Médico anestesista Giovanni Bezerra é preso por estupro de grávida, durante o parto. — Foto: REGINALDO PIMENTA/AGÊNCIA O DIA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO
Com certeza existe uma mulher perto de você. Pergunte. E escute. Não é fácil falar. E nem todos se interessam em saber. A irmã do anestesista Giovanni Quintella escreveu em uma rede social que já passou por um abuso, de acordo com o jornal "Folha de S. Paulo". "Não estou bem mas sei que vou ficar", teria afirmado ela. "Sou irmã mas antes sou mulher. Já fui vítima de abuso e eles não passarão. Desgosto e vergonha. A única coisa que peço é que não propaguem o ódio."
O crápula que se vestia de médico e escondia sua perversidade atrás do jaleco para abusar e violentar, de tantas formas inomináveis. Abusava de um vínculo de confiança criado com mulheres pacientes, colegas de equipe. Um abuso que atravessa a todas nós, que vamos para mesa de cirurgia, que damos à luz. Nós que insistimos em acreditar ser possível viver numa sociedade sem um código social que sirva de passe livre para tocarem nossos corpos.
A irmã do anestesista não se identificou, mas sua mensagem evidencia o que esse episódio tem provocado no país, em diferentes graus de dilaceramento. Não conheço uma mulher fora desse luto. O Brasil passou para pensar sua relação com o machismo estrutural de um jeito diferente. O estupro daquela parturiente - pelo menos outros cinco casos no mesmo hospital já estão em apuração - virou conversa nas mesas de trabalho, nos jantares em família, nas academias, onde, como bem destacou meu colega Manoel Soares no programa "Encontro", estão esses facínoras travestidos de gente: "e nós, homens, temos que nos lembrar que esses criminosos são aqueles caras que estão com a gente no bar, tomando cerveja, que está na academia. Nós, homens, temos que inibir isso. A gente não pode se eximir dizendo que não tem nada a ver com isso. Não é porque eu não bato em mulher que eu não tenho responsabilidade. Eu tenho que virar para esse cara e dizer: você vai se quebrar". Todos temos responsabilidade. A sociedade onde existem médicos, assim, é a sociedade que ajudamos a compor. A omissão fez parte da caminhada até aqui.
Esposas, companheiras, colegas, irmãs, sobrinhas, netas, essa semana, exigiram posicionamentos dos homens que as cercam. Porque não há mais espaço para a nada diferente disso. Próximo a mim, alguns homens chegaram a se sentir pressionados, com dificuldade e receio de se posicionar, medo errar no tom. Minha resposta: se arrisquem, e tentem se aproximar da opressão que nos acompanha todos os dias, desde quando nascemos. Vocês são filhos de uma mulher.
Gostaria de abraçar essas enfermeiras e técnicas do Hospital da Mulher, agradecer pela coragem e comprometimento com nós, mulheres. Abracei em tantas noites recentes essa mulher violentada no momento que deveria ser o mais intenso e bonito de sua vida. Enquanto escrevo essa coluna, ela pode estar a caminho da delegacia para prestar depoimento. Recebeu alta na quinta-feira, dia em que outra possível vítima também foi ouvida pela delegada, enquanto carregava seu recém-nascido no colo.
Estamos exaustas. Mas estamos lutando e vencendo, sim. E não estamos sozinhas. A classe médica se posiciona e já entende a urgência de mudanças curriculares nas faculdades de medicina e aprimoramentos de protocolos nos hospitais: "o problema precisa ser identificado, ser visto. Na medida em que a gente coloca como um caso isolado, de um médico monstro, a gente apaga a recorrência dos casos e dificulta a identificação e as formas de enfrentar. Não é um caso isolado e perpassa toda uma cultura de dominação e machismo que também acomete profissionais de saúde e está presente nos cenários de cuidado, de serviços de saúde. As instituições precisam construir protocolos que deixem clara a proteção às vítimas", me disse a médica Júlia Morelli, da Sociedade de Medicina de Família e Comunidade em entrevista ao "Jornal das Dez". A entidade preparou um documento com várias recomendações e conclama todos os médicos a essa reflexão.
O ambiente que naturaliza violências contra as mulheres começa nas piadas machistas das quais todos riem, começa no "fiu-fiu" na rua, nos olhares que invadem e desrespeitam sem constrangimento. Se posicione contra isso todos os dias. Médicos assim também são fruto de uma sociedade adoentada que idolatra imoralidades. Brasileiros tão indecentes quanto Giovanni Quintella foram capazes de criar perfis em rede social com o nome dele, se descrevendo como fãs. Esse Brasil pode estar respirando do seu lado, neste instante. O fim da violência sistêmica contra as mulheres começa em mim, em você.