Cariocas X Turistas

qui, 09/01/14
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento, Rio, Você

Rio de Janeiro, janeiro de 2014.

Fila de turistas para embarcar no bondinho do Pão de Açúcar - Foto por Dodô Azevedo

Há um fedor no ar. Repare. Um cheiro que não vem dos lixões nem dos esgotos desta cidade, que não é de ratos ou de mendigos. Não. É um cheiro que vem dos cemitérios da cidade do Rio de Janeiro. Todos eles. Fede o São João Batista, fede o Jardim da Saudade.

Um cheiro que, à noite, aumenta.

Venho por meio desta, constrangido, explicar o fenômeno.

É que trata-se do fedor dos defuntos cariocas revirando-se em seus túmulos.

Defunto doendo-se em suas tripas por desgosto.

Desgostos com seus compatriotas contemporâneos.

Os vivos.

Nós.

Porque há coisa de um, dois meses, os cariocas, de fama tão cordial e estusiasmada, se tornaram nos piores anfitriões do planeta.

Sim, o carioca declarou guerra aos turistas.

Principalmente com o turista brasileiro, de fora da cidade.

Começou assim, em cometários en passant de bar do tipo: “Que saco, Carnaval tá chegando aí, os blocos da cidade vão lotar mais uma vez de turistas. Como era bom ir ao desfile do Bangalafumenga antes desses caipiras invadirem a cidade!”

Sim, caipiras. Para o carioca século XXI, todo mundo que vem de fora virou caipira – “gente que não sabe passar protetor solar, nem se comportar na praia ou na noite da cidade.”

As moças cariocas, em dezembro, vaticinaram: “Praia? Só em abril! Eu vou é pra Trancoso. Não vou ficar em Ipanema dividindo lugar com meninas com pernas da cor de um palmito!”

Os taxistas também reclamam. “Nunca sabem o endereço de nada! Entram no táxi molhados de praia e pedem indicação de tudo: churrascaria, lugar bom pra jantar, lugar bom pra passear à noite…”

A polícia, seria surreal se não fosse óbvio, foi a primeira a perder a paciência de vez: “Os turistas estão muito desleixados. Vêm para o Rio de Janeiro e deixam a carteira no bolso de trás, como se estivessem no exterior.” – E aí o delegado do Leblon mandou cada turista se virar procurando seus pertences recuperados em caixas de papelão.

Que papelão.

O mercado imobiliário também contribiu para as tensões, emitindo boatos de que a bolha imobiliária carioca deve-se a turista brasileiro do interior, destes cheios de grana, dispostos a comprar tudo pelo preço que for, fazer o que os russos fizeram com Londres 10 anos atrás.

“É só reparar. Na hora do almoço eles se concentram nos Spolettos da cidade. Não querem gastar dinheiro nem arriscar-se na comida local! Desde que os turistas da cidade chegaram, a rede de restaurantes recolheu o potinho de manjericão grátis que ficava à nossa disposição, repare!”

O carioca delcarou guerra porque os turistas estão acabando com o manjericão do Spoletto.

Que manjericão.

Os defuntos, Antônio Maria, Leila Diniz, Rubem Braga, Clara Nunes, nossos avós, retorcem-se nas covas de desgosto conosco.

Se bem que, desde o tempo dos nossos avós, adoramos falar mal do “português da padaria”. Ele, o turista primordial, o que está desde 1500 acordando às 5 da manhã para colocar pão quentinho em nossas mesas.

“Com o calor, as famílias invadiram os shoppings! Na sessão de Até que a sorte nos separe II estava lotado de gente falando caipirês” – li em um comentário de notícia do G1 sobre esse calorão que tá aí.

“E os agroboys, gente? Na noite de réveillon fui ali na água molhar o pé e fui pega pelo braço, à força, por uns cinco, todos iguais, fortes, depilados, com grana no bolso e cabelo engomado! Só faltavam estar de sapato na praia!” – contou-me uma carioca pra lá e pra cá de bonita.

Os DJs da cidade também reclamam que os turistas ficam bêbados, incovenientes e passam a insistir para que “toque sertanejo universitário já”.

Enquanto isso, os turistas presos duas horas no meio da mata por falha no bondinho do Corcovado.

“Tá vendo? Sabia que o pichador da estátua do Drummond não era nascido no Rio de Janeiro! É mais um desses caipiras que vêm morar aqui!” – ouvi na sala de espera de um colsultório dentário enquanto passava o RJ TV.

E aí concluí – Aconteceu. Viramos os chatos insuportáveis dos parisienses.

E a fedentina das covas dos bons cariocas envergonhados com seus atuais representantes atenta as narinas.

Se achar melhor do que os outros sempre foi um dos charmes do carioca. Mas este se achar nunca foi pra valer – sempre foi mais um “quem desdenha, quer comprar” às avessas do que qualquer outra coisa.

Agora, tá tudo diferente. Se hoje você for a Buenos Aires, vai encontrar a cidade vazia de argentinos. Eles têm horror à invasão de brasileiros que se dá nesta época. Desde sempre, também no verão, os novaiorquinos vão embora de Nova Iorque. Os londrinos deixam a cidade para os espanhóis.

Este fenômeno nunca havia chegado ao Rio, o que tornava, para mim, carioca, uma cidade ainda mais única.

Agora chegou. Vou procurar um jazigo livre e me juntar aos protestos dos defuntos cariocas clássicos, os gente boa, sempre com um sorriso de “bem-vindos” nos olhos.

A você, meu caro, amado e bem-vindo turista, uma dica:

Não ligue para o que estes cariocas pensam não. Até porque o verdadeiro carioca, não espalha, mora lá longe e chacoalha num trem da central. E se você trocar a mureta da urca pela feijoada da Portela ou pelo Samba do Trabalhador, trocar Ipanema pelo Andaraí, você será recebido como você é: o admirador estrangeiro que nos faz, sempre nos fez, sentirmo-nos admiráveis.

Você, turista, é quem no fundo nos faz cariocas.

Dia Internacional da Ressaca

qua, 01/01/14
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento, Você

Rio de Janeiro, 01 de janeiro de 2014

 

Foto por Dodô Azevedo

Hoje é o Dia Internacional da Ressaca. Em todo o planeta, eu, você e todos nós bebemos na noite de ano novo. Muito. Exageramos. Todos. Os ricos, os pobres, os corruptos, os virtuosos, ateus e religiosos, casados e solteiros, adolescentes e de meia idade, todos bebemos muito.

A ressaca é esta pátria mãe que a todos acolhe. Embora odiada, negada, evitada, somos todos seus filhos a seus pés.

A seus pés. Ainda mais hoje. Em seu Dia Internacional.

Pausa para o Hino Internacional da Ressaca.

Shhhh, silêncio.

O Hino Internacional da Ressaca é extenso, com centenas de versos, todos queixosos, todos arrependidos. Mas a verdade é que nunca ninguém o ouviu. Com ressaca, não se aguenta ouvir nem canto de passarinho. Quanto mais hino. Por isso, o Hino Internacional da Ressaca é sempre tocado baixinho, Chet Baker, João Gilberto. Cantamos o Hino Internacional da Ressaca com a nobreza de quem serve a grandes damas.

Vocês, nós, os nobres súditos desta infalível senhora.

A ressaca enobrece o homem.

Ninguém diz “estou com uma ressaca terrível”, sem uma ponta de orgulho lá no fundo.

Diz-se “estou com uma ressaca terrível” com  um orgulho bélico, de quem foi à guerra e voltou vivo para contar a história.

Somos todos hoje, dia primeiro de janeiro, veteranos de guerra.

Medalha no peito, saco de gelo na cabeça.

E nobres. Pela nossa cabeça, hoje, só passam pensamentos nobres: “nunca mais bebo”, “juro que desta vez sossego”, “ano que vem só vou tomar chá verde”, “semana que vem vou marcar uma visita ao doutor”, “tenho que tomar vergonha na cara.”

De cama, desidratados, castigados pelo calor tropical, passamos o Dia Internacional da Ressaca planejando dias melhores.

Mentira. A ressaca de verdade, a ressaca que de fato, eleva o espírito mas não nos deixa planejar coisa alguma.

A ressaca de verdade, a ressaca vitoriosa e heróica, não nos deixa sequer pensar.

O raciocínio, afinal, é ferramenta exclusiva dos tempos de paz.

E vivemos todos, em época de reveillon, tempos de guerra.

Guerra conosco, com nossas frustações durante o ano que passou e expectativas para o ano que se inicia.

A função definitiva da ressaca. Nos fazer parar de pensar, esse veneno da alma. Nos pacificar por paralisia.

Há jeitos e jeitos de guardar respeito em dias de ressaca. Tomar uns remedinhos, trancar-se num quarto escuro e dormir é o mais desrespeitoso deles.

Ressaca é pra se sentir.

Há um aparelho eletrônico que ajuda muito na ressaca, porque passa a pensar por você, dá uma folga pra tua cabeça.

Chama-se televisão.

Ver televisão o dia inteiro, sem pensar em nada, bom remédio para a ressaca.

Pode-se, por exemplo, hoje só assistir filmes notórios por suas cenas de noite de reveillon. Harry & Sally finalmente se acertando no último segundo do ano de 1993.

Meg Ryan dizendo “Eu te odeio”, com a maior cara de “eu te amo”. – aula de marketing pessoal feminino.

Pode ser O Poderoso Chefão, Parte II, Michael dando um beijo na boca do irmão, Fredo, no último reveillon de Cuba antes da revolução comunista.

Al Pacino dizendo “você partiu meu coração” para o (grande) John Cazale. – uma aula de sexualidade.

Enquanto é o nosso fígado, e não o coração, que está partido.

O Dia Internacional da Ressaca é um oferecimento, é patrocinado, por ele, o Fígado.

Esse injustiçado benemérito da alma.

É recente essa história de que, para a medicina, o coração é o órgão mais importante do corpo.

Invenção da cristandade.

Embora São João da Cruz, interpretando Jeremias em “Lamentações”  e “Deuterônimo”, tenha afirmado “Mas o reino de Deus, se ele existe de fato, não está no coração, e sim no fígado.”

O Islã atribui ao fígado as paixões – provavelmente por conta do sabor amargo da bílis, e daí a palavra “amargura”.

Nas línguas do extremo oriente, várias expressões que significam “fígado”, também querem dizer “coragem”.

Na China antiga, era comum um gerreiro comer o fígado do vencido para absorver sua energia.

Os chineses ligam o fígado à cor verde – e verde é a cor da bílis. Também ligam o fígado, esse severo observador das nossas emoções, aos sabores ácidos.

A cor verde é ácida.

A acidez da vida faz mal o fígado.

A ressaca o educa.

Remédio bom, afinal, é remédio… amargo.

Então, se guerreiros ouvem os hinos de suas nações com a mão no coração, hoje é dia de levar a mão ao fígado e cantar o Hino Internacional da Ressaca.

Vamos lá,agora, todos juntos, começando pelo primeiro verso, o mais conhecido de todos os versos da história dos Hinos Nacionais, o mais imitado, o mais bonito.

Que, se não me engano, é assim:

“Shhhhhh…”

 

 

 

Noite Infeliz

ter, 24/12/13
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento, Você

Rio de Janeiro, dezembro de 2013.

Foto por Dodô Azevedo

 

Passei aqui para desejar a você um Infeliz Natal.

Sim. Infeliz.

Pro teu bem.

Como um presente.

Só se entende o conceito de amor se entender-se muito bem o conceito de dor.

Afinal, o que se aprende com noites felizes de Natal?

E o que é, no fim das contas, uma noite feliz de Natal?

Para uns, só e apenas um Xbox One novo, dado por Papai Noel, pode fazer esta noite de Natal ser supimpa. Já para quem está, por exemplo, doente, internado no hospital, receber alta na noite do dia 24 é felicidade invencível. Para os que moram debaixo da ponte, um prato de comida. Para um viciado em crack, mais uma dose. Para quem está brigado com a família, um aperto de mão e um abraço, mesmo que sem jeito. Para os que moram na Síria, o fim da guerra.

Uma noite feliz de Natal está radicalmente condicionada à realização de desejos. Dos mais nobres e impossíveis aos mais fúteis e consumistas passando pelos mais sem esperança. Não importa. O que importa aqui é: aprendemos algo em noites felizes de Natal?

Aprendemos algo quando realizamos algum desejo?

Ou aprendemos mais quando eles não se realizam?

Dá mais valor à ceia farta e à companhia da família quem já passou uma noite do dia 24 sozinho, comendo um pote de azeitona num apartamento de uma cidade estranha, porque trabalhou de extra numa loja de um shopping que só fechou às 22h da véspera de Natal?

A cada Natal, assistimos aumentar o número de confraternizações entre amigos: os do trabalho, os do tempo de faculdade, os do tempo de escola, os de infância. Tempo, tempo, tempo, tempo – diz-se. Dezembro é um parto (o Natal existe para comemorar justamente um parto de um sujeito incrível) – um mês a cada ano com a agenda mais lotada de felizes encontros de amigos.

Encontros que, ao contrário dos de família, nunca terminam nas famosas brigas de Natal.

Estariam os amigos substituindo a família? Provavelmente sim – somos preguiçosos. Se nos fosse ordenado por anjos, provavelmente não aceitaríamos de bom grado morrer na cruz para o bem do futuro da humanidade.

E além do mais, os grupos contemporâneos de amigos são, hoje, tão fiéis quanto a família.

O que é, acredite, a bela vitória do conceito de… família.

Nossa família anda cada vez maior. Por mais que desconfiemos, todos em volta estão virando família, este maravilhoso conceito de “sacrifício para estar junto”.

Uma família que não é mais necessariamente determinada pela ciência, pelo sangue – pelo conteúdo do cálice da última ceia, aquela, famosa, promovida pelo sujeito incrível cujo parto comemoramos na meia-noite do dia 25 de dezembro, esse mês-parto.

E, sim, determinada pela cruz.

Hoje, quem carrega a mesma cruz, repare, identifica-se um com o outro, simpatiza-se e, enfim, une-se.

A cruz, a tristeza e a solidão são, no fim das contas, afeto.

De novo: só se entende o conceito de amor se entender-se muito bem o conceito de dor.

Observe-se, mais uma vez, um parto. Mãe urra de dor. Grita de dor. Chora de dor. Expele um bebê. Levam até o colo da mãe o bebê. Neste momento a mãe, finalmente, entende que só agora sabe de fato o que é isso, o Amor.

“Só ganha quem perde”, e não “INRI”, era o que deveria estar escrito na plaquinha da cruz onde o sujeito incrível que nasceu no dia 25 de dezembro morreu insistindo que, apesar de tudo, nos amava a todos.

Desejo a você um Infeliz Natal. Pode não ser hoje, pode ter sido anos atrás, pode ainda acontecer, pode acontecer várias vezes, pode até acontecer mais na sua vida, em muito maior número, que natais felizes.

Pro seu bem.

Como um presente.

Há um doce dissabor até nas mais felizes das noites de Natal – aquelas com coral de crianças e sossego. Repare-se que o hino do Natal, “Noite Feliz”, tem a melodia mais triste do mundo. E a letra? “Pobrezinho, nasceu…” / “Dorme em paz ó…” – e conta uma história triste. A história do nascimento de alguém que sofreu muito para ter uma compreensão total do que é o Amor, essa palavra.

Bela história. Uma história que nunca chegou ao fim. Porque o sujeito morreu, ressuscitou e, dizem, está por aqui, a olhar por nós pecadores, tentando nos enfiar alguma coisa na cabeça.

Ou no coração.

Pro nosso bem.

Como um presente.

Histórias belas e tristes não têm fim. Terminam com reticências, estes três pontinhos que calam mais fundo porque em si não contêm respostas nem definições nem…

Desejo a você um Infeliz Natal.

Pro seu bem.

Como um presente.

Por que?

Porque eu te amo. Não importa quem você seja.

E que nunca ‘tudo se realize no ano que vai nascer’.

Que sempre falte a ti alguma coisa.

Escrevo isso, tenha fé,  porque te amo.

Eu te amo e se você topar carregar comigo esta linda cruz chamada vida…

 

Uma mulher qualquer

qua, 18/12/13
por Dodô Azevedo |
categoria Cultura, Música, Rio

Rio de Janeiro, dezembro de 2013.

(Foto: Daniela Dacorso / Agência O Globo)

 

Desde que participou no último domingo do Projeto Aquarius, tocando ao piano o Concerto 21 em dó maior, de Mozart, acompanhada da Orquestra Sinfônica Brasileira, Ana Paula Araújo (foto acima), a apresentadora do Bom Dia Brasil, não ouve outra coisa:

“Não sabia que você tocava piano! Como você consegue fazer tantas coisas ao mesmo tempo?”

Ana Paula tem ouvido isso de desconhecidos nas ruas, de amigos, de parentes distantes, desde que as imagens de sua apresentação foram veiculadas na TV.

Todos surpresos.

Como pode uma mulher, uma única mulher, ser jornalista, apresentadora de TV, trabalhar 10 horas por dia, ter sido a repórter da matéria que deu o único Emmy ao jornalismo das organizações Globo, ter uma filha, que é uma espécie de super Emmy, educar a filha sem o auxílio de babás, ou, pra rimar, nannys, cuidar de si própria, ir pra academia, ficar gostosa, se entender com mil cremes, ficar linda, ir à praia, ler John Fante antes de dormir, ir ao cinema assistir à última Palma de Ouro em Cannes, ir para a balada dançar o último single do Daft Punk, jantar uma noite no Gero e na outra saborear as coxinhas de galinha do Bar da Gema, na Tijuca, conhecer e ser bem vinda em todas as quadras das Escolas de Samba, em todos os blocos de Carnaval, socorrer amigos quando estão deprê, dar-se o direito de ter de vez em quando sua própria deprezinha, saber contar piada, saber gerenciar sozinha sua vida financeira, e ainda por cima… tocar piano?

Como pode uma única mulher fazer isso tudo?

(Sabe-se que, se um homem aparece com muitos talentos, não há espanto).

As respostas para a pergunta “como pode uma única mulher fazer isso tudo?” são dois jogos de palavra muito simples:

1) Nenhuma mulher é uma só.

2) E por isso, todas as mulheres são únicas.

E paradoxalmente vítimas, como Ana Paula, destas mesmas respostas imperiais.

Porque todos nós, homens, mulheres, velhos e crianças tememos tudo o que é único.

Exemplo: não há mulher menos desejada por homens do que mulheres mais capazes do que eles.

Elas acabam, então, não apenas diminuindo-se, não apenas precisando redimensionar-se para caber  no gosto e na falta de coragem dos sujeitos.

Pior.

Elas acabam se transformando numa mulher só.

Numa mulher apenas.

E, enfim, só.

Sós. Até que acontecem momentos assim, em que resolvem mostrar que, além de tudo, sabem, por exemplo tocar piano. E assim, descobrem que não são apenas uma só.

São várias.

E e estas várias mulheres, a melhor companhia que se pode ter para si própria.

Embora a maioria das mulheres não suporte a si própria.

Duas horas antes de Ana Paula subir ao palco, este blog esteve nos bastidores do Projeto Aquarius e invadiu um momento íntimo de uma das Ana Paula Araújo que vivem dentro da Ana Paula Araújo: o momento em que, sozinha, só, o piano e ela, acontece o aquecimento, o reconhecimento dos dedos com as teclas.

Assim que começou a tocar o piano, reparei que aquela Ana Paula ali, na minha frente, estava muito, muito tensa.

Mas estar tensa é normal. O problema é que ela, a duas horas da apresentação, estava é com medo.

Medo do sucesso, claro.

Este mesmo medo que você, leitor, tem em todas horas pares da sua vida.

Chamei a atenção desta Ana Paula a respeito de ser bom ainda existirem coisas que nos fazem sentir medo de sucessos. É sinal que a aventura ainda não acabou para nós.

Em seguida, informei que ela estava tocando o piano como estivesse se preparando para um terrível obstáculo.

Quando, na verdade, era um presente.

Um convite do próprio maestro da incrível Orquestra Sinfônica Brasileira.

Acontece que a gente tem esse costume besta de confundir presentes com terríveis obstáculos.

“Então, Ana Paula: chegou a hora de você decidir como vai se relacionar com um presente.”

Ela ouviu e falou: “É, acho que estou mesmo com este medo tolo.”

De novo, informei: todo mundo sente isso o tempo todo.

Qualquer pessoa.

Então, todo o peso do mundo saiu dos ombros desta Ana Paula quando ela, enfim, entendeu que era, ufa, uma mulher qualquer.

Única.

Como qualquer mulher.

(Você pode ver a apresentação de Ana Paula aqui)

Mandela, eu, minha mãe e o Samba

sex, 06/12/13
por Dodô Azevedo |

O colunista Dodô Azevedo no colo de sua mãe em 1972 – Foto Arquivo Pessoal

Armação de Búzios, 6 de dezembro de 2013

 

No dia 07 de dezembro de 1971, minha mãe fazia aniversário.

Para ela, não houve bolo nem vela para assoprar, nem pessoas em volta cantando “parabéns pra você”, não houve casa cheia de gente comendo e bebendo.

É que minha mãe passou o aniversário numa maternidade, dando à luz seu primeiro filho.

Eu.

No momento em que nasci, numa maternidade do bairro de Laranjeiras, perto dali, meu pai comemorava o nascimento do primeiro filho bebendo numa roda de samba com amigos, num boteco da rua General Glicério, onde funcionou de 1880 a 1930 a fábrica de tecidos Aliança, cujos trabalhadores fundaram dois dos primeiros ranchos carnavalescos da cidade, o União Aliança e o Arrepiados.

Minha mãe diz que eu nasci arrepiado.

O rancho carnavalesco Arrepiados desfilava com as cores Verde e Rosa, cores que seriam adotadas pela escola de samba Estação Primeira de Mangueira.

Nasci mangueirense.

Com meu nascimento, minha mãe imediatamente largou o trabalho (um cargo vitalício em um emprego público) e foi viver para administrar a família. Quando parou de trabalhar, surtou. Três anos depois, ela estava desempregada, com dois filhos (um caçula nasceu um ano depois de mim), vendo sua beleza e juventude indo embora (nos anos 70, não existia esse papo de academia, malhação e muito menos plástica para as mulheres de classe média).

No meu aniversário de quatro anos de idade, minha mãe deu a si própria um presente de aniversário: abandonou a família e foi viver a vida que lhe havia pela frente.

Jack Kerouac e os beatniks faziam isso (ter filhos e abandoná-los para cair na estrada) a torto e a direito. Todo mundo acha bonito. Mulher fazer isso, não.

Meu pai, infantilizado pelo rancor, passou a ouvir samba em casa todos os dias. Sentava numa cadeira de madeira, bebia, praguejava, manipulava a vitrola e cantava em voz alta sambas de Candeia, Elton Medeiros e Geraldo Pereira.

Tirando o básico, o obrigatório na formação do caráter de meninos, que era levar os filhos todos os domingos ao Maracanã, meu pai tampouco queria saber de mim. Passava as horas de folga do botequim para a vitrola – quando arrumava outra mulher para amar e brigar, amar e brigar, ficava em paz.

Paz é isso: arrumar uma mulher para amar e brigar, amar e brigar – aprendi.

Comigo e com meu irmão estava tudo bem. Passávamos os dias jogando bola no campinho de terra da rua Belisário Távora, soltando pipa com a garotada da favela do morro Dona Marta, namorando meninas embaixo da escada do bloco A do prédio Os Três Mosqueteiros, pegando jacaré em dia de semana na praia do Leme, passando por baixo da roleta do ônibus, bebendo mate em garrafa usada de água mineral (uma moral que os vendedores davam pra garotada sem grana na praia e que não pesava no bolso porque a empresa cobrava cada ambulante por copo, e não por litro vendido, veja só), e caçando tatuís para fritar e comer com manteiga e farinha antes do jantar.

Eu era um garoto que sabia soltar pipa, dar passe de trivela numa pelada, desabotoar o sutiã de uma menina curiosa, e pegar jacaré.

Um carioca gema dura. E carioca gema dura não sente falta de mãe. Para entender a alma do Rio de Janeiro, tem que se entender que esta cidade é, desde sua fundação, uma uma feliz e desencanada órfã de mãe.

A minha eventualmente aparecia. Quase sempre no dia 7 de dezembro. Sumia meses, passava uma época em comunidade hippie na Amazônia, outra com uma turma barra pesada do pó da Zona Sul, ou sumia pros lados da baixada fluminense, outra em Nova Iorque, de onde trouxe meu primeiro livro de poemas do Paul Laurence Dunbar  e, em sua mais interessante encarnação, chegou a viver no aterro do Flamengo, com um grupo de mendigos, “observando hipócritas, junto à fogueirinha de papel”. Ela era apaixonada pela canção “Não chores mais”, a adaptação de Gil para “No Woman no Cry”, de Bob Marley.

Em 1991, apareceu de supetão, vestindo uma camisa vermelha do partido comunista e me levou para ver Nelson Mandela na Praça da Apoteose. Enquanto Mandela falava, ela, na arquibancada, chorava, me abraçava e pedia perdão.

Minha mãe chorava muito quando reaparecia para a família. E invariavelmente pedia perdão – essas coisas que não se pede, se conquista. Chorava aos joelhos dos filhos, mesmo nós com 22, 23 anos na cara. Implorava por perdão, bêbada, fraca.

E falava (fala até hoje): “Luiz Fernando, seu filho de uma pu$%ta! Sabia que você é o melhor e mais maravilhoso e o mais terrível presente de aniversário que uma mulher pode ganhar?”

Sim, meu nome é Luiz Fernando.

Apesar destes raciocínios tão fascinantes que minha mãe tinha quando bebia e vivia crises de culpa em nosso aniversário, estes eram os únicos momentos em que meu gigante amor e fascínio por esta mulher arrefecia: quando ela fraquejava.

Minha relação com a cidade também é a mesma.

Quando fraqueja, perde a marra, sente culpa, o Rio de Janeiro é pra mim um lugar tão desinteressante quanto Cleveland.

Neste século, minha mãe, e o Rio e o samba sossegaram um pouco. Ela teve um insight genial: passou a, toda vez que me encontra, dizer aos berros para todos ouvirem:

“A única mulher que pode chamar este homem de filho da p%$ta sou eu! Mais ninguém! Mais ninguém, ouviram?!”

Ouviram?

Da mesma forma, os únicos que podem chamar esta cidade de “uma cidade filha da p%$ta” são os cariocas.

Eu acho minha mãe o máximo, mas ela não é feliz.

E muitas vezes tenho também a mesma relação com esta cidade: acho ela o máximo, mas desconfio de sua felicidade aparente.

Amanhã é dia 7 de dezembro. Aniversário de minha mãe, meu, e do Samba. Tudo bem, o dia oficial do samba foi dia 2/12, mas finalmente tiveram a manha de estender as comemorações e só fazer o Trem do Samba – evento para 30 mil pessoas que mobiliza todas as linhas de trem e o bairro de Oswaldo Cruz – num sábado, não só para não atrapalhar o trabalhador como para incluí-lo de vez neste que talvez seja o evento mais bonito, e o mais filha da p%$ta, desta cidade.

O Trem do Samba é realizado desde 1991 e reúne cantores, músicos e populares em rodas de samba dentro dos vagões de trens que fazem, sem paradas, o trajeto Central do Brasil – Oswaldo Cruz. Houve um tempo em que o Samba era proibido na cidade. Então os primeiro sambistas vinham tocando dentro dos vagões de trem, vindos de Oswaldo Cruz e, chegando à cidade, paravam de tocar e escondiam os instrumentos da polícia.

O evento Trem do Samba trata-se, portanto, de uma viagem de volta, uma viagem pra dentro, uma das vinganças mais bonitas – e cariocas – que a história já produziu contra algo que foi proibido.

Já não vou ao Trem do Samba desde 2004, quando (não sei ainda é assim), dentro de cada vagão, ia uma velha-guarda de uma escola de samba tradicional. Você escolhia se queria fazer o trajeto ouvindo os velhos sambas do Império, da Portela ou Salgueiro…

O trem saía da Central do Brasil assim: lotadíssimo, e polifônico, cada vagão festejando suas melodias.

A exata expressão desta incrível cidade filha da pu%$a.

Quando o trem começava a andar e você sentia a falta da Estação Primeira de Mangueira entre as escolas, ele, o trem, parava repentinamente. Logo no início da viagem. Logo na primeira estação. E, surpresa: se juntava ao comboio a velha guarda da verde e rosa, sendo saudada por todas as escolas, em todos os vagões, ao som de “Mangueira, teu cenário é uma beleza. Chegou, a Mangueira chegou…”

Todo mundo chorava.

E chorar também é uma viagem pra dentro.

Como disse, não sei se ainda é assim. Só sei que amanhã, às 17h, embora eu não veja minha mãe há um bom tempo e faça apenas alguma ideia de onde ela viva, estaremos lá, na Central do Brasil, pois esteja onde ela esteja ela não perde uma edição do Trem do Samba, prontos para comemorarmos e envelhecermos em paz.

Paz é isso: arrumar uma mulher para amar e brigar.

Amanhã, estaremos prontos para mais uma viagem de fora pra dentro.

Nós, os homenageados do dia.

Mandela, eu, minha mãe e o Samba.

Lulu

seg, 02/12/13
por Dodô Azevedo |
categoria Cultura, Música, Rio

Lulu Santos em 1980. Foto Antônio Guerreiro: Divulgação

 

Rio de Janeiro, dezembro de 2013.

 

Passou-se a última semana falando-se neste tal de Lulu, aplicativo para celulares. Só me vinha à cabeça Lulu Santos. E de como o mundo seria melhor se passássemos toda a semana falando deste Lulu e não daquele.

Foi Lulu Santos quem deu nome à minha primeira banda de rock. Em 1984, Léo Gandelman era saxofonista de Lulu e tio de nosso guitarrista, Lula Carvalho, hoje fotógrafo de cinema de filmes como “Cidade de Deus” e a nova versão de “Robocop”. Lulu Santos e banda faziam uma temporada de shows de divulgação do LP Tudo Azul na danceteria Mamute, na Tijuca.

Danceteria era como chamávamos os lugares que nos anos 70 as pessoas chamavam de boate. Nos 90, clube. Na primeira década dos anos 2 000, casa. E que, hoje em dia, não se chama de nada. Onde será o show? Ah, lá no Circo Voador.

Os shows de Lulu na danceteria Mamute começavam cedo. Para a garotada poder ir. Então você via, na plateia de uma mesma boate/casa/clube/sem-nome, garotinhas new wave de 13 anos, surfistas de 19 e hippies maconheiros de 35 cantando coisas como “tudo azul / todo mundo nu”.

Eram tempos modernos.

E aquelas melodias, aquelas letras. A língua portuguesa descomplicou-se quando santo Lulu veio com mensagens tão diretas e descomplicadas, a tal da simplicidade onde mora a filosofia menos vã, o tal do zen-surfismo como uma onda no mar.

O Tao.

É preciso entender muito de música para compreender que o pop perfeito é mais difícil e mais raro de ser encontrado do que erudições harmônicas. É mais difícil compor uma canção de Lulu Santos do que uma boa peça para um quarteto de cordas, um trio de jazz ou uma intervenção dodecafônica – modalidades geralmente associadas a inteligência e superioridade.

Embora “She Loves you yeah yeah yeah” ou as canções redondas da banda escocesa Teenage Fanclub sejam, antes de obras de um músico virtuoso, produtos de um espírito sofisticado.

A alma simples e por isso sofisticada de Lulu Santos me fez aos 14 anos dançar colado cheirando os cabelos de uma mocinha da mesma idade, os dois de olhos fechados, ouvindo verdades que só se amplificam quanto mais vivemos: “Não existiria o som se não houvesse o silêncio. Não existira luz se não fosse a escuridão. A vida é mesmo assim. Dia e noite. Não e sim.”

Um ensinamento zen que de tão simples parece brega. Mas se brega fosse de fato, não seria algo tão difícil de ser verdadeiramente aprendido.

Se falássemos menos do aplicativo de celular e mais de Lulu Santos, estariam resolvidos todos os problemas do Oriente Médio, por exemplo, e venderia-se menos Rivotril aqui na cidade, e se entenderia mais esta vida tão aparentemente complicada, aparentemente insolúvel.

E se isso que escrevo também parece brega para um raciocínio acadêmico ocidental, pior para o raciocínio acadêmico ocidental. Lulu Santos sofreu (e sofre) um preconceito besta (que todo pop perfeito sofreu, ou tudo o que é perfeito sofreu) nada velado, de quem acha que tudo o que é simples é necessariamente superficial e tudo o que é profundo é necessariamente mais inteligente.

Pois aqui vai uma novidade: se Zenão, discíplulo de Parmênides, contou com os Eleatas para desempinar o nariz dos pluralistas e elaborou a primeira teoria dos paradoxos, o fez ao descobrir que os raciocínios mais corajosos do ponto de vista da Matemática e da Filosofia são os radicalmente transparentes: “Tolice é viver a vida assim, sem aventuras. Deixa ser pelo coração. Se é loucura, então melhor não ter razão.”

E tem os solos perfeitos de Lulu. E vocês aí falando em solidão. Num aplicativo de celular que quer aplacar solos.

Show de Lulu Santos em 1984 na danceteria Mamute na Tijuca. O fato de Lulu fazer música para a senhora do Grajaú, para a menina da Urca, para o maconheiro de Niterói, para o hipster da Gávea, para a lavadeira que pega o trem todo o dia pra cozinhar para o hipster da Gávea ainda me diz mais sobre a existência curativa de Lulu Santos:

Neste fim de semana, foi inaugurada a Árvore de Natal da Lagoa. Pela quarta vez, Maria Hermínia da Silva, 58 anos, saiu de Duque de Caxias com oito amigas, uma caixa de cerveja e petiscos num isopor para assistir ao show. Imediatamente vi em meu feed no Instagram e Facebook fotos de moradores da Zona Sul aproveitando-se do incômodo do engarrafamento para coisas do tipo: “Vai começar o inferno.”

Li ontem na revista de domingo d’O Globo a excelente entrevista feita por Mariana Filgueiras com a antropóloga Julia O’Donnel: “Praia democrática é mito”, disse a pesquisadora, antes de emendar: “Se um grupo de meninos negros chega no posto 10 fazendo a festa, no dia seguinte as pessoas irão se mudar para o posto 11″.

Por muitas vezes prefiro a literatura brega de Bret Easton Ellis, “People are afraid to merge”, aos floreios de David Foster Wallace, ou da nova literatura brasileira, tão fã de DFW e, por isso, tão Zona Sul.

Lulu Santos, além de não ter medo de se misturar, tem a receita da mistura – Tim Maia e Jorge Ben também têm, mas são extraterrestres, não contam. E sua poética, dos versos aos solos, desenha generosamente um mapa da mina que muita gente boa já entendeu que é o que há em terapia para tudo.

“Só falta reunir a Zona Norte à Zona Sul.” – ele canta sorrindo desde 1984.

Não tive tempo de ver nenhuma edição do programa The Voice Brasil. Mas dizem que Lulu é a alma do show. Acho que li no Twitter semanas atrás Boninho chamando-o de gênio. Andando por Manhattan há alguns anos, Lulu Santos olhou pro céu, pensou, e cunhou a expressão: “Mãe Atã”. E eu não vi Woody Allen, Lou Reed, ou Paul Auster resumir aquela cidade de modo tão preciso e glorioso em apenas duas palavras. É provável que Boninho tenha razão.

Um dia, quando pararmos de achar que a culpa dos arrastões em Ipanema é da quantidade de ônibus que vêm da comunidade do Alemão ou concluirmos ser estranho a FIFA achar que Lázaro Ramos e Camila Pitanga não são muito a cara do Brasil, talvez mereçamos uma definição, assim, um diagnóstico em duas palavras dos Santos de Lulu.

Em 1984, após uma das apresentações na danceteria Mamute, fomos, eu e minha banda, ao camarim. Moleques felizes e sem vergonha, pedimos para Lulu batizar a banda. Ele pensou, pensou, pensou. Aí sorriu. E anunciou em voz alta:

“JA SEI! OS CHOCANTES!”

Sim. Os Chocantes.

Eu estava fadado ao pobre do Cinema, à pobre da Filosofia e ao pobre do Jornalismo.

E a um dia devolver:

#Chocante é você, Lulu.

Distorções

sex, 22/11/13
por Dodô Azevedo |

Rio de Janeiro, novembro de 2013.

 

Recebo em casa as 244 páginas da belíssima edição ampliada e revisada do livro “Niterói Rock Underground 1990-2010″, do jornalista Pedro de Luna.

Editado de forma independente, projeto gráfico destes raros de ver no mercado editorial brasileiro (lembra as coisas de John Barnett para a Voyageur Press), toneladas de fotos e reproduções de flyers, cartazes e fanzines de um tempo onde o ‘faça você mesmo’ era o natural da vida.

E, por isso, a vida era mais natural.

Ao lado dos livros “Esporro”, de Leonardo Panço, e “Memórias não póstumas de um punk”, de Larry Antha, “Niterói Rock Underground 1990-2010″ materializa um momento cultural muito rico, porque bruto e puro, que a grande mídia na época não cobriu.

Muito pelo contrário: jornalistas diziam que rock bom era o que vinha de fora.

Leonardo Panço, autor do “Esporro”, explica melhor aqui.

 

Produções independentes, estes três livros obrigatórios também corrigem outro cacoete que a grande mídia ainda hoje não perdeu: a de se ater apenas à cena musical da Zona Sul do Rio de Janeiro ao editar histórias sobre novas cenas culturais.

De quebra, ainda reabilita o balneário de São Sebastião como o maior, ou ao menos o mais bem documentado em livros, centro de rock de garagem do Brasil nos anos 90 – coisa que quem frequentou as garagens da Baixada Fluminense, e de Niterói, sempre soube.

Rio de Janeiro, túmulo do Rock? Só para quem não conhece a cidade além dos limites da Zona Sul ou não leu a incrível produção cultural desta gente bronzeada no século XXI.

Aos sábados à noite, os escombros mal iluminados da rua Ceará, na Zona Norte do Rio, ponto de encontro da garotada que até hoje curte rock menos domesticado, de paladar avesso à farofa, ficam mais lotados que o Baixo Gávea, na Zona Sul do Rio.

Ah, estes conceitos: iluminação, paladar, farofa, balneário, ‘faça você mesmo’.

Imagens:
1 – Capa do livro ‘Niterói Rock Underground 1990-2010′/Dodô Azevedo
2 e 3 – Fotos do livro ‘Esporro’/Divulgação

A biografia não autorizada de 2013 – uma retrospectiva precoce

seg, 18/11/13
por Dodô Azevedo |

2013 - o ano em que as ruas do Brasil viraram um microondas - Foto por Dodô Azevedo

 

Ontem, em casa, ao invés de digitar 2-0-0 no microondas para esquentar a comida por 2 minutos, digitei os seis dígitos de minha senha do banco. Voltei para o escritório, comecei a folhear uns livros, rascunhar umas anotações e, quando senti o cheiro de queimado vindo da cozinha, já acontecia um pequeno incêndio. Ana e eu o apagamos com um balde d’água. O cheiro de queimado permanece até agora.

Distração. Cansaço. Aquilo tudo que bate em todo cidadão quando finalmente um ano acaba.

2013 já acabou? É só observar as notícias. É só observar as ruas. O bate-papo informal nas esquinas já é retrospectivo.

Então vamos a ela: a primeira retrospectiva 2013.

2013 foi como o Campeonato Brasileiro: terminou com quatro rodadas de antecipação.

E deixará um inesquecível cheiro de queimado.

O ano em que o Brasil pareceu que iria arder em chamas. “Vem pra rua!” foi a frase de 2013.

E o personagem de 2013 foi ela, a rua.

Este blog foi o primeiro, lá nas primeiras manifestações, pré-Black Blocs, olhar com minúcia e dar voz a cada um dos cartazes erguidos mais por orgulho em se ativar politicamente do que por quaisquer outros motivos – e não foram poucos.

Este blog foi, também, o primeiro a encontrar um rosto muito jovem, partidário, lúcido e sem máscara a falar claramente sobre aquele momento em que todos estavam desorientados.

E quando o mundo inteiro se perguntou “o que aconteceu com aquele país onde o povo é feliz e só queria saber de carnaval?” e aqui no Brasil se perguntavam “quem está começando os tumultos? Polícia ou traficante? Este blog foi para dentro da primeira grande manifestação, antes de tudo, antes até do vinagre, aquela, na Rio Branco ainda, e procurou esclarecer tudo. O texto, publicado aqui no G1, foi traduzido para o inglês e rapidamente compartilhado por organizações de direitos humanos em todo o planeta. 

E antes mesmo de manifestantes menos lúcidos e mais mascarados atearem fogo no Palácio do Itamaraty, lá em Brasília, em junho, este blog foi o primeiro a dizer que não se tratava do fim do mundo, e sim as violentas contrações da transição de uma democracia de um estágio para o outro. Um pequeno incêndio vindo da cozinha.

Para um país que desde os tempos do Império nos dá motivo para incendiar tudo em todas as cidades, até que estávamos no lucro.

A cada vez maior classe média carioca, que vivia uma lua de mel com sua polícia, seu Bope, seus Capitães Nascimento, sua Copa e Olimpíada, pediu divórcio quando viu, principalmente pela internet e mídias alternativas, o tipo de tratamento que o estado dá, desde os tempos da ditatura militar, ao cidadão divergente.

Quem aplaudiu os militares que entravam na comunidade do Alemão em 2012 agora entendia a gravidade de se ter uma polícia militarizada. Quem aplaudiu as tentativas da prefeitura em imitar o tolerância zero novaiorquino, as praias com as barracas padronizadas, todas da mesma cor, agora reclamava da tolerância zero de nosso prefeito com os cidadãos que ocuparam a Câmara Municipal.

A  tal da cada vez maior classe média carioca, constituída mais por gente pobre que ascendeu do que ricos que descenderam. Se depender dela, dos que estão a cada dia ascendendo a ela, dos miseráveis que por décadas viveram abaixo da linha da pobreza e saíram dela na última década e do cidadão que mora numa cidade de interior que só agora está contando com médicos, não só Dilma já está reeleita, como Lula se quiser se elege por mais 8 anos depois que o mandato da presidente terminar. Mesmo no Rio, onde Cabral parece ser unanimidade negativa, o governador fará também sucessor sem muitos sustos.

É porque se você paga o dobro do aluguel para morar em Copacabana e acha isso um absurdo, o barraco da dona Iracy no Pavão-Pavãozinho duplicou seu valor nos últimos anos, e isso é ótimo para ela. Se os bancos têm lucrado cada vez mais, as empregadas domésticas ganharam uma justíssima PEC. A transferência de renda no país finalmente começou a acontecer, a oferta por emprego aumentou. Há um provérbio muito carioca e muito sábio que dá conta desta certeza: Zona Sul não ganha eleição.

E não é vestindo preto e escrevendo cartazes “onde está Amarildo?”, ignorando todos os outros Amarildos que o precederam e que não se iluda, estão acontecendo neste momento, que se presta solidariedade à favela. É ficando feliz por dona Iracy. Entendendo que seu incômodo é, de certa forma, para que ela tenha melhora na vida. É aquela história: tem espaço pra todo mundo, é só cada um se dispor a dar um passinho pro lado.

É sobre esta convivência e as tensões que dela derivam o filme do ano de 2013. Na verdade, o mesmo de 2012. “O som ao redor”, de Kleber Mendonça Filho, foi escolhido este ano o filme para representar o país no Oscar. São muitas as qualidades que mantém este filme de baixo orçamento vivo desde 2011. Algumas contextuais: filme recifense, representante de um saudável deslocamento de atenção, sempre focado no eixo Rio-Sp e uma espécie de padrinho da safra recorde de filmes produzidos em 2013, “O som ao redor” se passa inteiro justamente… em uma rua.

Também não será o recente encarceramento dos condenados no processo chamado “mensalão” que irá harmonizar tensões entre classes ou colocar o Brasil nos trilhos na luta contra a corrupção, como disse a imprensa estrangeira. A Justiça da Suíça condenou agora no final do ano o um dos envolvidos no escândalo dos trens de São Paulo, sem colaboração da Justiça ou polícia brasileira ou cobertura da imprensa. O Ministério Público está louco para varrer para baixo do tapete o caso Cavendish, dos guardanapos na cabeça em Paris, e tantas outras indecências cariocas. E Renan Calheiros, principal alvo dos cartazes nas ruas em junho, vai terminar o ano tranquilo e satisfeito em seu mandato. Ainda há muito o que fazer nas ruas antes da próxima ida às urnas.

Na verdade, educar-se, ativar-se politicamente e ir pra rua rua é algo que tem que tornar-se rotina. É a única coisa que de fato faz a diferença.

Ah, o encarceramento dos chamados mensaleiros – essa notícia que também confirmou o fim do expediente de 2013. Nas ruas do Rio, imediatamente viu-se uma ou outra manifestação da militância do PT, que escandalosamente ficou fora das ruas em 2013. Desmobilizada, sequer conseguiu ocupar este ambiente onde ela se sentia tão à vontade, nem que fosse para defender o governador e prefeito do Rio, a quem o partido apoia. Nas esquinas da cidade, já se fala que a melhor coisa que pode acontecer ao Partido dos Trabalhadores foi a prisão de Dirceu e Genoino. Um motivo para que renasça a militância petista, que em 1982 era capaz de pintar uma estrela vermelha em cada um dos paralelepípedos de todas as ruas do bairro de Santa Teresa.

Somando-se isto à criminalização das manifestações, promovida por todos (governo, oposição, imprensa) temos hoje as ruas vazias de desmobilizadas. Sim o ano acabou. Fato que deve-se também à transformação da tática black bloc em movimento black bloc – fenômeno exclusivamente brasileiro que só pelo fato em organizarem-se pelo Facebook já contraria os princípios comuns aos adeptos da tática Black Bloc pelo mundo: não existe nas redes sociais uma página “Black Bloc Argentina”,  “Black Bloc Espanha”, “Black Bloc New York” etc. De novo: Black Bloc, o movimento, só existe no Brasil. A tática Black Bloc é diferente: não só existe no mundo inteiro como simpatia de todos que estão nas ruas se manifestando. No Brasil, transformado em movimento, virou apenas apenas um vilão utilíssimo a quem não interessa manifestações. Tornou-se, sem querer, o melhor amigo do sistema que pretende combater.

A resposta às preces do governador Sérgio Cabral, por exemplo.

Em 2013 está todo mundo mais nu, como os índios que receberam Cabral, o Pedro Álvares, em 1500. Todo mundo nu, com seus defeitos expostos, e isto tem de ser comemorado. Ficou nu o poder público, as instituições, a imprensa, o Eike Batista, Chico Buarque, o Rei Roberto e, principalmente, nós. Quem é reacionário saiu do armário, quem é de esquerda perdeu a vergonha de se assumir. Foi o ano de um grande Breaking Bad no país.

Se 2013 foi o ano do hype desta série americana de TV que conta a história da corrupção moral e existencial de um personagem que é capaz de tudo por poder, também foi o ano em que o banho de sangue famoso e esperado episódio “O casamento vermelho”, de “Game of Thrones” – uma aula-prática do que nós humanos somos capazes de fazer para eliminar a concorrência.

Na TV Brasileira, “The Voice Brasil” restaurou a paixão do brasileiro pelo show de calouros. Houve boteco pé-sujo, cabra-macho, aumentando o volume da tevê e fazendo silêncio pra comentar o programa. Se por um lado somos humanos sórdidos, ainda nos comovemos com o brasileiro que sonha.

E se este ano ainda nem conseguiu começar para promessas como Marcelo Adnet, 2013 foi um ano eterno para a turma do Porta dos Fundos. ’Fenômeno Pop’, diagnosticou-se quando explodiram, este ano. Apareceu para acabar com a tese de algo só se torna popular se for veiculado na TV. O povão comprou os esquetes do grupo, muitos deles mais sofisticados do que o humor que se vê na TV fechada e aberta. Políticos e críticos, o grupo provou que dá pra fazer humor politicamente incorreto sem incorrer a covardias preconceituosas e sexistas, de uma turma de humor, que em 2013 só repercutiu em polêmicas de Twitter e que tem uma mania infantil de se fazer de vítima. Por isso, nas rodas de chope, só deu Porta dos Fundos.

2013 também foi o ano do maior fenômeno da história da indústria de entretenimento. Não foi um filme de herói, nem o bonito irresistível pastiche-homenagem do Daft Punk. Foi um videogame. Grand Theft Auto bateu todos os recordes de venda prometendo fazer o consumidor sentir-se na pele de um ladrão, traficante, que coloca foco em mendigo e esfaqueia prostitutas, que sequestra aviões e submarinos, que ganha pontos quanto mais delitos promover. Praticamente ser um Justin Bieber nas ruas do Rio de Janeiro. O jogo se passa nas ruas de Los Angeles, mas quem viveu o dia a dia das ruas cariocas em 2013 achou o “GTA V” coisa de criança.

No teatro, a peça do ano não poderia ter outro nome: “Incêndios”. Em literatura, Brasil, homenageado em Frankfurt, foi o país certo, no lugar certo na hora errada. Luiz Ruffato descascou a pátria amada no discurso de abertura e quando achou-se que a turma na rua iria ficar sem o apoio da classe artística, um grupo de escritores cariocas se mobilizou e publicou um curto e sóbrio manifesto às pessoas que continuavam indo às ruas.

Antes das manifestações começarem no Rio, este blog, de Londres, comentou a dinâmica das manifestações que aconteceram em Paris em maio: 500 mil pessoas nas ruas contra o casamento gay e os imigrantes num fim de semana, outras 500 mil a favor do casamento gay e dos imigrantes no fim de semana seguinte. Um exemplo a ser seguido. Que depende, no Brasil, do fim da ideia de que tudo tem que ser provido pelo estado ou pelas instituições. Ir na direção do que apontou este blog em agosto, quando contou a história da rapaziada do coletivo Norte Comum, que não espera nada acontecer – faz.

2013, o ano da rua, foi como no futebol: ainda há o suspense sobre quem vai para a Libertadores, quem vai cair para a segunda divisão e quem será campeão da Copa do Brasil. No Rio, a situação política é parecida com a dos times cariocas. Não se sabe quem exatamente vai concorrer ao governo do estado, num imbróglio também muito carioca, muito cheio de “vai indo na frente que eu já vou”.

2013, o ano da rua acabou: temos um Senado e uma Câmara livre dos votos secretos temos a provável oficialização do assassinato de dois ex-presidentes (Jango e Juscelino) e isso ser o objeto das conversas de bar, das rodas nas praias, misturando-se às levezas que costumam monopolizar as atenções nesta época, como “qual a moda deste verão?, “e o botequim do ano?”, “e o melhor show?” é interessantíssimo.

Embora cheiro de queimado nunca vai nos deixar esquecer:

Foi quase.

Quase que 2013 foi o que pode ser 2014.

O último espanto

seg, 11/11/13
por Dodô Azevedo |

Rio de Janeiro, novembro de 2013.

 

 

O hoje nos espanta?

Já vimos e ouvimos de tudo nesta vida. Se amanhã um disco voador aparecer nos céus da cidade, não ficaremos tão espantados quanto esperávamos. Já vimos discos voadores o suficiente no cinema.

Violência braba já não nos comove também. A expressão “crime bárbaro” já não quer dizer muita coisa nas manchetes.

Adjetivos precisam ser gritados se quiserem causar impacto. O disco do Caetano não pode se chamar “Abraço”, tem que se chamar “Abraçaço”.

Hoje qualquer coisa é maravilhosa, incrível, genial.

Qualquer coisa é terrível, horrorosa.

Hoje, sinistro e bizarro são gírias.

Quando muito se tem, perde-se o gosto do objeto. Acostuma-se.

Sonha-se em comprar um apartamento de frente para o mar e dois anos depois enjoa-se da vista.

Todos os dias, aquela vista toda ali, disponível, sem que seja preciso fazer esforço, de graça.

Marilyn Monroe, aos 30 anos, podia ter todo o homem e mulher que quisesse. Casou com o Arthur Miller, intelectual 11 anos mais velho, 11 vezes mais feio que James Dean.

E se daqui a 11 anos alguém inventar o carro que voa, não ficaremos espantados. Faremos é fila nas concessionárias.

Quando inventarem o carro que voa, de tão acostumados com a ideia, afinal crescemos vendo os Jetsons, chamaremos o invento apenas de “carro”. O último “carro que voa”, o último espanto, foi inventado no final do século XIX. Era um negócio chamado toca-discos.

Um disco continha algo gravado. Um discurso, uma canção, uma ópera.

Mas algo gravado antes em algum lugar que não era ali, a sala de estar onde agora escutava-se o conteúdo.

Até então, ou nos 200 mil anos anteriores, quando se queria ouvir uma ópera, tinha-se que ir até o teatro, sentar-se a alguns metros dos músicos, tirar a cera dos ouvidos.

Com a invenção do disco, uma orquestra inteira tocava ali, na sala de estar. Na hora que bem se entendesse. Quantas vezes se quisesse.

Esse foi o último espanto, o último e verdadeiro susto que tomamos.

No último domingo aconteceu a VII feira de Discos de Vinil do Rio de Janeiro. Vendedores do Rio e de São Paulo reunidos, quase 30 mil álbuns à venda.

Muita gente de 17, 20 anos comprando suas primeiras bolachas.

Duas mil pessoas passaram pelas dependências do Instituto Bennett, no Flamengo, onde aconteceu o evento, duas vezes maior do que o do ano passado.

Ao contrário do que se costuma dizer, estas 2.000 pessoas não estavam lá por nostalgia ou por conta da qualidade de som do vinil.

Embora, quando se ouve um disco, ouve-se com atenção genuína, porque é algo que nos deu trabalho ter, que é algo que nós dá trabalho manter, que precisamos levantar-nos para trocar o lado B para o Lado A etc. E conseguir atenção genuína de alguém, hoje, é ouro.

Ao contrário do que se costuma dizer, estas 2.000 pessoas não estavam lá por causa da história da arte e do design do século XX exibidas nas voluptuosas capas de discos, enormes num mundo onde quanto menor e mais portátil o objeto, mais valor e utilidade ele tem.

Embora os álbuns sejam uma óbvia, porém, ainda útil metáfora da vida, dividida em lado A e lado B. Metáfora ainda mais útil se pensar que a vida é nem um lado nem outro, não é a parte que se pode tocar com a agulha do toca-discos, e sim o fino recheio espremido entre um um lado e outro. Coloque um disco de lado, observe a fina espessura dele. Estará contemplando a vida.

Mas não, estas 2.000 pessoas não estavam atrás de nada disso.

Estavam atrás de algo ainda mais maravilhoso, incrível, genial, terrível, horroroso, sinistro e bizarro.

Estavam todos é atrás do espanto perdido.

Foto: Dodô Azevedo

O maior engarrafamento de todos os tempos

seg, 04/11/13
por Dodô Azevedo |
categoria Rio
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Rio de Janeiro, novembro de 2013.

 

Não foi por falta de aviso:  “O maior engarrafamento de todos os tempos”,  anunciou o presidente do Departamento de Transportes Rodoviário. Todos tiveram tempo para se preparar. Quem pôde, evitou ir ao centro da cidade na primeira segunda-feira de novembro de 2013. A maioria, porém, teve que encarar.

Na primeira segunda-feira, ficou feia a coisa. Travou tudo. Mas ainda não “o maior engarrafamento de todos os tempos”.

“Muita gente com medo de sair de carro.” – “Aguarde a primeira sexta-feira sem Perimetral” – “Aguarde a chuva.”

Então, um dia, aconteceu.

Certa manhã, parecida com a de hoje, tudo parou mesmo. A princípio, o tamanho do engarrafamento na região da Zona Portuária era recorde, algo de um tamanho que nunca se viu, mas havia uma outra coisa diferente neste. Não era o tamanho. Não era a densidade. Eram as pessoas. Havia alguma coisa diferente no comportamento das pessoas engarrafadas desta vez.

Estavam todas quietas, conformadas. Não se ouviu uma buzina, não se avistou nenhum protesto. Ficaram todos assim, como quem espera na cadeira de dentista a anestesia fazer efeito para começar o tratamento de canal. Um silêncio calmo e, por isso, assustador.

Uns se distraíram em seus carros com ar condicionado. Outros, ouvindo música no fone de ouvido em pé no ônibus lotado. Algumas pessoas do século passado faziam palavras cruzadas com papel e caneta. Outras trocavam uma ideia por mensagem de texto no celular.

Tudo parado. Por horas. Muitas horas. Geralmente fica-se três horas parado no trânsito, mas dessa vez foi mais: quando perceberam, estavam parados havia seis horas. Todos. Carros novos ou usados, econômicos e chineses, ônibus, vans. Muitas horas. Oito, dez. Quando perceberam, havia anoitecido. Tudo parado.

Durante o dia, a turma de ambulantes que no início da manhã vendia água, mate e guaraná para os motoristas, ao perceber que o engarrafamento iria varar o dia, rapidamente começou a oferecer o serviço de beliscos, ovinho branco com amendoim dentro, batata frita de saquinho. Quando perceberam que as pessoas iriam passar a noite no maior engarrafamento de todos os tempos, já estavam organizados a ponto de oferecerem, de janela em janela, quentinhas.

Sim, de janela em janela, porque quando anoiteceu havia gente apenas dentro dos carros. Os trabalhadores que estavam em ônibus e vans saltaram e caminharam livres para suas casas. Teve gente que curtiu atravessar a ponte Rio-Niterói a pé, e ver o pôr-do-sol atrás do Corcovado.

Mas quem tinha carro ficou no maior engarrafamento de todos os tempos. Cuidar do próprio patrimônio, essa era a ideia. E quando os proprietários de carro perceberam que passariam a noite ali, começaram a ligar para suas famílias pedindo suporte: carregador de celular, gasolina, comida, cigarro, um cobertor para o frio.

A PM destinou 2 mil policiais para passarem a madrugada vigiando o maior engarrafamento do mundo, a essa altura alvo de assaltantes. O policiamento durou até o 13º dia de engarrafamento, quando foi substituído pela guarda nacional.

No 29º dia do maior engarrafamento do mundo, médicos em ambulâncias já haviam atendido 3 mil motoristas dos 70 mil que se recusavam a sair do seus veículos. Uns desidratados, outros desenvolveram síndrome do pânico, outros com dores lombares. Enfim, rotina.

No 3º mês de engarrafamento, o governo estadual autorizou que todos os dias dois integrantes da família de cada motorista fizessem uma visita de no máximo duas horas. Sempre das 15h às 17h. A logística não era fácil: 70 mil motoristas recebendo 140 mil visitas todos os dias. Por dia 210 mil pessoas – fora os comerciantes, assistentes sociais, antropólogos, repórteres e curiosos que essa altura vinham do mundo todo.

No Natal, o governo liberou para 4 pessoas da família a visita aos motoristas do maior engarrafamento do mundo. No réveillon, o governo organizou uma queima de fogos na região portuária, em solidariedade. A um repórter, um dos motoristas disse que o que ele estava sentindo mais falta nos últimos meses de engarrafamento era banho.

No 5º mês, os motoristas presos no maior engarrafamento do mundo já haviam se organizado em turnos para fazer suas necessidades em banheiros químicos instalados na região pela prefeitura. Também no 5º mês foi eleito entre os motoristas um administrador, uma espécie de subprefeito, que coordenava tudo. Foi ele quem conseguiu um patrocínio de um fabricante de TVs portáteis e a instalação de pontos de TV a cabo, assim como outros serviços, como disque delivery.

No 6º mês, houve o primeiro casamento de motoristas, um moço de Vila Isabel e uma moça de Botafogo, que se conheceram durante o maior engarrafamento de todos os tempos. A cerimônia foi celebrada em cima de um caminhão frigorífico e televisionada ao vivo de helicóptero e seguida de festa com DJ num dos acostamentos onde havia espaço para 500 pessoas dançarem.

Mas a festa foi um fracasso. Nenhum motorista compareceu. Tinham que proteger seu patrimônio. Ainda que no 7º mês muitos homens compareceram ao desfile e eleição da musa do engarrafamento, empossada perto de um carnaval.

No 8º mês do maior engarrafamento de todos os tempos, ocorreu um assassinato no que agora se podia chamar de comunidade. Um motorista de um Palio foi achado morto a facadas. A PM levou três suspeitos, motoristas vizinhos. Nunca mais nenhum deles foi visto.

No aniversário de um ano do maior engarrafamento do mundo, uma editora carioca lançou um livro, escrito por um dos agora 63 mil motoristas que estavam há 12 meses presos no maior estacionamento de todos os tempos. “Ponto Morto – histórias reais de um Rio de Janeiro engarrafado”, vendeu 70 mil cópias até ser proibido por advogados de outros motoristas da comunidade, citados no livro.

“Censura!”, bradou a opinião pública. E de fato o livro trazia histórias picantes sobre como, por exemplo, funcionava o puteiro clandestino dentro dos ônibus abandonados um ano antes e até do tráfico de drogas na região – feito por motoboys que entravam e saíam da comunidade com facilidade.

“Ponto Morto – histórias reais de um Rio de Janeiro engarrafado” também foi acusado de ser um plágio de um conto do escritor argentino Julio Cortázar, chamado “A autopista do sul”, que conta a história de um engarrafamento que dura meses entre Marselha e Paris. O autor, um professor de filosofia morador de Laranjeiras, se defendeu dizendo que se tratava de uma homenagem.

No mês seguinte nasceu o primeiro bebê dentro da comunidade. O parto se deu numa ambulância. Pai e mãe, motoristas nativos, passavam bem e não viam a hora de voltar para os seus carros, criar a criança com amor e carinho dentro da comunidade.

Quando os técnicos da prefeitura chegaram à conclusão de que o engarrafamento teria duração indefinida, resolveram dar um nome à comunidade, que se estendia por toda a Zona Portuária da cidade.

“Road Garden” foi eleito em voto popular. Todos os motoristas receberam escrituras de seus carros. Agora, oficialmente, moravam ali.

Quando as montadoras de automóvel disseram que o patrimônio que os motoristas estavam defendendo durante aqueles anos todos, ou seja, seus carros, havia se deteriorado por mais de ano sem uso e manutenção, a imprensa disse que então não havia mais motivo para os motoristas permanecerem ali, naquelas condições.

Todos os motoristas, ou moradores de Road Garden, entenderam isso. Mas mandaram avisar: agora esse é o nosso lugar, criamos raízes afetivas e culturais na comunidade, não vamos sair.

Road Garden virou um dos maiores, e por consequência mais rentáveis, pontos turísticos do mundo. Mais badalado que a Copa e as Olimpíadas. A prefeitura cobrava ingresso pela visita, os moradores/motoristas, por entrevista.

No seu 18º ano consecutivo e uma vida estável, o maior engarrafamento de todos os tempos havia trazido tanta receita para a cidade que a prefeitura resolveu demolir tudo e construir um novo corredor de ligação na Zona Portuária do Rio de Janeiro. Os motoristas de Road Garden, e seus carros e novas famílias, foram sumariamente removidos da área e as obras começaram. No 20º ano estava pronto um elevado que cobria toda a região.

Um dias antes da inauguração, o secretário de obras se dirigiu ao prefeito:

“Se batizarmos o novo elevado de ‘Nova Perimetral’,  vão entender como uma homenagem?”

(Crédito da foto: Erbs Jr/Estadão Conteúdo) 

 



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