal iria depender do tipo de cientista que você é, ou quer ser.

  • Revertendo a síndrome de Kabuki

    Ator de KabukiIndivíduos com a síndrome de Kabuki são raros (cerca de 15.000 pessoas no mundo). Porém, são facilmente reconhecidos pela aparência facial peculiar. Aliás, a síndrome leva o nome do tradicional teatro japonês justamente devido à semelhança com a maquiagem criada para os atores, incluindo a forma alongada dos olhos, com sobrancelhas arqueadas. Além da expressão facial característica, os indivíduos apresentam anomalias esqueléticas e atraso mental.

    A síndrome de Kabuki pode ser causada por mutações em dois genes, KMT2D e KDM6A, ambos envolvidos na regulação epigenética da cromatina. A cromatina é uma estrutura proteica que mantém o DNA compactado, mas que permite a ativação de genes no genoma através de alterações epigenéticas. Apesar da redundância na função desses dois genes Kabuki, acredita-se que exista um desequilíbrio crônico na regulação gênica nuclear, justamente controlada pela acessibilidade à cromatina.

    Essa semana, um grupo da universidade de Johns Hopkins, nos EUA (Bjornsson e colegas, Science 2014) publicou um artigo cientifico mostrando a criação de um modelo animal para estudar a síndrome de Kabuki, desligando geneticamente um dos genes Kabuki durante o desenvolvimento embrionário de camundongos. O grupo mostrou que os camundongos apresentavam problemas de aprendizado e memória semelhante aos pacientes, e que isso estava correlacionado a diversas anomalias encontradas no giro dentado do hipocampo (região do cérebro que continua a produzir novos neurônios, mesmo no adulto). Além de um volume reduzido nessa região, o grupo notou que existia uma redução no número de novos neurônios sendo produzidos nos animais sem o gene da síndrome.

    A administração oral de uma molécula capaz de ajustar a estrutura da cromatina (AR-42) foi capaz de reverter as deficiências neurológicas nesses animais, tanto em camundongos jovens quanto adultos. A droga, já em uso em ensaios clínicos para câncer de próstata, conseguiu compensar o efeito deletério das mutações nos genes Kabuki, reestruturando a dinâmica da regulação gênica neural e revertendo os efeitos cognitivos dos animais. É possível que outras moléculas, com um mecanismo semelhante, possam entrar em clínica imediatamente, como a droga antiepilética conhecida como ácido valpórico. Dietas específicas ou suplementos, como o acido fólico ou curcumina, podem eventualmente também ser benéficos, pois atuam de forma semelhante na célula.

    O impacto além de Kabuki
    Na ciência, muito se aprende com as síndromes raras. Em geral, é o conhecimento adquirido com formas mais raras da doença que informam sobre os mecanismos de ação e possíveis intervenções terapêuticas para outras formas ou condições mais comuns. Com a síndrome de Kabuki não será diferente, e os estudos terão implicações para outras formas de atraso mental e tipos de autismo.

    Recentemente, com o baixo custo de sequenciamento do DNA, mais e mais pacientes com doenças neurológicas estão tendo acesso a informações genéticas. Quem acompanha as evoluções genéticas nessa área deve ter notado que uma porcentagem significativa dos indivíduos com atraso mental e autismo apresentam mutações em genes que regulam a conformação da cromatina, permitindo a ativação ou repressão de outros genes. Esses genes, também conhecidos como reguladores epigenéticos, são a segunda classe mais comum de genes implicados nessas doenças, perdendo apenas para genes diretamente relacionados com as conexões nervosas, ou sinapses. Outra novidade é a implicação do hipocampo e neogêneses em síndromes comportamentais. Sabia-se que a produção de novos neurônios era regulada por fatores epigenéticos. Mas desconhecíamos o quão importante era o fenômeno para Kabuki e possivelmente outras formas de atraso mental.

    A reversão neurológica em Kabuki é mais um exemplo da plasticidade neural do cérebro adulto e reforça a ideia de que doenças do desenvolvimento neural são passiveis de reversão ou cura. A mesma prova de princípio já foi demonstrada para síndromes do espectro autista, como a síndrome de Rett e Phelan-McDermid. A descoberta de que drogas epigenéticas que favoreçam o acesso à cromatina possam contribuir para retardar ou reverter essas síndromes é fascinante.

    *Foto: Wikimedia Commons

  • Amplificando células-tronco do cordão umbilical

    Células do sangue humanoNinguém duvida que a transfusão de sangue salva hoje milhares de vidas diariamente. De forma semelhante, células-tronco hematopoiéticas (do sangue), isoladas a partir do cordão umbilical, também têm uso clínico comprovado em diversas circunstâncias. Apesar do uso mundial e contínuo, é difícil expandir as células-tronco do sangue fora do corpo humano.

    Felizmente, um trabalho canadense publicado nesta semana na prestigiosa revista científica "Science" promete mudar essa realidade. Um grupo de pesquisadores conseguiu identificar uma molécula capaz de amplificar o número de células-tronco sanguíneas em laboratório. Ao modificar quimicamente essa molécula, o grupo conseguiu encontrar uma variante extremamente potente e eficaz. Esses dados prometem expandir o uso clínico dessas células num futuro próximo.

    Atualmente, transplante de células-tronco hematopoiéticas halogênicos é a única forma de curar doenças sanguíneas graves, como leucemia. Mas de 30 a 40% dos pacientes não têm acesso a esse tipo de terapia por incompatibilidade genética com as células dos doadores. O transplante de células-tronco sanguíneas isoladas a partir do cordão umbilical oferece diversas vantagens, incluindo a baixa taxa de incompatibilidade genética e rejeição. Porém o número de células isoladas do cordão é relativamente baixo, limitando a aplicação clínica desse material em muitos casos. Aliás, essa tem sido uma das maiores críticas aos bancos de células-tronco de cordão umbilical.

    Estudos anteriores já mostravam evidências de que as células-tronco do cordão poderiam ser amplificadas após transplante em animais imunodeprimidos, dando origem ao diverso e sofisticado grupo de tipos celulares que chamamos simplificadamente de sangue. Em laboratório, essas células mostravam capacidade de expansão reduzida e, na maioria das vezes, os protocolos de expansão eram conseguidos à custa da perda do privilégio imunológico. No trabalho da "Science" (Fares e colegas, 2014), os cientistas criaram um sistema artificial de expansão das células-tronco do cordão aonde foram testadas 5.280 drogas na esperança de encontrar alguma que conseguisse estimular o crescimento dessas células no ambiente controlado.

    Uma delas funcionou. A droga conhecida como UM729 foi identificada e submetida a um aperfeiçoamento químico para gerar uma versão mais potente. Chegou-se a uma molécula artificial e optimizada, UM171, com atividade 20 vezes mais potente que a original. Além disso, pode-se dizer que ela é infinitamente melhor que qualquer outra molécula testada anteriormente, pois estimula especificamente a população de células-tronco e não outras células mais maduras, também presentes no sangue. A droga foi testada em modelos animais de transplantes pré-clínicos – as células-tronco humanas são injetadas em camundongos com deficiência na produção de células-tronco sanguíneas. A droga mostrou-se efetiva no quesito repopulação e repertório celular nos camundongos em ensaios a longo prazo, e sem efeitos colaterais aparentes.

    A notícia boa deve realmente ser comemorada pelo potencial transformador. A expansão de células-tronco a partir do cordão umbilical pode ser uma alternativa viável a transplantes de células isoladas da medula, constantemente em alta demanda, por exemplo. Se o protocolo realmente funcionar em humanos e for assim tão simples de executar como descrito no trabalho, é capaz de transformar os atuais bancos de cordão-umbilical em pequenas fábricas de sangue. Isso, sim, seria uma contribuição gigantesca para a humanidade. Nada mal para uma molécula com o nome de UM171.

    *Foto: Wikimedia Commons

  • O tigre, o garoto, o braço fantasma e um convite

    Vrajamani tigre

    Difícil não sentir empatia pelo garoto de 11 anos, Vrajamany Rocha, que teve o braço amputado após o ataque de um tigre no zoológico de Cascavel, no Paraná, em junho deste ano. A tragédia comoveu o país e só nos resta apoiar e torcer pela superação do trauma. O menino tem atitude muito positiva e dá indícios que quer se reabilitar rapidamente, aprendendo a usar o braço esquerdo para atividades do dia a dia. Não tenho dúvidas que vai conseguir, pois alia a plasticidade cerebral com otimismo, fatores essenciais para o sucesso de atividades complexas. Esses dias porém, começou a se queixar de dores no braço amputado, que ainda existe apenas mentalmente. Por mais inacreditável que pareça, a dor sentida é real, mesmo que o braço não faça mais parte do corpo.

    O fenômeno conhecido como “membro fantasma” acontece quando uma perna ou braço precisa ser amputado e o indivíduo continua sentindo a presença vivida do membro retirado. Por isso o nome de “membro fantasma”. Na verdade, o fenômeno é ainda mais abrangente e não restrito a braços e pernas, mas inclusive partes internas e viscerais do corpo humano. Diversas mulheres, por exemplo, reclamam de cãibras menstruais fantasmas, mesmo após a remoção do útero. Essa ilusão sensorial parece estar relacionada com a incapacidade do córtex pré-frontal em aceitar uma remodelagem da imagem corporal própria.

    Em cerca de 50% dos casos de membros amputados, os indivíduos são capazes de descrever movimentos e sensações táteis, como se continuassem a comandar as partes retiradas. Os pacientes não estão iludidos, pelo contrário, têm plena consciência da amputação, mas relatam que a sensação dos movimentos é real. Na outra metade dos casos acontece o oposto – a sensação é de ter o membro amputado constantemente paralisado, em geral numa posição tensa, com punhos fechados, causando dor ao indivíduo. É um problema clínico grave, muitas vezes levando à depressão e ao suicídio. Uma das explicações para o fenômeno sugere que a dor sentida fisicamente surge da incapacidade do cérebro em controlar o braço amputado, criando um circuito de comando negativo entre o cérebro e a imagem projetada do membro fantasma.

    Por incrível que pareça, uma das terapias mais eficazes nesses casos é feita de uma forma bem simples e barata. A ideia é enganar o cérebro, fazendo com que tente relaxar o membro ao mesmo tempo em que ganha um reforço visual positivo, indicando que o comando está sendo obedecido e diminuindo a dor. O procedimento é trivial e foi desenvolvida por um colega meu da Universidade da Califórnia em San Diego, o famoso neurocientista V.S. Ramachandran. O indivíduo trabalha com um espelho entre o membro amputado e o real e observa a imagem projetada no espelho ao mesmo tempo em que seu cérebro comanda o membro fantasma. Ao mover o membro real e observar a imagem refletida no espelho, cria-se uma impressão visual, sugerindo que o membro amputado estaria de fato respondendo ao comando do cérebro, aliviando a tensão e a dor. Requer um certo treinamento, mas funciona.

    Esse tipo de terapia sugerida mostra a importância do estímulo visual nesse processo e tem ajudado milhares de amputados mundo afora, sendo mais eficiente que uma série de medicamentos para dor. Melhor ainda, a terapia também auxilia pessoas com outros problemas neurológicos que afetam a percepção sensorial do próprio corpo, como certos tipos de derrame que causam paralisia. O espelho tem sido substituído em alguns lugares por terapias mais sofisticadas usando realidade virtual, mas o truque é o mesmo.

    Fica registrada meu conselho ao Vrajamany e a sua equipe clínica, que comece o treinamento o quanto antes. Tenho certeza de que vai ajudar a aliviar a dor e permitir que o guri se desenvolva com todo seu potencial, quem sabe um dia se tornando um outro grande neurocientista.

    Se gostar da sugestão, convite feito para visitar nosso laboratório de células-tronco e plasticidade neural na Califórnia.

    * Foto: Reprodução/TV Globo

  • A culpa da mãe

    Luana, de 21 anos, durante a gestação de SofiaEstar grávida hoje em dia é um desafio e nunca foi tão estressante. A lista de coisas que pode e não pode é enorme. A relação de fatores de risco pré-natal tem invadido a mídia: gripe, antidepressivos, açúcar, gordura, café, sushi, gatos, tipo de música, muito (ou pouco) exercício físico e até a idade das mães são assuntos do momento. E se a futura mamãe ficar ansiosa ou estressada, ainda terá que conviver com olhares de reprovação social.

    Na história da medicina, não faltam exemplos mostrando como experiências uterinas afetam os descendentes. Existe uma verdadeira fixação e fascinação dos pesquisadores sobre o assunto. Faz sentido, afinal durantes os 9 meses iniciais de nossa vida esse foi nosso único ambiente e onde ocorrem etapas cruciais do desenvolvimento humano. Não existe nada de errado nesse tipo de estudo, mas o foco demasiado em cima das mães chamou até a atenção dos pesquisadores nessa área que decidiram dar um “toque” aos jornalistas de ciência. Um editorial recém publicado na Nature, de autoria da pesquisadora Sarah Richardson, chama a atenção para o problema. Abaixo eu ressalto alguns dos exemplos citados e incluo outros, aproveitando para opinar como cientista nesse assunto.

    Ultimamente, diversos assuntos relacionados ao tema têm destacado as alterações epigenéticas (análise de modificações hereditárias no DNA que influenciam a atividade dos genes sem alterar a sequencia genética). Essas alterações implicam riscos de obesidade, diabetes e resposta a estresse durante o desenvolvimento das crianças.

    Como o assunto é altamente complexo sob a perspectiva molecular, e também multifatorial, a mídia tende a simplificar o assunto, focando apenas no impacto materno. Manchetes como “Dieta materna altera o DNA do feto” ou “Grávidas sobreviventes de desastres transmitem o trauma para os filhos” são relativamente comuns de se achar em jornais e revistas de grande circulação. Fatores como a contribuição paterna, a vida em família e o ambiente social recebem muito menos atenção. Como consequência, existe um sentimento de culpa e vigilância desnecessários em mulheres grávidas e mães em geral.

    Existem diversos exemplos de como a sociedade culpa as mães por doenças dos filhos. Evidencias científicas de que o álcool em excesso pode causar complicações e má formações durante a gestação levou à recomendação de que mulheres grávidas evitassem a bebida. O consumo alcóolico durante a gravidez foi estigmatizado e até criminalizado. Bares e restaurantes são obrigados avisar que a bebida causa defeitos congênitos nos EUA, mesmo que não existam evidências sugerindo qualquer problema com o consumo moderado. Aliás, mulheres que bebiam moderadamente passaram a evitar o consumo durante a gravidez, mas o número de crianças vítimas do abuso de álcool não diminuiu. Como consequência, a visão da mulher grávida tomando um drink é hoje em dia altamente condenável para a maioria das pessoas e faz com que agonizem a gestação toda por um golinho ocasional.

    Nos anos 80 e 90, o uso de crack criou uma histeria midiática com os famigerados “filhos do crack” – crianças nascidas de mulheres viciadas e que foram expostas à droga ainda no útero. Grávidas dependentes de drogas perderam benefícios sociais, a guarda dos filhos e muitas acabaram na prisão, a grande maioria negras e pobres, condenadas por expor fetos indefesos à droga. Os filhos também sofreram, estigmatizados e condenados ao fracasso social desde o nascimento. Hoje sabemos que a exposição do feto ao crack ou cocaína é considerado tão nocivo quanto ao cigarro ou álcool em excesso. Mesmo assim, apenas usuárias de drogas são condenadas criminalmente nos EUA.

    Outro exemplo clássico de “culpa materna” é o conceito de mãe-geladeira (uma metáfora que sugere o desapego e frieza emocional), dando origem a crianças autistas nos anos 50-70. E não faz muito tempo atrás que diversos livros médicos ainda atribuíam alterações mentais e tendências criminais a uma postura materna, inclusive as amizades durante a gestação, ignorando completamente as origens biológicas dessas condições e diversos outros fatores ambientais. Suporte inadequado a mulheres grávidas e afirmações pouco contextualizadas ainda hoje são encontradas em materiais educacionais com boas intenções. Duvida? Veja no website montado pelo Imperial College London que mostra um adolescente saindo da prisão e sugere que cuidados pré-natais poderiam auxiliar no combate ao crime. Inacreditável, não?

    Por isso que o foco materno das pesquisas epigenéticas ainda lembra esse tipo de atitude do passado, colocando todo o contexto social e diversos outros fatores em segundo plano. Outro erro comum que ainda persiste é o de estabelecer causa e efeito. Novamente, estudos com autismo são notórios por isso. Ao relacionar a incidência de autismo com fatores externos (vacinas, morar perto de avenidas ou de antenas de celulares), muitas reportagens não deixam claro que a conclusão é apenas correlacional e evitam mencionar dados inconsistentes (por exemplo, a correlação estatística desaparece se consideramos idades diferentes ou outra variável).

    Para evitar que esse tipo de atitude continue, tanto a mídia quanto os leitores teriam que ser mais críticos cientificamente. Primeiro, evitando extrapolar estudos com camundongos para humanos. Segundo, balanceando o papel tanto do pai quanto da mãe. Terceiro, demonstrando complexidade no assunto ao mostrar que diversos fatores variáveis acontecem ao mesmo tempo, sendo muitos desconhecidos. E por final, reconhecendo o papel da sociedade, principalmente ao apontar soluções para o problema.

    Os métodos e a tecnologia científica têm aumentado consideravelmente em complexidade nos últimos dez anos. A tendência é que isso seja exponencial, ou seja, cada vez mais difícil de se traduzir para uma linguagem leiga e simples. Por isso mesmo, a sociedade tem que ser mais crítica, exigindo melhores formas de comunicação científica da mídia e dos próprios cientistas. Acho que isso vai auxiliar no entendimento das pesquisas, sem apontar culpados ou restringir a liberdade das futuras mães.

    * Foto: Luana Siqueira/Arquivo Pessoal

  • Reality-show sobre divulgação científica?

    Cidade Universitária, Universidade de São Paulo: vista do novo prédio da ReitoriaA Universidade de São Paulo (USP) é responsável por cerca de um quarto de toda produção científica brasileira e era referência de qualidade internacional na América Latina. Estrangeiros que nunca haviam visitado o Brasil reconheciam a USP como uma grande formadora de alunos e melhor universidade latina. Hoje em dia, colegas estrangeiros demoram a associar a USP a bons alunos e à produção científica de qualidade.

    Na verdade, a USP é apenas o exemplo mais gritante do que acontece quando não existe renovação intelectual, internacionalização, autonomia departamental e transparência. Ao contrário das grandes universidades no resto do mundo, a USP ainda engatinha em gestão administrativa e meritocracia, perdendo eficiência e diminuindo seu impacto internacional. Ruim para nosso país que, com menos inovação e criatividade, compromete seu futuro como nação independente.

    Para os que acompanham a deprimente trajetória dessa universidade nos últimos anos, a notícia de que a USP perdeu o primeiro lugar no ranking de melhor instituição de ensino superior da América Latina para a Pontifícia Universidade Católica do Chile (UC) não foi surpresa. Surpreendente foi a colocação do reitor da UC, Ignácio Sanchez, ao dizer que o avanço chileno ocorreu por um fortalecimento da produtividade acadêmica (óbvio) e estímulo à divulgação do conhecimento (talvez menos óbvio para o leigo científico).

    Comunicar ciência é uma arte. De uma forma simplista, podemos analisar isso por duas perspectivas: a primeira é comunicá-la a outros cientistas. Em geral, faz-se isso através de publicações em revistas internacionais indexadas, a maior parte na língua inglesa. Os trabalhos são escritos em um vocabulário e sintaxe especifica de cada área. Na UC, os estudantes adotaram o inglês em aulas cientificas, pesquisa e até no processo seletivo da universidade. Essa simples atitude estimula o candidato a se aprimorar no inglês antes mesmo de ingressar na universidade. Ser proficiente na “língua da ciência” contribui para o reconhecimento internacional da universidade. Outras universidades asiáticas, por exemplo, também estão apostando nessa fórmula.

    A outra forma de comunicar ciência é para o público leigo. Reportar o que acontece no meio científico para a comunidade é o primeiro passo para que haja um reconhecimento daquilo que foi investido. Muitos trabalhos de qualidade acabam por não serem divulgados na mídia por pura falta de capacidade do pesquisador em comunicar, sem jargão cientifico e de forma clara e direta, os resultados obtidos.

    Até aonde eu sei, a USP não oferece cursos ou qualquer incentivo à divulgação científica ao estudante ou professores. Em universidades e institutos americanos, ao contrário, a comunicação científica está se tornando um esporte competitivo. Uma série de desafios para estudantes de ciência incluem explicações das pesquisas sem o uso de jargão ou termos técnicos em um tempo curto (de 30 segundos a 5 minutos). Esse tipo de exercício é muito comum em áreas de comércio e marketing. Não se trata apenas de vender a ciência, mas de simplificar as idéias na cabeça do cientista, além de dar a oportunidade para a sociedade de opinar sobre os resultados e futuras direções da pesquisa.

    A divulgação científica está virando febre nos estudantes e pós-graduandos americanos. Cito alguns exemplos desse tipo de iniciativa como o “Three Minute Thesis (3MT)” que desafia os estudantes a apresentar a tese para um público não-especialista em menos de três minutos, ou o “CIRM Elevator Pitch Challenge”, com o desafio de divulgar pesquisas sobre células-tronco em menos de 30 segundos. Apresentações engajadoras podem ser o diferencial para um emprego melhor, estabelecer uma nova colaboração ou até receber um auxilio financeiro.

    Como percebeu o reitor chileno, comunicar ciência é importante e deve ser estimulado desde cedo. Sugiro para a reitoria da USP, e de outras universidades brasileiras, que crie um “reality show” de divulgação científica, confrontando técnicas de apresentação e qualidade, tendo o público leigo como júri. Alguns colegas podem achar que seria perda de tempo e um desastre de audiência. Eu não. A julgar pela experiência americana, acho que as pessoas gostam de entender aspectos complicados da ciência, se comunicados de uma forma atraente.

    * Foto: Cidade universitária da USP. Crédito: Ana Carolina Moreno/G1

Autores

  • Alysson Muotri

    Biólogo molecular formado pela Unicamp com doutorado em genética pela USP. Com Pós-doutorado em neurociência e células-tronco no Instituto Salk de pesquisas biológicas (EUA). É professor da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia.

Sobre a página

No blog, os avanços da ciência e os desafios da nossa espécie são traduzidos em posts sob medida para despertar a paixão pelo conhecimento.