Carnaval em casa
São muitos os sentidos da palavra liberdade. Para os ucranianos que passaram o último mês ocupando a praça em Kiev, liberdade é uma coisa. Para os presidiários do Maranhão, outra. Para quem nunca teve grana pra comprar uma TV de LED, comprar uma TV de LED.
Ser livre pode ser, então, questão de poder agir – liberdade física. Ou de poder pensar – liberdade intelectual.
Porém, liberdade de querer é, de longe, a mais difícil de conservar. Afinal somos livres para querer o que queremos?
Chama-se a liberdade do querer liberdade metafísica. Ou liberdade sobrenatural, ensinam Platão, Russeau e Kant.
Para os cariocas, liberdade é querer passar o carnaval em casa.
Repare: faz uns quatro anos que o carioca deixou o carnaval de rua, revitalizado no início do século 21 e já três vezes o tamanho do carnaval da Bahia, para os turistas.
Carioca que é carioca curte o carnaval nos cada vez mais antecipados fins de semana que o antecedem.
Durante os feriados do carnaval propriamente dito, o carioca, já cansado da folia do pré-carnaval (já desfilou o Pérola da Guanabara em Paquetá, o Gigantes da Lira em Laranjeiras, o Timoneiros da Viola em Oswaldo Cruz, o Monobloco só na semana que vem) quer é distância.
E a distância mais barata entre o carioca e o vamos chamar de carnaval oficial – seu trânsito imprevisível, suas ruas fedendo a mijo sob um sol pusilânime e os brasileiros meio riquinhos com pele cor de palmito que a cada ano invadem em maior número a cidade – é a sua casa.
Quem nunca experimentou passar o carnaval em casa não sabe nada de metafísica.
Afinal, a gente vive reclamando que não tem tempo de visitar a casa dos amigos. Ou de curtir a própria casa.
Na verdade, o carioca trabalha tanto que o conceito de casa já é algo muito, digamos, intelectivo neste momento.
Pois o carnaval – que a cada ano expulsa mais cariocas das ruas – está aí pra isso.
Pra ficar em casa.
Mas ficar em casa fazendo o quê? Ah, a liberdade física.
Pra começar, esquece o preconceito dos outros. Olha-se para quem passa o carnaval em casa como quem sofre de dengue.
Liga não, é dengo de quem queria te ver na rua ali agregando valor ao camarote.
Segundo passo: deixar dietas para lá. Aliás, quanta gente faz dieta, malha e acorda cedo em dias de carnaval, já repararam? Meu avô me ensinou que exatamente o contrário que se faz em feriados.
Deixar as dietas: é carnaval dentro de você também. Brigadeiro de colher, Cheetos, Baconzitos, ovinhos de amendoim, essa nova Pringle’s sabor asa de frango frito e apimentado, pacotes de Bis, mortadela com limão servida no prato com palitos de madeira.
Esquece copo – menos coisa pra lavar. Tudo em lata. O refri, o suco, a vodca, a cerva. Arroto está liberado. Afinal, só amigo muito íntimo tem a manha de frequentar sua casa no carnaval.
TV. Prato cheio. Mesmo raciocínio de deixar a dieta e o preconceito para lá: veja TV aberta, que vai desde a manhã, acompanhando o carnaval de rua ao vivo do nordeste, passando pela cobertura de bailes decadentes e camarotes na Sapucaí cheio de celebridades pagando mico com camisa de cervejaria.
Rir de coisas ridículas – o feriado que seu espírito precisa.
Rebata com algum filme em preto em branco. Lubitsch ou alguma chanchada funcionam como um Engov para a alma. Tudo o que precisa num sábado de carnaval para recuperar o fôlego é assistir a, por exemplo, “Carnaval em Marte”, de 1995, com Ansemo Duarte.
Domingo é dia da cerimônia do Oscar. Já viu todos os indicados a melhor filme no cinema, reclamando feliz do frio do ar-condicionado? Tem até domingo para fazê-lo.
Se estamos falando aqui de um casal, convém alertar para um preconceito ainda mais feroz. Ah, Fulano não veio ao bloco este ano porque tá casado.
Já repararam nos casais em blocos? Bebendo para esquecer a tensão de encontrar com o ex, ou do outro encontrar com o ex. Se se perdem por 15 minutos, pronto: DR no meio da rua.
Já repararam nos solteiros em blocos? Todos solitários, no fundo sorrindo pra não chorar. No carnaval o folião baixa suas expectativas românticas como se no século 21 o romance já não sofresse tanto preconceito quanto… ficar em casa no carnaval.
O máximo que vão conseguir é um beijo ou um amasso descompromissado de cinco minutos, na melhor das hipóteses. No fundo, ninguém quer nada fundo contigo, pierrô, nem contigo, colombina. Bora beber pra esquecer.
Repare, metade das marchinhas são sobre tristezas, perdas, saudades e desencontros. Não só as marchinhas. No carnaval, metade do povo sai por aí acusando que você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão.
Enquanto nas ruas bebe-se para esquecer que se está sozinho, em casa bebe-se para celebrar a bela companhia que pode no caso ser até você mesmo.
E não se preocupe em perder nada do que se passa nas ruas. Você vai acompanhar o carnaval de todo mundo, e em tempo real, não se preocupe. Instagram, Whatsapp, o Tumblr onçinha cadê você, i hate flash, tá todo mundo aí pronto para expor, em todos os sentidos, suas fantasias.
A Zona Sul do Rio de Janeiro cabe todo em seu smartphone – sem o cheiro de mijo. “Não é que o mundo seja pequeno, a renda é que é má distribuída”. Se amigos foliões insistirem na sua presença, diz que você foi ao bloco fantasiado de múmia, e que quis passar incógnito, e que achou um barato. Minta. É carnaval.
Agora, se chover, caro leitor… Se por acaso o tempo fechar, ficar cinza, a temperatura cair a 18 graus e chover, ah, se isso acontecer, você para tudo o que estiver fazendo, coloca tua melhor fantasia e vai pra rua e canta todo Hino da Bandeira, emenda com o refrão de “Chuva, suor e cerveja”, passe a mão na bunda do guarda e dê cambalhotas no meio fio.
Se chover, será uma demonstração definitiva liberdade sobrenatural dos céus.
E se os céus resolverem também ir pra rua, aí sim: quem é você pra ser do contra?
PS: Saio de casa para pedir benção ao Cacique de Ramos na madrugada da Av. Rio Branco, que este ano será palco de tanta coisa política. No domingo, à partir das 21h, estarei em casa, bem acompanhado, comentando a cerimônia dos Oscars aqui neste blog. Agora que somos íntimos, está convidado.
Foto: Fernando Maia/Riotur