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Por Aline Midlej

Aline Midlej é apresentadora do Jornal das Dez, na GloboNews


Davide Martello toca piano na fronteira da Polônia — Foto: Yara Nardi/Reuters

Li numa matéria da revista Rolling Stone que, ainda em vida, Freddie Mercury chegou a dizer que "We are the champions" era a música mais arrogante e egoísta que ele havia escrito, não havendo qualquer ideia de uma evocação coletiva catártica. Essa versão sobre a origem de uma das maiores e mais cantadas músicas do rock mundial foi revista por integrantes da própria banda em outras ocasiões, e eu prefiro acreditar neles.

A icônica canção do Queen foi o pano de fundo de uma das cenas mais comoventes registradas na última semana de cobertura da guerra na Ucrânia, quando o músico alemão Davide Martello foi filmado tocando piano na fronteira com a Polônia por longas horas. Era uma forma de recepcionar, com algum afeto, quem havia acabado de conseguir, finalmente, cruzar a fronteira fugindo do horror. Quando "We are the champions" ecoou, uma refugiada ucraniana estava sentada ao lado dele teclando. Sobre ela, soubemos apenas que havia relatado ter ficado três dias sem dormir até ali. Que dupla. Um ensinando sobre entrega, outro sobre resistir. Os dois ministrando aula sobre dar sentido a nossa existência, mesmo quando a vida já não é uma certeza.

Pra quem não se lembra, vale pesquisar sobre Martello: durante os protestos antigoverno na Turquia, em 2013, o pianista passou a "morar" na praça Taksim da capital Istambul. Ele e seu piano de cauda, junto aos manifestantes que pediam democracia. O Piano Man, como ficou conhecido, hoje toca para os sedentos por paz, ainda que ela so exista por alguns segundos numa nota musical.

Na sua canção mais egoísta, Freddie Mercury escreveu que não poderia fracassar diante do que considerava um desafio diante de toda a raça humana, ele pretendia continuar lutando até o fim, porque os perdedores não têm vez e eles eram os campeões. Precisamos vencer o preconceito nos vagões que se fecham para os refugiados africanos e árabes, nas falas dos correspondentes que se padecem porque a dor que enxergam é das vítimas brancas e de olhos azuis, apenas.

A hierarquização entre grupos humanos, até numa guerra, é a maior derrota da humanidade. Isso está na base de toda violência que a gente vê, não só na Europa, na Síria, no Afeganistão, mas aqui no Brasil também. A gente olha diferente para aqueles que, nas nossas perspectivas de privilégio, "não deveriam" estar naquela situação de fugitivo de guerra, buscando uma vaga no trem apertado, um pedaço da calçada na fronteira. Por que olhamos diferente? Porque aquelas pessoas se parecem mais com a gente. "Nos comovemos mais porque estamos acostumados a ver outras pessoas sofrendo assim", me disse Cida Bento, Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), durante uma entrevista na GloboNews.

"É um desafio muito grande essa hierarquização que define quem ocupa os melhores lugares sociais, até mesmo numa guerra. Somos capazes de julgar quem é preferenciado para ser escolhido (para ser salvo), assim como a gente vê quem é preferenciado para ser assassinado."

O pianista Davide Martello, que viaja o mundo com seu piano, diz em seu perfil no Instagram: não importante o que você fizer, faça para as pessoas. Ele escolhe enxergar corações aflitos, todos eles. Com sua música-manifesto toca almas, que não têm cor e, mesmo se tivessem, todas as cores são lindas, só depende de que vê. Eu vejo seres humanos como eu e você, com o mesmo direito à vida, assim como eu e você.

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