• Seria possível reconstruir o cérebro?

    Existe um grande debate entre os neurocientistas sobre a capacidade humana de reconstruir um cérebro. Alguns dizem ser impossível de criar artificialmente algo de tamanha complexidade. O argumento é que mesmo que todas as peças sejam identificadas e conhecidas, seria improvável determinar como as partes funcionam juntas. Outros, mais otimistas, acham que é uma questão de entender os princípios básicos e fundamentais para que se possa criar modelos computacionais de simulação que possam aprender com o novas informações para se alcançar o grandioso objetivo.

    Na última semana, a prestigiosa revista cientifica Cell publicou um artigo de 10 anos de 82 pesquisadores internacionais de 12 instituições diferentes, sugerindo a reconstrução funcional de um pedaço do cérebro. O trabalho, apoiado pelo organização europeia conhecida como Human Brain Project custou mais de 1 bilhão de dólares. É um dos artigos de neurociência mais longos da historia e acredito que serão poucos os pesquisadores que terão disposição de analisá-lo em detalhes.

    Uma das teorias é que déjà vu seria causado por pequenos espasmos no cérebroO time foi liderado pelo neurocientista Henry Markram, atualmente na escola politécnica federal de Lausanne. Parte da motivação de Henry veio do nascimento de seu filho, Kai, diagnosticado com autismo. Cansado da ciência tradicional, que busca mérito em publicações acadêmicas incrementais, Herny decidiu partir para algo cujo impacto na humanidade seria realmente mensurável e útil em futuras gerações.

    O trabalho de Henry é o primeiro rascunho da reconstrução digitalizada dos microcircuitos de uma região do córtex somatosensorial extraído do cérebro de um rato juvenil. A reconstrução usou princípios de organização celular e sinápticas para montar um algoritmo capaz de reconstruir em detalhes a anatomia e fisiologia, utilizando dados experimentais. A região reconstruída tem cerca de 0.3 mm3 e contém 31 mil neurônios, distribuídos em 55 camadas distintas morfologicamente com 207 subtipos de neurônios funcionais. As arborizações desses neurônios formam cerca de 8 milhões de conexões e mais de 37 milhões de sinapses ativas. A simulação em computador revelou um espectro de redes nervosas cujas atividades flutuam entre sincronia e caos, modulados por mecanismos fisiológicos. Esse espectro de redes tem a capacidade de se reconfigurar de forma dinâmica, dando suporte a teoria de que o neocortex usa diversas estratégias de processamento de informação ao mesmo tempo. Um vídeo sumarizando todas as etapas do processo pode ser visto aqui.

    O trabalho não deve ser considerado ainda como prova de principio que os cientistas conseguem recriar o cérebro humano, com cerca de 85 bilhões de neurônios, mas é um primeiro passo nessa direção. O objetivo é gerar uma ferramenta que possa codificar de forma digital as características desses neurônios e conexões que sejam comuns em todos os cérebros através de uma plataforma colaborativa virtual de neurocientistas. O próximo passo, talvez ainda mais futurístico, seja o de adicionar personalidade a esse programa e/ou situações que possam simular doenças neurológicas humanas.

    Porém, muitos cientistas não acreditam que o tour de force tenha valido a pena. Isso porque é difícil validar ou replicar os resultados. Tudo que foi mostrado no artigo da Cell pode ser apenas atividade aleatória e não uma simulação computacional como diz o trabalho. As futuras gerações é que irão confirmar ou não se tudo isso foi um grande desperdício.

  • A revolução dos minicérebros

    'Minicérebros' foram criados em laboratório a partir de células da pele de pacientes com a síndrome do MECP2

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     


    Se você não estava isolado do mundo ou hibernando semana passada, deve ter ouvido falar da criação de minicérebros humanos em laboratório. Essa nova ferramenta promete ser a grande vedete no tratamento de doenças neurológicas e genéticas, uma revolução na medicina.

    Formados a partir de células-tronco pluripotentes, reprogramadas de células periféricas (sangue, polpa de dente, pele etc) do próprio individuo, esses organoides são criados na placa de Petri, seguindo uma complexa receita química. Cada passo é importante e, dessa forma, consegue-se recapitular o desenvolvimento embrionário da pessoa em laboratório. Muito da técnica é ainda empírico, pois as células-tronco fazem a maior parte do processo sozinhas, se auto-organizam em estruturas cerebrais tridimensionais de forma espontânea, muito possivelmente seguindo suas instruções genéticas.

    Minicérebros - Infográfico - Pesquisa do Alysson Muotri, síndrome do MECP2A similaridade com o cérebro humano impressiona, mas é ainda uma versão miniatura, do tamanho das bolinhas de algodão que cismam em aparecer na sua malha. Isso porque ainda não temos as condições ideais para manter os minicérebros crescendo por muito tempo. Depois de um certo tempo, observamos que o centro das esferas torna-se escuro, um sinal de que as células estão morrendo devido a falta de nutrientes que só chegam por difusão. Acredito que no futuro iremos melhorar a tecnologia e criar estruturas de circulação, semelhantes a veias e artérias, que irão irrigar esses minicérebros e permitir seu crescimento. Ainda não estamos lá.

    Mas a escala menor também tem suas vantagens. Podemos criar literalmente milhares de minicérebros num pequeno frasquinho. E eles podem ser usados para testes de drogas em plataformas miniatura que permitam a comparação paralela simultaneamente. Esse tipo de escala é passível de automação, algo bem visto pelas indústrias farmacêuticas, por exemplo. Além do teste de drogas para eventuais doenças neurológicas, esse modelo permite uma analise do impacto de drogas ambientais (toxinas, fertilizantes etc) no desenvolvimento embrionário humano. Nosso laboratório consegue dizer rapidamente se existem toxinas que afetariam o cérebro embrionário em determinada amostra ambiental, fornecendo um selo de qualidade que deverá ser obrigatório para todos os futuros produtos, artificiais ou não, em alguns anos. Lógico que o modelo tem limitações, afinal os minicérebros não funcionam num sistema interconectado com outros tecidos (sistema imune, por exemplo). Muitas dessas limitações serão resolvidas num futuro próximo.

    Nosso grupo mostrou pela primeira vez que esse tipo de tecnologia pode ser muito útil para a medicina. Criamos minicérebros de pacientes com a síndrome do MECP2 duplicado, uma doença rara e severa, que atinge pessoas desde o nascimento. Não há cura ou remédios para essa síndrome, tudo o que os médicos fazem é tentar manter o individuo estável dentro do possível. Modelos animais para essa síndrome já existem há quase uma década, mas nunca ofereceram grandes insights no mecanismo molecular ou celular da doença pois não reproduzem exatamente a condição humana.

    Pois bem, com esse modelo, descobrimos que os neurônios nesses minicérebros são capazes de estabelecer um maior número de conexões nervosas (contatos sinápticos) comparado ao grupo controle (minicérebros derivados de pessoas sem a doença), causando uma alta sincronicidade das redes neurais. Essa sincronicidade foi medida diretamente usando plataformas com multi-eletrodos impressos em chips. Os eletrodos capturam o sinal elétrico que viaja pelos neurônios, como se fosse um eletroencefalograma (EEG). A alteração sináptica e o excesso de sincronicidade são provavelmente os causadores dos problemas neurológicos nos pacientes. O próximo passo foi encontrar uma forma de corrigir os defeitos. Testamos cerca de 40 drogas e encontramos uma que reverteu as alterações neurais de forma eficiente. É um excelente ponto de partida para futuros ensaios clínicos.

    O trabalho aconteceu no meu laboratório na Universidade da Califórnia ao longo de quase cinco anos. Foi uma colaboração internacional, com diversos pesquisadores, inclusive alguns brasileiros. Destaco a atuação dos doutores Cassiano Carromeu e Cleber Trujillo, dois cientistas de alto calibre que se dedicaram de forma excepcional para a conclusão do trabalho. Pelo nosso colaboratório já passaram mais de 50 profissionais brasileiros, a grande maioria voltando ao país e levando bagagem tecnológica. Por causa deles, já temos inclusive grupos de pesquisa brasileiros fazendo minicérebros, o que coloca o Brasil em posição de destaque na América Latina.

    É uma pequena, mas significante, amostra de como a colaboração internacional pode ser usada para acelerar o desenvolvimento cientifico. Um colega brasileiro alertou para o fato de que nossas colaborações com o Brasil somam, em fator de impacto dos jornais publicados, um valor maior do que todo o programa bilionário “ciência sem fronteiras” do governo brasileiro. Não sei se a informação é correta, mas se for sugere que o Brasil deveria repensar a forma de colaborar com laboratórios no exterior.

    Termino com uma visão filosófica e provocativa dessa área cientifica. Como quase sempre, a ciência avança de forma não-linear, e muitas vezes nos pega de surpresa, sem deixar muitas chances para a reflexão sobre aspectos fundamentais dos dados gerados. Uma pergunta interessante seria se esses minicérebros teriam a capacidade de pensar, ou se teriam consciência da própria existência numa placa de petri. Apesar de rudimentares, as estruturas cerebrais estão lá, principalmente regiões do córtex frontal, responsáveis por uma série de funções cognitivas altamente sofisticadas. Será essas redes nervosas seriam o principio da consciência humana?



     

  • Poeira

    A sensação de um carpete novo é boa, mas dura pouco. Tão logo ele é instalado, já começa a acumular “poeira”. Acredita-se que a composição dessa poeira seja composta em grande parte por pele humana morta entre outras coisas. A contribuição humana não é desprezível, pois ao final da leitura dessa sentença, é provável que cerca de mil células da sua pele tenham caído do seu corpo. Mas nem tudo é seu.

    Mesmo achando que mora só, você nunca está sozinho. Com o baixo custo das novas tecnologias de sequenciamento genético, o protocolo tem sido aplicado de diferentes formas, inclusive revelando a presença de microrganismos que convivem conosco em diversas situações, seja no banheiro ou mesmo no seu celular.

    Uma pesquisa recente coletou amostras de poeira de 1200 casas americanas, revelando que habitamos com milhares de tipos de bactérias diferentes e cerca de duas mil espécies de fungos (Fierer e colegas, Proc. Royal Society 2015). Porém, isso não é motivo para sair desinfetando a casa. A maioria desses microrganismos é completamente inofensiva e alguns são benéficos para o homem.

    Os cientistas recrutaram voluntários para o trabalho através da internet pelo portal do projeto “The wild life of our homes”. Um kit contendo cotonete esterilizado foi enviado aos participantes que foram instruídos a coletar poeira de dentro e fora da casa, preferencialmente em regiões perto de portas (áreas supostamente menos limpas e tocadas no dia a dia). A amostra de fora da casa, permitiu identificar o que estaria sendo trazido do ambiente. O material contido nesse pó era composto de pedaços de insetos, células humanas mortas, poeira de parede, fibra de carpete e partículas do solo entre outros ingredientes. Grande parte era material vivo, bactérias e fungos.

    As variações bacterianas encontradas nas diferentes casas, correspondem claramente a presença de animais domésticos (principalmente gatos ou cachorros) e a razão entre homens e mulheres coabitando o ambiente (com fator de previsibilidade menor do que a dos pets, pois todas as casas analisadas tinham presença masculina e feminina, resultando na falta de controles adequados). A composição de fungos reflete o tipo de clima e região geográfica das casas analisadas. O fungo vem de fora para dentro, trazido junto de partículas do solo nos sapatos ou em forma de esporos vindo pelo ar ou presos a roupas. É difícil saber exatamente como a concentração desses microrganismos variam com o tempo, pois o estudo foi feito com uma amostra por casa apenas. As próximas etapas do projeto devem elucidar o quão dinâmico é essa com-pó-sição.

    Apesar de preliminar, o estudo conclui o primeiro passo de um objetivo maior: compreender quais as espécies que dividem a casa com os humanos e como elas podem influenciar na nossa saúde.

  • Transformando pele em neurônios

    Células-tronco vistas por microscópio foram desenvolvidas no Japão a partir de fibroblastos, células adultas da segunda camada da pele, a derme. O trabalho desenvolvido pelo britânico John B. Gurdon e o japonês Shinya Yamanaka recebeu o Nobel de Medicina.

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     


    Se você costuma ler os artigos do Espiral, já deve saber que uma das grandes revoluções na área de células-tronco foi a chamada reprogramação genética, ou a arte de transformar um tipo celular em outro, contrariando os estágios do desenvolvimento. O criador da técnica, Shinya Yamanaka, recebeu o prêmio Nobel em medicina em 2012, apenas alguns anos depois de sua tecnologia ter sido publicada.

    Apesar de fantástica e revolucionária, a estratégia desenvolvida por Yamanaka baseia-se na manipulação da expressão genética nas células-alvo, o que costumamos fazer pela ação de vetores virais que podem inserir novos genes, ferramentas clássicas na biologia molecular. O procedimento é simples, mas invasivo do ponto de vista celular, pois coloca a célula em contato com vetores virais que podem causar mutações ou estimular uma resposta imune. No passado, alguns grupos tentaram substituir esses vírus por proteínas recombinantes ou mesmo moléculas de RNA que fossem estáveis o suficiente para iniciar a reprogramação genética. Nada funcionou tão bem, tanto a proteína quanto o RNA não conseguem penetrar no núcleo celular com a mesma eficiência que um vírus.

    Na semana passada, pesquisadores da China e Estados Unidos publicaram de forma independente uma nova forma de reprogramação celular, usando um coquetel de químicos. Essas pequenas moléculas são adicionadas diretamente nas células, difundindo naturalmente para dentro do núcleo e ativando a resposta genética que começa a reprogramação. Para mostrar que o procedimento funciona, os dois grupos escolheram transformar células humanas da pele (fibroblastos) em células do cérebro (neurônios). O grupo dos EUA usou uma estratégia de tentativa e erro combinatória para identificar conjuntos de moléculas que convertam os fibroblastos em neurônios. O grupo americano mostrou que na presença de 7 compostos químicos, denominados pelas siglas VCRFSGY, os fibroblastos tornaram-se neurônios funcionais em apenas algumas semanas.

    Aparentemente, a combinação química VCRFSGY age de forma sequencial. Os primeiros 4 químicos (VCRF) modificam a estrutura física da célula, ativando um gene pro-neural chamado Tuj1. Mas essa mistura inicial deixava as células numa crise de identidade, não sendo capaz de finalizar o processo. Os outros 3 reagentes restantes (SGY) conseguem atuar a partir desse estágio intermediário e produzir neurônios funcionais, capazes de disparar impulsos elétricos (característica fundamental de um neurônio).

    O grupo chinês fez basicamente a mesma coisa em fibroblastos de roedores, mas com uma combinação de drogas diferente. O fato de os dois grupos terem descoberto combinações químicas diferentes para fazer a mesma coisa é uma importante validação de que o protocolo é robusto e não se trata de um artefato experimental.

    Ainda é cedo para que a técnica seja adotada no mundo todo. Existem diversas questões que não ficaram resolvidas nesses trabalhos, como por exemplo, o que acontece a nível epigenético (alterações químicas na molécula de DNA que não afetam o código genético) com as células tratadas, e por que a eficiência não é 100% (uma em cada três células são convertidas). Aplicações futurísticas incluem o uso para a medicina personalizada, como na geração de células para transplante ex-vivo, ou no desenvolvimento de novas terapias em mini-cérebros para modelos de doenças neurológicas.

    Ainda não sabemos se o coquetel químico funcionaria in vivo, mas não consigo parar de imaginar o que aconteceria caso esse coquetel fosse aplicado diretamente na pele humana. Ou se alguém caísse acidentalmente num caldeirão de VCRFSGY. Hum, já consigo imaginar um novo personagem pra Marvel...)

    Imagem: Reuters/Center for IPS Cell Research Kyoto

  • Colírio contra catarata

    Catarata

     

     

     

     

     

     

    Na genética, é prática comum estudarmos mutantes para entender como funciona o normal. Da mesma forma, estudos de casos únicos ou raros acabam por trazer insights e tratamentos de doenças e condições mais comuns.

    Esta semana, um colega da Universidade da Califórnia, Kang Zhang, mostrou que casos familiares raros podem abrir novas perspectivas terapêuticas contra a catarata. Nas próximas décadas, será possível prevenir ou tratar cataratas com o uso de um colírio, tudo isso em consequência de uma descoberta inesperada sobre uma molécula que auxilia na produção de colesterol em células humanas.

    Kang descobriu que uma substância chamada Lanosterol pode reverter o acúmulo de proteínas mutantes na lente do olho, o que causa a catarata em humanos e outros animais. Esses resultados foram publicados semana passada na prestigiosa revista "Nature" (Zhao e colaboradores, 2015), e aumenta as esperanças de tratamento para milhões de pessoas que sofrem com cataratas no mundo. Atualmente, a doença é apenas tratada pela remoção cirurgica das lentes, um processo delicado e caro. Mas graças à descoberta do Lanosterol, no futuro os pacientes poderão se beneficiar do uso de um colírio, evitando os riscos, desconforto e recuperação da cirurgia. O impacto será grandioso para os oftalmologistas.

    O trabalho começou com uma investigação genética de uma única família cujos pais sem catarata, tiveram 3 filhos afetados e um filho normal. Pelo sequenciamento do genoma da família, foi possível descobrir que cada um dos filhos afetados havia herdado uma mutação genética no gene LSS (lanosterol synthase), envolvido na produção do Lanosterol. Para provar que a falta do Lanosterol era a causa das cataratas, o grupo de Kang testou se o Lanosterol era eficaz em remover proteínas alteradas do cristalino em células humanas em cultura, no laboratório. Funcionou. O próximo passo foi testar se o Lanosterol seria também eficaz num modelo animal. A substância foi capaz de dissolver os precipitados em olhos de coelhos, clareando as lentes. Testaram também um modelo canino, aplicando a substância como colírio, duas vezes ao dia por seis semanas. Novamente, as lentes passaram a ficar gradativamente menos turvas, passando do branco opaco para o transparente. As cataratas dos cachorros foram definitivamente curadas.

    Os ensaios clínicos em humanos já estão sendo preparados. Acredita-se que os efeitos colaterais serão mínimos, pois o Lanosterol é produzido naturalmente pelo organismo. Talvez a melhor aplicação desse colírio seja na prevenção, pacientes podem começar um tratamento na meia-idade, retardando a catarata. Apesar de cirurgias de catarata serem relativamente seguras, num mundo aonde a população fica cada vez mais idosa, o número de afetados por essa condição deve dobrar nos próximos vinte anos. Além disso, permitirá o uso em regiões do planeta com populações mais carentes e sem acesso a tratamento cirúrgico. Um bom momento para o Lanosterol.

    Abaixo, lentes de coelho com catarata (esquerda) e, depois, com aumento da transparência após o uso de lanosterol (direita):

    Lentes de coelho com catarata (esquerda) mostrando aumento da transparêcia após o uso de Lanosterol (direita)

  • O pododáctilo (im)perfeito

    Você com certeza já viu algum deles por ai. Estão em toda parte, nos pés das celebridades, na estátua da liberdade, ou exaltado em famosas esculturas gregas.

    Pé de MortonSim, estou falando daquele dedo do pé (artelho) que cisma em sair pra fora da sandália. Na verdade, essa é uma condição genética conhecida como Síndrome do Pé de Morton, que é simplesmente um tipo de anatomia, na qual o hálux (vulgo “dedão”) é menor que o segundo dedo, deixando este último com o aspecto muito alongado. Mas não necessariamente é o segundo pododáctilo que é longo, mas o dedão que fica relativamente pequeno naquele contexto devido a um encurtamento do primeiro osso metatarso, que conecta o dedão com o resto do pé.

    Descrita pela primeira vez como condição médica pelo cirurgião-ortopedista Dudley Joy Morton em 1927, essa característica é relativamente comum nos humanos, com prevalência variando entre 3% a mais de 90% em determinadas populações isoladas. No Brasil, estima-se uma frequência de 32.8%. Por isso, acredita tratar-se de um caráter hereditário, mas que não segue necessariamente as regras simples de um recessivo dominante.

    Talvez a grande maioria dos que possuem o pé de Morton não se incomodem com isso. Mas o uso intenso da pisada, tirando o estresse do dedão como principal fonte de impacto da pisada, pode causar problemas. Em alguns casos, a condição pode induzir uma sobrecarga na região do antepé, afetando a área da cabeça do segundo metatarso, causando dor intensa, formação de calo, neuroma, fratura óssea ou problemas com músculos naquela região. Como não existe prevenção para a Síndrome do Pé de Morton, aconselha-se primeiramente um tratamento conservativo, com suporte ortopédico para aliviar a dor ao distribuir melhor a carga ao andar, reeducação postural ou, em casos extremos, cirurgia corretiva.

    Do ponto de vista evolutivo, essa é uma das regiões anatômicas mais importantes para o estabelecimento de nossa postura bipedal, em contraste com outros primatas. A posição e formato do dedão foi crucial para a propulsão da caminhada e corrida humana, facilitando nosso deslocamento em longas distancias, liberando nossas mãos para outras atividades e consequentemente contribuindo para a sobrevivência da espécie. A variação da anatomia de pés dos humanos modernos, nada mais é do que a evolução que continua brincando com a flexibilidade genética de nossa espécie.

Autores

  • Alysson Muotri

    Biólogo molecular formado pela Unicamp com doutorado em genética pela USP. Com Pós-doutorado em neurociência e células-tronco no Instituto Salk de pesquisas biológicas (EUA). É professor da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia.

Sobre a página

No blog, os avanços da ciência e os desafios da nossa espécie são traduzidos em posts sob medida para despertar a paixão pelo conhecimento.