Matrimônio
A tradução literal do filme “500 dias com ela”, lembram dele?, seria 500 dias de verão.
A mensagem do filme é que nessa vida tudo passa.
Para o carioca não. O carioca vive 500 dias de verão.
A diferença é que, quando chega a estação propriamente dita, tudo passa mais rápido, tudo fica mais ofegante, abafado, a vírgula substitui o ponto, o ponto substitui o parágrafo e, no caso deste texto, papel e lápis substituem o notebook, que esquenta demais para ficar no colo nesta noite de 30 graus, para ser suporte de ideias de uma cabeça quente e desorganizada pronta para um choque de ordem, porque no verão tudo precisa de um choque de ordem, sejam flertes que querem virar romances, seja o que fazer com o 13º ou com o coração em final de Campeonato Brasileiro, com o fígado em véspera de carnaval, com as resoluções de Ano Novo, pois como um bloco de sujos numa quarta-feira de cinzas e, quando o prefeito nos chama de bloco de sujos, nós tocamos o bumbo solitário de quem paga imposto mas fica sem luz no Leblon, sem luz na Tijuca e, exigimos em troca um choque de ordem nas instituições que são sustentadas por nós, mas esquecemos os nós que somos nós e o quanto sós estamos nós, que desatar e reunir faria do nosso verão uma estação ainda melhor, ainda que um verão carioca de verdade e, que talvez o próprio carioca, se chocado e ordenado, seja menos carioca e isso é lindo e péssimo, porque o calor que inspira os compositores de marchinhas é o mesmo que queima as obras de Helio Oiticica, que nos faz procurar as “comfort parties”, festas caras no meio da semana, sem filas e sem pegação, mas que nos deixa sem paciência para fazer coleta seletiva do lixo ou tomar conta da água parada nos vasos de plantas, o que esconde uma ainda mais grave visão superficial do que seja meio ambiente, como tenho discutido com meus alunos de ensino fundamental e médio, quando fazemos uma limpeza geral na sala de aula antes da aula começar, porque a sala de aula é um ambiente a ser respeitado e temos que ter uma melhor relação ambiental com esses ambientes pouco lembrados, a sala de aula, a rua onde se mora, o bairro onde se vive, a praia que se frequenta, o ônibus da segunda-feira, o outro, sim, o outro consiste em um ambiente a ser cuidado com doçura e respeito e, principalmente, a si próprio, esse ambiente esquecido, a mente, a saúde do corpo, a pele da mocinha que neste momento dorme ao meu lado, com um poema do Leminski tatuado nas costas. “A noite me pinga uma estrela no olho e passa”, que de vez em quando vai à academia para se manter bela e lê Ana Cristina Cesar na varanda para ocupar a mente, ou o pelo, sem circunflexo, abre parêntese, a língua é o ambiente que mais sofre com o impacto das ações do homem, fecha parêntese, pelo da gata vira-lata que dorme de barriga pra cima no pé da cama e agradece o calor, pois gatos gostam de calor e são exemplarmente organizados e, por isso cariocas deveriam ser as tais gatas extraordinárias que andam no meio onde fluem e, que evoluem e que incluem a todos, simples assim, então nosso prefeito, satisfeito, poderia ocupar-se de impor choque de ordem em outras áreas urgentes e, então haveria o equilíbrio entre os bons selvagens cariocas que somos e os cidadãos de Estocolmo que pretendem que sejamos, então haveria afinal equilíbrio ambiental, o altinho liberado na beira da praia, a pipa dibicando no alto do morro da mangueira imortalizando Oiticica, a piscina de plástico na laje de casa, o pisca-pisca sincretista das luzes de natal misturadas ao néon dos inferninhos de Copa, os blocos de sujos, esses nós do verão e nós no verão.
Ufa.
O texto acima foi escrito em 2010, quando a revista de domingo do jornal O Globo me convidou para escrever uma coluna que resumisse o verão.
Quatro anos depois, o que mudou? Sabemos mais sobre gás lacrimogêneo, preços altos, mau humor com turistas. Nas ruas, não se vê a comoção coletiva quando fomos escolhidos sede da Copa do Mundo. Nenhuma rua decorada de verde e amarelo.
John Turturro está em Paquetá filmando um dos episódios de “Rio, eu te amo”, filme no qual cineastas do mundo inteiro celebrarão a Cidade Maravilhosa.
Turturro foi um dos protagonistas de Faça a Coisa Certa, obra prima de Spike Lee, que se passa no dia mais quente do ano em Nova York e observa as tensões entre seus habitantes e a inexorável fricção entre cidadão e cidade.
Um filme sobre nós: eu, você e aquilo que fazemos com uma corda quando queremos amarrar algo.
O Rio de Janeiro está certamente mais bonito do que em 2010.
Porque num casamento de verdade, uma mulher é sempre mais bonita de manhã quando acorda do que maquiada.
A cidade está mais bonita porque terminaram finalmente os séculos de namoro entre o Rio de Janeiro e os que aqui vivem.
Começou o casamento.
Todos que trataram a cidade como fosse um amor de verão, destes que a gente aproveita só o romance e cai fora quando as coisas começam a dar nó, agora tem que casar. Dormir e acordar, junto, aguentar o bafo, respeitar os espaços, encarar as mudanças de humor, eventuais traições, desencantos, dispor-se a trabalhar duro para resolver crises.
Por isso, toda vez que você ouvir gente que mora aqui reclamando da cidade, não se impressione tanto: é só DR. Briga de casal. Tentativa de desatar nós em um ambiente de 500 dias de verão.