O Fim e o Princípio

seg, 03/02/14
por Dodô Azevedo |
categoria Cinema

No filme “O Fim e o Princípio”, filmado no sertão da Paraíba, Eduardo Coutinho observa e entrevista pessoas idosas, terminando o papo com a seguinte pergunta. “Você tem medo de morrer?”

Como resposta, ouviu, de primeira: “Eu tenho, você não?”

Também ouviu dos velhinhos sertanejos definições sobre a existência como:

- E quem é o mundo, somos nós?

Ou:

- Só existe o que aconteceu. O que não aconteceu não existe não.

Eduardo Coutinho era o maior cineasta brasileiro em atividade.

Em 2012, a exibição em Cannes da cópia restaurada da obra-prima “Cabra Marcado Para Morrer”, de 1985, com a presença da então ministra da Cultura, Ana de Hollanda, e de cineastas do mundo inteiro, subscreveu essa constatação.

Eduardo Coutinho não compareceu ao festival. Estava internado com pneumonia. Na plateia, nos bastidores, falava-se com preocupação à respeito da possibilidade de um dia Eduardo Coutinho vir a morrer.

Era a preocupação dos que entendem que Coutinho era o mestre definitivo de uma arte humanista. Era a preocupação dos que entendem que só o humanismo radical pode salvar o mundo.

Sim, o mundo: neste domingo, tudo o que se viu nas redes sociais e nos comentários das trágicas notícias publicadas ontem nos portais brasileiros comentavam – “O que está acontecendo com o mundo?”, “Este mundo está perdido!”

Não. Não está perdido. Tragédias acontecem desde que o mundo é mundo. Se existisse internet na época da Idade Média, os portais de notícia teriam atrocidades inomináveis diárias para noticiar.

É que a vida moderna, com seus ares-condicionados e antibióticos, nos transformou em sujeitos muito medrosos. Quem, ao ler as notícias do dia-a-dia, hoje, não sente medo, um medo de tudo, de sair na rua, de não sair na rua, de conhecer pessoas novas, de ficar sozinho, de ir para a passeata, de não ir para a passeata, ou medo do que quer a rapaziada do rolezinho em nossos shoppings centers seguros, medo da atitude suspeita daquela pessoa geralmente de pele escura que vem vindo da esquina em sua direção… Medo: essa é a nossa doença moderna.

Nossa real esquizofrenia.

Se um meteoro cai na Rússia, isso nos deixa com agonia, repercute mais dentro de nós. Mais do que se tua saúde vai bem, ou se tem um vizinho solitário precisa de uma palavra amiga, ou se um mendigo na esquina necessita de um prato de comida.

Temos coisas mais importantes com o que nos preocupar, como a queda do PIB na Argentina ou o coma do Michael Schumacher.

Os gregos, lá atrás, entendiam que a tragédia é cotidiana, humana, e que infalivelmente, acontece na vida. A dramaturgia da Grécia é trágica.

Ao contrário de nós, Eduardo Coutinho e os gregos clássicos não tinham medo do que é trágico. Porque não tinham medo do que era humano.

Nem tinham medo, como nós temos, do mistério. Do invisível.

Os filmes de Eduardo Coutinho estão cheios de melodramas e tragédias inexplicáveis vividas pelas pessoas invisíveis a nós, os verdadeiros esquizofrênicos.

Essas pessoas que a gente passa na rua e não vê, não registra, porque se vestem e se comportam como “pobres sem educação”. Ou as pessoas que moram em quitinete mínimos, como em “Edifício Master”, em favelas, como em “Santo Forte e Babilônia 2000″, ou no sertão da Paraíba, como em “O Fim e o Princípio”.

Esses brasileiros que nos interessa fingir que não existem.

E que por serem incapazes de retribuir a indelicadeza, são mais humanos que nós.

Desumanizados, amendrotados, incapazes de ver os outros, costumamos, nessas horas, comentar: “Este mundo está perdido”.

Tudo o que Eduardo Coutinho fez enquanto viveu foi encontrar o mundo para nós. Fazendo o que, hoje, é a coisa mais difícil para nós, desumanizados: sem julgamentos.

Se o fim da vida de Eduardo Coutinho deixou a arte brasileira com clima de juízo final é nossa responsabilidade: desumanizados, julgamos tudo.

Basta ver os comentários nas notícias dos portais de internet.

Mas Coutinho nunca foi de comentar.

Eduardo Coutinho era de documentar.

Este sempre foi o seu objetivo.

Seu fim.

E sua convicção.

Seu princípio.

Tentar nos salvar foi o fim e o princípio de Eduardo Coutinho.

Foto: Felipe Rau/Estadão Conteúdo



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