2013 - o ano em que as ruas do Brasil viraram um microondas - Foto por Dodô Azevedo
Ontem, em casa, ao invés de digitar 2-0-0 no microondas para esquentar a comida por 2 minutos, digitei os seis dígitos de minha senha do banco. Voltei para o escritório, comecei a folhear uns livros, rascunhar umas anotações e, quando senti o cheiro de queimado vindo da cozinha, já acontecia um pequeno incêndio. Ana e eu o apagamos com um balde d’água. O cheiro de queimado permanece até agora.
Distração. Cansaço. Aquilo tudo que bate em todo cidadão quando finalmente um ano acaba.
2013 já acabou? É só observar as notícias. É só observar as ruas. O bate-papo informal nas esquinas já é retrospectivo.
Então vamos a ela: a primeira retrospectiva 2013.
2013 foi como o Campeonato Brasileiro: terminou com quatro rodadas de antecipação.
E deixará um inesquecível cheiro de queimado.
O ano em que o Brasil pareceu que iria arder em chamas. “Vem pra rua!” foi a frase de 2013.
E o personagem de 2013 foi ela, a rua.
Este blog foi o primeiro, lá nas primeiras manifestações, pré-Black Blocs, olhar com minúcia e dar voz a cada um dos cartazes erguidos mais por orgulho em se ativar politicamente do que por quaisquer outros motivos – e não foram poucos.
Este blog foi, também, o primeiro a encontrar um rosto muito jovem, partidário, lúcido e sem máscara a falar claramente sobre aquele momento em que todos estavam desorientados.
E quando o mundo inteiro se perguntou “o que aconteceu com aquele país onde o povo é feliz e só queria saber de carnaval?” e aqui no Brasil se perguntavam “quem está começando os tumultos? Polícia ou traficante? Este blog foi para dentro da primeira grande manifestação, antes de tudo, antes até do vinagre, aquela, na Rio Branco ainda, e procurou esclarecer tudo. O texto, publicado aqui no G1, foi traduzido para o inglês e rapidamente compartilhado por organizações de direitos humanos em todo o planeta.
E antes mesmo de manifestantes menos lúcidos e mais mascarados atearem fogo no Palácio do Itamaraty, lá em Brasília, em junho, este blog foi o primeiro a dizer que não se tratava do fim do mundo, e sim as violentas contrações da transição de uma democracia de um estágio para o outro. Um pequeno incêndio vindo da cozinha.
Para um país que desde os tempos do Império nos dá motivo para incendiar tudo em todas as cidades, até que estávamos no lucro.
A cada vez maior classe média carioca, que vivia uma lua de mel com sua polícia, seu Bope, seus Capitães Nascimento, sua Copa e Olimpíada, pediu divórcio quando viu, principalmente pela internet e mídias alternativas, o tipo de tratamento que o estado dá, desde os tempos da ditatura militar, ao cidadão divergente.
Quem aplaudiu os militares que entravam na comunidade do Alemão em 2012 agora entendia a gravidade de se ter uma polícia militarizada. Quem aplaudiu as tentativas da prefeitura em imitar o tolerância zero novaiorquino, as praias com as barracas padronizadas, todas da mesma cor, agora reclamava da tolerância zero de nosso prefeito com os cidadãos que ocuparam a Câmara Municipal.
A tal da cada vez maior classe média carioca, constituída mais por gente pobre que ascendeu do que ricos que descenderam. Se depender dela, dos que estão a cada dia ascendendo a ela, dos miseráveis que por décadas viveram abaixo da linha da pobreza e saíram dela na última década e do cidadão que mora numa cidade de interior que só agora está contando com médicos, não só Dilma já está reeleita, como Lula se quiser se elege por mais 8 anos depois que o mandato da presidente terminar. Mesmo no Rio, onde Cabral parece ser unanimidade negativa, o governador fará também sucessor sem muitos sustos.
É porque se você paga o dobro do aluguel para morar em Copacabana e acha isso um absurdo, o barraco da dona Iracy no Pavão-Pavãozinho duplicou seu valor nos últimos anos, e isso é ótimo para ela. Se os bancos têm lucrado cada vez mais, as empregadas domésticas ganharam uma justíssima PEC. A transferência de renda no país finalmente começou a acontecer, a oferta por emprego aumentou. Há um provérbio muito carioca e muito sábio que dá conta desta certeza: Zona Sul não ganha eleição.
E não é vestindo preto e escrevendo cartazes “onde está Amarildo?”, ignorando todos os outros Amarildos que o precederam e que não se iluda, estão acontecendo neste momento, que se presta solidariedade à favela. É ficando feliz por dona Iracy. Entendendo que seu incômodo é, de certa forma, para que ela tenha melhora na vida. É aquela história: tem espaço pra todo mundo, é só cada um se dispor a dar um passinho pro lado.
É sobre esta convivência e as tensões que dela derivam o filme do ano de 2013. Na verdade, o mesmo de 2012. “O som ao redor”, de Kleber Mendonça Filho, foi escolhido este ano o filme para representar o país no Oscar. São muitas as qualidades que mantém este filme de baixo orçamento vivo desde 2011. Algumas contextuais: filme recifense, representante de um saudável deslocamento de atenção, sempre focado no eixo Rio-Sp e uma espécie de padrinho da safra recorde de filmes produzidos em 2013, “O som ao redor” se passa inteiro justamente… em uma rua.
Também não será o recente encarceramento dos condenados no processo chamado “mensalão” que irá harmonizar tensões entre classes ou colocar o Brasil nos trilhos na luta contra a corrupção, como disse a imprensa estrangeira. A Justiça da Suíça condenou agora no final do ano o um dos envolvidos no escândalo dos trens de São Paulo, sem colaboração da Justiça ou polícia brasileira ou cobertura da imprensa. O Ministério Público está louco para varrer para baixo do tapete o caso Cavendish, dos guardanapos na cabeça em Paris, e tantas outras indecências cariocas. E Renan Calheiros, principal alvo dos cartazes nas ruas em junho, vai terminar o ano tranquilo e satisfeito em seu mandato. Ainda há muito o que fazer nas ruas antes da próxima ida às urnas.
Na verdade, educar-se, ativar-se politicamente e ir pra rua rua é algo que tem que tornar-se rotina. É a única coisa que de fato faz a diferença.
Ah, o encarceramento dos chamados mensaleiros – essa notícia que também confirmou o fim do expediente de 2013. Nas ruas do Rio, imediatamente viu-se uma ou outra manifestação da militância do PT, que escandalosamente ficou fora das ruas em 2013. Desmobilizada, sequer conseguiu ocupar este ambiente onde ela se sentia tão à vontade, nem que fosse para defender o governador e prefeito do Rio, a quem o partido apoia. Nas esquinas da cidade, já se fala que a melhor coisa que pode acontecer ao Partido dos Trabalhadores foi a prisão de Dirceu e Genoino. Um motivo para que renasça a militância petista, que em 1982 era capaz de pintar uma estrela vermelha em cada um dos paralelepípedos de todas as ruas do bairro de Santa Teresa.
Somando-se isto à criminalização das manifestações, promovida por todos (governo, oposição, imprensa) temos hoje as ruas vazias de desmobilizadas. Sim o ano acabou. Fato que deve-se também à transformação da tática black bloc em movimento black bloc – fenômeno exclusivamente brasileiro que só pelo fato em organizarem-se pelo Facebook já contraria os princípios comuns aos adeptos da tática Black Bloc pelo mundo: não existe nas redes sociais uma página “Black Bloc Argentina”, “Black Bloc Espanha”, “Black Bloc New York” etc. De novo: Black Bloc, o movimento, só existe no Brasil. A tática Black Bloc é diferente: não só existe no mundo inteiro como simpatia de todos que estão nas ruas se manifestando. No Brasil, transformado em movimento, virou apenas apenas um vilão utilíssimo a quem não interessa manifestações. Tornou-se, sem querer, o melhor amigo do sistema que pretende combater.
A resposta às preces do governador Sérgio Cabral, por exemplo.
Em 2013 está todo mundo mais nu, como os índios que receberam Cabral, o Pedro Álvares, em 1500. Todo mundo nu, com seus defeitos expostos, e isto tem de ser comemorado. Ficou nu o poder público, as instituições, a imprensa, o Eike Batista, Chico Buarque, o Rei Roberto e, principalmente, nós. Quem é reacionário saiu do armário, quem é de esquerda perdeu a vergonha de se assumir. Foi o ano de um grande Breaking Bad no país.
Se 2013 foi o ano do hype desta série americana de TV que conta a história da corrupção moral e existencial de um personagem que é capaz de tudo por poder, também foi o ano em que o banho de sangue famoso e esperado episódio “O casamento vermelho”, de “Game of Thrones” – uma aula-prática do que nós humanos somos capazes de fazer para eliminar a concorrência.
Na TV Brasileira, “The Voice Brasil” restaurou a paixão do brasileiro pelo show de calouros. Houve boteco pé-sujo, cabra-macho, aumentando o volume da tevê e fazendo silêncio pra comentar o programa. Se por um lado somos humanos sórdidos, ainda nos comovemos com o brasileiro que sonha.
E se este ano ainda nem conseguiu começar para promessas como Marcelo Adnet, 2013 foi um ano eterno para a turma do Porta dos Fundos. ’Fenômeno Pop’, diagnosticou-se quando explodiram, este ano. Apareceu para acabar com a tese de algo só se torna popular se for veiculado na TV. O povão comprou os esquetes do grupo, muitos deles mais sofisticados do que o humor que se vê na TV fechada e aberta. Políticos e críticos, o grupo provou que dá pra fazer humor politicamente incorreto sem incorrer a covardias preconceituosas e sexistas, de uma turma de humor, que em 2013 só repercutiu em polêmicas de Twitter e que tem uma mania infantil de se fazer de vítima. Por isso, nas rodas de chope, só deu Porta dos Fundos.
2013 também foi o ano do maior fenômeno da história da indústria de entretenimento. Não foi um filme de herói, nem o bonito irresistível pastiche-homenagem do Daft Punk. Foi um videogame. Grand Theft Auto bateu todos os recordes de venda prometendo fazer o consumidor sentir-se na pele de um ladrão, traficante, que coloca foco em mendigo e esfaqueia prostitutas, que sequestra aviões e submarinos, que ganha pontos quanto mais delitos promover. Praticamente ser um Justin Bieber nas ruas do Rio de Janeiro. O jogo se passa nas ruas de Los Angeles, mas quem viveu o dia a dia das ruas cariocas em 2013 achou o “GTA V” coisa de criança.
No teatro, a peça do ano não poderia ter outro nome: “Incêndios”. Em literatura, Brasil, homenageado em Frankfurt, foi o país certo, no lugar certo na hora errada. Luiz Ruffato descascou a pátria amada no discurso de abertura e quando achou-se que a turma na rua iria ficar sem o apoio da classe artística, um grupo de escritores cariocas se mobilizou e publicou um curto e sóbrio manifesto às pessoas que continuavam indo às ruas.
Antes das manifestações começarem no Rio, este blog, de Londres, comentou a dinâmica das manifestações que aconteceram em Paris em maio: 500 mil pessoas nas ruas contra o casamento gay e os imigrantes num fim de semana, outras 500 mil a favor do casamento gay e dos imigrantes no fim de semana seguinte. Um exemplo a ser seguido. Que depende, no Brasil, do fim da ideia de que tudo tem que ser provido pelo estado ou pelas instituições. Ir na direção do que apontou este blog em agosto, quando contou a história da rapaziada do coletivo Norte Comum, que não espera nada acontecer – faz.
2013, o ano da rua, foi como no futebol: ainda há o suspense sobre quem vai para a Libertadores, quem vai cair para a segunda divisão e quem será campeão da Copa do Brasil. No Rio, a situação política é parecida com a dos times cariocas. Não se sabe quem exatamente vai concorrer ao governo do estado, num imbróglio também muito carioca, muito cheio de “vai indo na frente que eu já vou”.
2013, o ano da rua acabou: temos um Senado e uma Câmara livre dos votos secretos temos a provável oficialização do assassinato de dois ex-presidentes (Jango e Juscelino) e isso ser o objeto das conversas de bar, das rodas nas praias, misturando-se às levezas que costumam monopolizar as atenções nesta época, como “qual a moda deste verão?, “e o botequim do ano?”, “e o melhor show?” é interessantíssimo.
Embora cheiro de queimado nunca vai nos deixar esquecer:
Foi quase.
Quase que 2013 foi o que pode ser 2014.