Carnaval em casa

qua, 26/02/14
por Dodô Azevedo |
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São muitos os sentidos da palavra liberdade. Para os ucranianos que passaram o último mês ocupando a praça em Kiev, liberdade é uma coisa. Para os presidiários do Maranhão, outra. Para quem nunca teve grana pra comprar uma TV de LED, comprar uma TV de LED.

Ser livre pode ser, então, questão de poder agir – liberdade física. Ou de poder pensar – liberdade intelectual.

Porém, liberdade de querer é, de longe, a mais difícil de conservar. Afinal somos livres para querer o que queremos?

Chama-se a liberdade do querer liberdade metafísica. Ou liberdade sobrenatural, ensinam Platão, Russeau e Kant.

Para os cariocas, liberdade é querer passar o carnaval em casa.

Repare: faz uns quatro anos que o carioca deixou o carnaval de rua, revitalizado no início do século 21 e já três vezes o tamanho do carnaval da Bahia, para os turistas.

Carioca que é carioca curte o carnaval  nos cada vez mais antecipados fins de semana que o antecedem.

Durante os feriados do carnaval propriamente dito, o  carioca, já cansado da folia do pré-carnaval (já desfilou o Pérola da Guanabara em Paquetá, o Gigantes da Lira em Laranjeiras, o Timoneiros da Viola em Oswaldo Cruz, o Monobloco só na semana que vem) quer é distância.

E a distância mais barata entre o carioca e o vamos chamar de carnaval oficial – seu trânsito imprevisível, suas ruas fedendo a mijo sob um sol pusilânime e os brasileiros meio riquinhos com pele cor de palmito que a cada ano invadem em maior número a cidade – é a sua casa.

Quem nunca experimentou passar o carnaval em casa não sabe nada de metafísica.

Afinal, a gente vive reclamando que não tem tempo de visitar a casa dos amigos. Ou de curtir a própria casa.

Na verdade, o carioca trabalha tanto que o conceito de casa já é algo muito, digamos, intelectivo neste momento.

Pois o carnaval – que a cada ano expulsa mais cariocas das ruas – está aí pra isso.

Pra ficar em casa.

Mas ficar em casa fazendo o quê? Ah, a liberdade física.

Pra começar, esquece o preconceito dos outros. Olha-se para quem passa o carnaval em casa como quem sofre de dengue.

Liga não, é dengo de quem queria te ver na rua ali agregando valor ao camarote.

Segundo passo: deixar dietas para lá. Aliás, quanta gente faz dieta, malha e acorda cedo em dias de carnaval, já repararam? Meu avô me ensinou que exatamente o contrário que se faz em feriados.

Deixar as dietas: é carnaval dentro de você também. Brigadeiro de colher, Cheetos, Baconzitos, ovinhos de amendoim, essa nova Pringle’s sabor asa de frango frito e apimentado, pacotes de Bis, mortadela com limão servida no prato com palitos de madeira.

Esquece copo – menos coisa pra lavar. Tudo em lata. O refri, o suco, a vodca, a cerva. Arroto está liberado. Afinal, só amigo muito íntimo tem a manha de frequentar sua casa no carnaval.

TV. Prato cheio. Mesmo raciocínio de deixar a dieta e o preconceito para lá: veja TV aberta, que vai desde a manhã, acompanhando o carnaval de rua ao vivo do nordeste, passando pela cobertura de bailes decadentes e camarotes na Sapucaí cheio de celebridades pagando mico com camisa de cervejaria.

Rir de coisas ridículas – o feriado que seu espírito precisa.

Rebata com algum filme em preto em branco. Lubitsch ou alguma chanchada funcionam como um Engov para a alma. Tudo o que precisa num sábado de carnaval para recuperar o fôlego é assistir a, por exemplo, “Carnaval em Marte”, de 1995, com Ansemo Duarte.

Domingo é dia da cerimônia do Oscar. Já viu todos os indicados a melhor filme no cinema, reclamando feliz do frio do ar-condicionado? Tem até domingo para fazê-lo.

Se estamos falando aqui de um casal, convém alertar para um preconceito ainda mais feroz. Ah, Fulano não veio ao bloco este ano porque tá casado.

Já repararam nos casais em blocos? Bebendo para esquecer a tensão de encontrar com o ex, ou do outro encontrar com o ex. Se se perdem por 15 minutos, pronto: DR no meio da rua.

Já repararam nos solteiros em blocos? Todos solitários, no fundo sorrindo pra não chorar. No carnaval o folião baixa suas expectativas românticas como se no século 21 o romance já não sofresse tanto preconceito quanto… ficar em casa no carnaval.

O máximo que vão conseguir é um beijo ou um amasso descompromissado de cinco minutos, na melhor das hipóteses. No fundo, ninguém quer nada fundo contigo, pierrô, nem contigo, colombina. Bora beber pra esquecer.

Repare, metade das marchinhas são sobre tristezas, perdas, saudades e desencontros. Não só as marchinhas. No carnaval, metade do povo sai por aí acusando que você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão.

Enquanto nas ruas bebe-se para esquecer que se está sozinho, em casa bebe-se para celebrar a bela companhia que pode no caso ser até você mesmo.

E não se preocupe em perder nada do que se passa nas ruas. Você vai acompanhar o carnaval de todo mundo, e em tempo real, não se preocupe. Instagram, Whatsapp, o Tumblr onçinha cadê você, i hate flash, tá todo mundo aí pronto para expor, em todos os sentidos, suas fantasias.

A Zona Sul do Rio de Janeiro cabe todo em seu smartphone – sem o cheiro de mijo. “Não é que o mundo seja pequeno, a renda é que é má distribuída”. Se amigos foliões insistirem na sua presença, diz que você foi ao bloco fantasiado de múmia, e que quis passar incógnito, e que achou um barato. Minta. É carnaval.

Agora, se chover, caro leitor… Se por acaso o tempo fechar, ficar cinza, a temperatura cair a 18 graus e chover, ah, se isso acontecer, você para tudo o que estiver fazendo, coloca tua melhor fantasia e vai pra rua e canta todo Hino da Bandeira, emenda com o refrão de “Chuva, suor e cerveja”, passe a mão na bunda do guarda e dê cambalhotas no meio fio.

Se chover, será uma demonstração definitiva liberdade sobrenatural dos céus.

E se os céus resolverem também ir pra rua, aí sim: quem é você pra ser do contra?

PS: Saio de casa para pedir benção ao Cacique de Ramos na madrugada da Av. Rio Branco, que este ano será palco de tanta coisa política. No domingo, à partir das 21h, estarei em casa, bem acompanhado, comentando a cerimônia dos Oscars aqui neste blog. Agora que somos íntimos, está convidado.

Foto: Fernando Maia/Riotur

Estações

ter, 18/02/14
por Dodô Azevedo |

Fachada de rua do Cinema do Grupo estação - Foto por Dodô Azevedo

Sendo direto: No próximo dia 3 de abril, o Rio de Janeiro saberá se o Grupo Estação, responsável pela formação cinéfila do carioca nos últimos 30 anos, irá pedir falência definitiva.

O carioca está acostumado a perder ou ver transformadas suas coisas mais cariocas. O Palácio Monroe, o Morro do Pasmado, o Jornal Última Hora, o Tivoli Park, O Circo Voador no Arpoador, a Feira de São Cristóvão, o antigo Maracanã.

Morreram de vez ou reiventaram-se.

Em comum, um espírito imortal.

Que uma grife de cinemas, sozinha, entre para este grupo, é inédito. E diz muito sobre ela.

Quem, nas redes sociais, nos botecos e nos blocos de pré-carnaval está consternado, não é tanto o profissional de cinema, não é tanto quem trabalho no ramo ou é do meio.

Quem mais sentirá falta do Grupo Estação é tudo quanto é carioca. Aquele cujo apetite para a sala escura não se sacia com essas aventuras milionárias hollywoodianas, ou comédias brasileiras televisivas, esses filmes grandes.

Aquele que lambe o beiços é com grandes filmes.

Nas redes sociais, quem lambe os beiços com grandes filmes já se mobiliza para evitar o fim do Grupo Estação. No Facebook já existe página de apoio. No perfil de Marcelo Mendes, à frente do grupo, são muitas as manifestações de solidariedade.

Marcelo respondeu com uma proposta, algo que se pode fazer já: que cada pessoa que tem alguma história com o Grupo Estação, lembre-se, escreva, publique.

As minhãs são muitas. Fui criado nos cinemas do Grupo Estação. Minha vida daria um filme passado dentro de um dos cinemas do Estação. Eu aos 16 anos afogado nos números de Peter Greenaway, aos 18 conhecendo o cinema de preto de Spike Lee, aos 20 encontrando minhas almas gêmeas, os personagens de Jim Jarmush, tão estranhos no paraíso quanto nós que nos vestíamos de preto na cidade do sol para dançar no Cubatão, conhecendo Cassavetes e entendendo que aquilo já não é mais cinema, latindo feito um cão para um tal jovem chamado Tarantino, gritando “Lulaaaa!”, com o coração selvagem de Nicholas Cage e David Lynch, descobrindo o silêncio restaurado de Antonioni e, enfim, já no século 21, assistindo ao renascimento definitivo do cinema brasileiro.

Posso dizer, convicto: sou os filmes que vi na vida.

Em seu filme recente, “O primeiro dia de um ano qualquer”, Domingos Oliveira, há uma cena, dentre tantas, particularmente bonita. O personagem de Domingos dorme durante um filme antigo numa pequena sala de cinema. E é esquecido lá. Ao acordar, comenta algo como se existe um lugar digno para um último repouso, é o cinema.

Não quero viver numa cidade onde uma loja da Apple abre com cariocas cantando “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor” e no mês seguinte cinemas fecham.

Mas morrer, bem velhinho, dentro de uma sala de cinema do Grupo Estação, assistindo a qualquer filme que esteja passando por lá, seria morrer satisfeito.

Morrer de ver, ou reinventar-se; afogar-se em números ou permanecer perto do coração selvagem; o que temos hoje, de certo, como consumado, é que a história do Grupo Estação é filme grande e um grande filme.

Fim?

Morto no centro do Brasil

ter, 11/02/14
por Dodô Azevedo |

A tática Black Bloc, que aqui no Brasil, e só no Brasil, virou grupo, movimento, com página no Face (característica também não encontrada em nenhum outro lugar do mundo), é o Riocentro, o atentado sabotador, da rapaziada, dos milhões, que em junho foram às ruas.

O Riocentro falhou. O grupo brasileiro, e só brasileiro, que autodenominou-se Black Bloc (sim, a página no Face veio antes do batismo da imprensa), não.

Haverá Copa e não haverá mais manifestações com milhões na rua nesse 2014.

O ano político, o cotidiano nas ruas neste 2014, será pontuado apenas pela ação, a partir de agora definitivamente isolada, destes grupos bem pequenos.

O que aconteceu em junho foi bonito, muito bonito, um passo à frente em nossa democracia.

Gente, afinal, indo para a rua, cobrar.

Povo que cobra, foi no que nos tornamos em 2013.

Muito bonito. Mesmo.

Mas acabou.

O atentado do Riocentro desta vez deu certo.

Em sua página no Facebook, o grupo – ratificando, grupo sim – ostenta a famosa foto da “passeata do milhão”, que lotou a Av. Presidente Vargas, no Rio, no dia 20 de junho.

Como tivessem tido alguma responsabilidade em haver reunido tanta gente ali.

Não. Não foi o grupo Black Bloc que mobilizou o povo.

Digo isso porque eu estava lá. E postei tudo para ser visto aqui.

Nem fui eu, ou o Freixo, ou a Sininho, ou o Fora do Eixo, ou a imprensa, ou qualquer partido o responsável por tanta gente na rua.

Daí a beleza daquele dia.

A turma de preto, assim como tantas outras turmas, pegou carona na mobilização espontânea do povo, e o que fez naquela ocasião foi, ao entrar em confronto com uma polícia despreparada, desmobilizar aquele milhão de pessoas que estava na rua.

Aquele milhão, vocês lembram, o povo, vestia branco, inclusive.

E foi, e é até hoje, hostilizado por quem veste preto.

Por isso, sumiram das ruas.

Não é o fim do mundo, como os apocalípticos gralham nas ruas e nas redes sociais, morrendo de calor.

O Brasil está longe, muito longe, no bom sentido, de ser a Síria. De ser o Afeganistão. De ser a Nigéria. De ser a Ucrânia.

Policiais fizeram perícia no local onde o cinegrafista foi atingido (Foto: Marcos Arcoverde/Estadão Conteúdo)

Principalmente na contagem de mortos em confrontos políticos.

Nesta semana morreram 17 num ônibus no oriente médio.

Também morreu trabalhador que obrava no estádio da Copa em Manaus. Ontem morreu outro trabalhador. Estava a serviço no Rio de Janeiro, na Central do Brasil, Centro do Rio, Riocentro.

Aqui na terra tão jogando futebol, tem muito samba, muito choro e rock’n'roll, uns dias chove, noutros dias bate sol, mas o que eu quero lhe dizer é que a coisa aqui não tá preta.

Tá 50 tons de cinza.

Preta mesmo estava em 1964.

E para os amigos e familiares do colega Santiago vai aqui um abraço do tamanho da cidade, porque a gente vai se amando – também, sem um carinho ninguém segura esse, aquele, qualquer rojão.

Matrimônio

sex, 31/01/14
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento, Rio

A tradução literal do filme “500 dias com ela”, lembram dele?,  seria 500 dias de verão.

A mensagem do filme é que nessa vida tudo passa.

Para o carioca não. O carioca vive 500 dias de verão.

A diferença é que, quando chega a estação propriamente dita, tudo passa mais rápido, tudo fica mais ofegante, abafado, a vírgula substitui o ponto, o ponto substitui o parágrafo e, no caso deste texto, papel e lápis substituem o notebook, que esquenta demais para ficar no colo nesta noite de 30 graus, para ser suporte de ideias de uma cabeça quente e desorganizada pronta para um choque de ordem, porque no verão tudo precisa de um choque de ordem, sejam flertes que querem virar romances, seja o que fazer com o 13º ou com o coração em final de Campeonato Brasileiro, com o fígado em véspera de carnaval, com as resoluções de Ano Novo, pois como um bloco de sujos numa quarta-feira de cinzas e, quando o prefeito nos chama de bloco de sujos, nós tocamos o bumbo solitário de quem paga imposto mas fica sem luz no Leblon, sem luz na Tijuca e, exigimos em troca um choque de ordem nas instituições que são sustentadas por nós, mas esquecemos os nós que somos nós e o quanto sós estamos nós, que desatar e reunir faria do nosso verão uma estação ainda melhor, ainda que um verão carioca de verdade e, que talvez o próprio carioca, se chocado e ordenado, seja menos carioca e isso é lindo e péssimo, porque o calor que inspira os compositores de marchinhas é o mesmo que queima as obras de Helio Oiticica, que nos faz procurar as “comfort parties”, festas caras no meio da semana, sem filas e sem pegação, mas que nos deixa sem paciência para fazer coleta seletiva do lixo ou tomar conta da água parada nos vasos de plantas, o que esconde uma ainda mais grave visão superficial do que seja meio ambiente, como tenho discutido com meus alunos de ensino fundamental e médio, quando fazemos uma limpeza geral na sala de aula antes da aula começar, porque a sala de aula é um ambiente a ser respeitado e temos que ter uma melhor relação ambiental com esses ambientes pouco lembrados, a sala de aula, a rua onde se mora, o bairro onde se vive, a praia que se frequenta, o ônibus da segunda-feira, o outro, sim, o outro consiste em um ambiente a ser cuidado com doçura e respeito e, principalmente, a si próprio, esse ambiente esquecido, a mente, a saúde do corpo, a pele da mocinha que neste momento dorme ao meu lado, com um poema do Leminski tatuado nas costas. “A noite me pinga uma estrela no olho e passa”, que de vez em quando vai à academia para se manter bela e lê Ana Cristina Cesar na varanda para ocupar a mente, ou o pelo, sem circunflexo, abre parêntese, a língua é o ambiente que mais sofre com o impacto das ações do homem, fecha parêntese, pelo da gata vira-lata que dorme de barriga pra cima no pé da cama e agradece o calor, pois gatos gostam de calor e são exemplarmente organizados e, por isso cariocas deveriam ser as tais gatas extraordinárias que andam no meio onde fluem e, que evoluem e que incluem a todos, simples assim, então nosso prefeito, satisfeito, poderia ocupar-se de impor choque de ordem em outras áreas urgentes e, então haveria o equilíbrio entre os bons selvagens cariocas que somos e os cidadãos de Estocolmo que pretendem que sejamos, então haveria afinal equilíbrio ambiental, o altinho liberado na beira da praia, a pipa dibicando no alto do morro da mangueira imortalizando Oiticica, a piscina de plástico na laje de casa, o pisca-pisca sincretista das luzes de natal misturadas ao néon dos inferninhos de Copa, os blocos de sujos, esses nós do verão e nós no verão.

Ufa.

O texto acima foi escrito em 2010, quando a revista de domingo do jornal O Globo me convidou para escrever uma coluna que resumisse o verão.

Quatro anos depois, o que mudou? Sabemos mais sobre gás lacrimogêneo, preços altos, mau humor com turistas. Nas ruas, não se vê a comoção coletiva quando fomos escolhidos sede da Copa do Mundo. Nenhuma rua decorada de verde e amarelo.

John Turturro está em Paquetá filmando um dos episódios de “Rio, eu te amo”, filme no qual cineastas do mundo inteiro celebrarão a Cidade Maravilhosa.

Turturro foi um dos protagonistas de Faça a Coisa Certa, obra prima de Spike Lee, que se passa no dia mais quente do ano em Nova York e observa as tensões entre seus habitantes e a inexorável fricção entre cidadão e cidade.

Um filme sobre nós: eu, você e aquilo que fazemos com uma corda quando queremos amarrar algo.

O Rio de Janeiro está certamente mais bonito do que em 2010.

Porque num casamento de verdade, uma mulher é sempre mais bonita de manhã quando acorda do que maquiada.

A cidade está mais bonita porque terminaram finalmente os séculos de namoro entre o Rio de Janeiro e os que aqui vivem.

Começou o casamento.

Todos que trataram a cidade como fosse um amor de verão, destes que a gente aproveita só o romance e cai fora quando as coisas começam a dar nó, agora tem que casar. Dormir e acordar, junto, aguentar o bafo, respeitar os espaços, encarar as mudanças de humor, eventuais traições, desencantos, dispor-se a trabalhar duro para resolver crises.

Por isso, toda vez que você ouvir gente que mora aqui reclamando da cidade, não se impressione tanto: é só DR. Briga de casal. Tentativa de desatar nós em um ambiente de 500 dias de verão.

 

São Sebastião do Rio de Janeiro $urreal

ter, 21/01/14
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento, Rio

Poucos dias depois da criação da página do Facebook “Rio $urreal – NÃO PAGUE”, 100 mil pessoas aderiram à ideia de que:

1) Os preços praticados na Zona Sul da cidade estão impraticáveis;
2) Deve-se fazer algo à respeito como, por exemplo, boicotar comerciantes que abusam do preço.

Historicamente, o brasileiro é daqueles que espera que o Estado resolva seus problemas. Se não o Estado, alguma marca de refrigerante ou companhia telefônica que patrocine soluções.

É desconcertante observar cidadãos Brasileiros decidirem serem cidadãos por contra própria. O bom senso diz que daqui a 700 anos o país estará a mesma coisa. Mas se a moda da iniciativa independente, sem partido (ouvimos em 2013 isso em algum lugar), pega, ótimo: não se sabe onde esse país pode parar.

Já ponderei aqui no blog o fato de que para a dona Judith, dona de um barraco que valia 2 mil reais em 1980 e hoje 100 mil na comunidade de Santa Marta, quanto mais caro o Rio estiver, melhor.

Nas eleições, dona Judith votará em quem fez o Rio ficar caro. Quanto mais caro, melhor pra ela. Róbson, dono de uma barraca na praia, morador de Vilar dos Teles, e que está abusando do preço da água de coco na areia, também. E os próprios moradores de Vilar dos Teles, onde a empada, a cerveja, o pão, o refrigerante e a água, que não viram esse tal aumento de preços no Rio de Janeiro.

Por isso, sempre toma-se um susto com o resultado das eleições, e escutamos aquele papo de que brasileiro não sabe votar, brasileiro pobre tem os votos comprados etc.

Não causa espanto que estas 100 mil pessoas que aderiram à página “Rio $urreal” nunca tenham se mobilizado para tentar resolver o problema atual da favela de Para Pedro, no Irajá, que sofre com uma guerra entre o Comando Vermelho e o Terceiro Comando desde dezembro.

É que vivemos, não só na Zona Sul do Rio, mas em todo planeta que chamamos de terra – embora não façamos a menor ideia do que terra, essa palavra, realmente signifique – a era, delicadamente construída, da “farinha pouca, meu pirão primeiro”. O cidadão século XXI não está – ainda – preocupado com o coletivo. Preocupa-se com os habitantes da comunidade de Para Pedro, mas não ao ponto de fazer uma página no Facebook e pedir adesões. Quer saber é onde dói em seu bolso particular.

Por enquanto e ainda, o preço da cerveja de garrafa da mureta da Urca, do salgadinho em Ipanema, do aluguel em Laranjeiras nos dói mais do que a morte de um garoto de 11 anos por bala perdida no Irajá.

Mas é um primeiro e um muito belo passo. Na hora certa. Um entendimento de que o processo de valorização de preços, que aconteceu nos anos 80 em Nova York por exemplo, expulsando os boêmios do East Village para o Brooklyn e depois Queens – e levou entorno de Manhattan a  passar a conter o endereço dos lugares mais bacanas da cidade – só aconteceu com os bens oferecidos, não com os serviços.

A essa hora, pela lógica de ocupação de todas as metrópoles importantes do mundo, era para que a Zona Sul do Rio fosse um lugar brega, habitado pelos tais turistas e milionários tão recentemente odiados pelos cariocas e que as pessoas mais descoladas da cidade morassem em Vilar dos Teles, no Irajá, numa boa. Porque Irajá e Vilar dos Teles seriam bairros tão bem cuidados pela prefeitura quanto Barra, Ipanema e Leblon.

Então grita uma das diferenças entre o Brasil que há e o Brasil que o morador da Urca acha que vive: o transporte público aqui não funciona, por uma mistura de corrupção, má-fé, incompetência administrativa e necessidade de que os cariocas do lado de lá, invisíveis, que nunca viram o tal do Rio $urreal, entre em contato com o Rio de cá, o olímpico.

Os participantes da página Rio $urreal estão de parabéns. Já se mobilizaram para, na própria página, indicar os lugares programas baratos que existem nessa cidade, que ainda é uma das mais baratas de se viver – pergunte a quem no fim de semana se divertiu a valer com 20 reais no Karaokê da Feira de São Cristóvão, ou a quem com 15 se acabou de dançar debaixo do viaduto de Madureira, ou fez um piquenique na Lagoa, ou quem se fartou com o ensaio da Orquestra Voadora no Aterro do Flamengo.

Com o tempo e amadurecimento, pode cair a ficha de que agir, ao invés de esperar ações institucionais é a única coisa (tirando revolução com muito sangue e morte, como nos ensina Stendhal) que pode salvar o Brasil de um destino oracular, escrito há milhares de anos.

Com sorte, esta ficha pode cair dos dois lados: tanto o do Rio de Janeiro majoritário, o da periferia, o que manda nas urnas, que nunca se mobiliza pra nada (rolezinho não é mobilização, rolezinho é desejo), quanto para o Rio zona sul, minoritário mas articulado, cheio de voz no Facebook mas que não tem peso nas urnas.

Ontem foi dia de São Sebastião. No ano de 286 ele foi executado por Diocleciano, imperador de Roma, na base do espancamento até a morte. Depois de morto, seu corpo foi jogado nos esgotos da cidade.

Hoje, a cidade do Rio de Janeiro é um (belo) cadáver, espancada até a morte e jogada nos esgotos. Não há instituição que reverta este quadro. Só quem pode, é o carioca.

E sua habilidade com fichas.

* Crédito: Káthia Mello/G1 Rio

 

Cariocas X Turistas

qui, 09/01/14
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento, Rio, Você

Rio de Janeiro, janeiro de 2014.

Fila de turistas para embarcar no bondinho do Pão de Açúcar - Foto por Dodô Azevedo

Há um fedor no ar. Repare. Um cheiro que não vem dos lixões nem dos esgotos desta cidade, que não é de ratos ou de mendigos. Não. É um cheiro que vem dos cemitérios da cidade do Rio de Janeiro. Todos eles. Fede o São João Batista, fede o Jardim da Saudade.

Um cheiro que, à noite, aumenta.

Venho por meio desta, constrangido, explicar o fenômeno.

É que trata-se do fedor dos defuntos cariocas revirando-se em seus túmulos.

Defunto doendo-se em suas tripas por desgosto.

Desgostos com seus compatriotas contemporâneos.

Os vivos.

Nós.

Porque há coisa de um, dois meses, os cariocas, de fama tão cordial e estusiasmada, se tornaram nos piores anfitriões do planeta.

Sim, o carioca declarou guerra aos turistas.

Principalmente com o turista brasileiro, de fora da cidade.

Começou assim, em cometários en passant de bar do tipo: “Que saco, Carnaval tá chegando aí, os blocos da cidade vão lotar mais uma vez de turistas. Como era bom ir ao desfile do Bangalafumenga antes desses caipiras invadirem a cidade!”

Sim, caipiras. Para o carioca século XXI, todo mundo que vem de fora virou caipira – “gente que não sabe passar protetor solar, nem se comportar na praia ou na noite da cidade.”

As moças cariocas, em dezembro, vaticinaram: “Praia? Só em abril! Eu vou é pra Trancoso. Não vou ficar em Ipanema dividindo lugar com meninas com pernas da cor de um palmito!”

Os taxistas também reclamam. “Nunca sabem o endereço de nada! Entram no táxi molhados de praia e pedem indicação de tudo: churrascaria, lugar bom pra jantar, lugar bom pra passear à noite…”

A polícia, seria surreal se não fosse óbvio, foi a primeira a perder a paciência de vez: “Os turistas estão muito desleixados. Vêm para o Rio de Janeiro e deixam a carteira no bolso de trás, como se estivessem no exterior.” – E aí o delegado do Leblon mandou cada turista se virar procurando seus pertences recuperados em caixas de papelão.

Que papelão.

O mercado imobiliário também contribiu para as tensões, emitindo boatos de que a bolha imobiliária carioca deve-se a turista brasileiro do interior, destes cheios de grana, dispostos a comprar tudo pelo preço que for, fazer o que os russos fizeram com Londres 10 anos atrás.

“É só reparar. Na hora do almoço eles se concentram nos Spolettos da cidade. Não querem gastar dinheiro nem arriscar-se na comida local! Desde que os turistas da cidade chegaram, a rede de restaurantes recolheu o potinho de manjericão grátis que ficava à nossa disposição, repare!”

O carioca delcarou guerra porque os turistas estão acabando com o manjericão do Spoletto.

Que manjericão.

Os defuntos, Antônio Maria, Leila Diniz, Rubem Braga, Clara Nunes, nossos avós, retorcem-se nas covas de desgosto conosco.

Se bem que, desde o tempo dos nossos avós, adoramos falar mal do “português da padaria”. Ele, o turista primordial, o que está desde 1500 acordando às 5 da manhã para colocar pão quentinho em nossas mesas.

“Com o calor, as famílias invadiram os shoppings! Na sessão de Até que a sorte nos separe II estava lotado de gente falando caipirês” – li em um comentário de notícia do G1 sobre esse calorão que tá aí.

“E os agroboys, gente? Na noite de réveillon fui ali na água molhar o pé e fui pega pelo braço, à força, por uns cinco, todos iguais, fortes, depilados, com grana no bolso e cabelo engomado! Só faltavam estar de sapato na praia!” – contou-me uma carioca pra lá e pra cá de bonita.

Os DJs da cidade também reclamam que os turistas ficam bêbados, incovenientes e passam a insistir para que “toque sertanejo universitário já”.

Enquanto isso, os turistas presos duas horas no meio da mata por falha no bondinho do Corcovado.

“Tá vendo? Sabia que o pichador da estátua do Drummond não era nascido no Rio de Janeiro! É mais um desses caipiras que vêm morar aqui!” – ouvi na sala de espera de um colsultório dentário enquanto passava o RJ TV.

E aí concluí – Aconteceu. Viramos os chatos insuportáveis dos parisienses.

E a fedentina das covas dos bons cariocas envergonhados com seus atuais representantes atenta as narinas.

Se achar melhor do que os outros sempre foi um dos charmes do carioca. Mas este se achar nunca foi pra valer – sempre foi mais um “quem desdenha, quer comprar” às avessas do que qualquer outra coisa.

Agora, tá tudo diferente. Se hoje você for a Buenos Aires, vai encontrar a cidade vazia de argentinos. Eles têm horror à invasão de brasileiros que se dá nesta época. Desde sempre, também no verão, os novaiorquinos vão embora de Nova Iorque. Os londrinos deixam a cidade para os espanhóis.

Este fenômeno nunca havia chegado ao Rio, o que tornava, para mim, carioca, uma cidade ainda mais única.

Agora chegou. Vou procurar um jazigo livre e me juntar aos protestos dos defuntos cariocas clássicos, os gente boa, sempre com um sorriso de “bem-vindos” nos olhos.

A você, meu caro, amado e bem-vindo turista, uma dica:

Não ligue para o que estes cariocas pensam não. Até porque o verdadeiro carioca, não espalha, mora lá longe e chacoalha num trem da central. E se você trocar a mureta da urca pela feijoada da Portela ou pelo Samba do Trabalhador, trocar Ipanema pelo Andaraí, você será recebido como você é: o admirador estrangeiro que nos faz, sempre nos fez, sentirmo-nos admiráveis.

Você, turista, é quem no fundo nos faz cariocas.

Uma mulher qualquer

qua, 18/12/13
por Dodô Azevedo |
categoria Cultura, Música, Rio

Rio de Janeiro, dezembro de 2013.

(Foto: Daniela Dacorso / Agência O Globo)

 

Desde que participou no último domingo do Projeto Aquarius, tocando ao piano o Concerto 21 em dó maior, de Mozart, acompanhada da Orquestra Sinfônica Brasileira, Ana Paula Araújo (foto acima), a apresentadora do Bom Dia Brasil, não ouve outra coisa:

“Não sabia que você tocava piano! Como você consegue fazer tantas coisas ao mesmo tempo?”

Ana Paula tem ouvido isso de desconhecidos nas ruas, de amigos, de parentes distantes, desde que as imagens de sua apresentação foram veiculadas na TV.

Todos surpresos.

Como pode uma mulher, uma única mulher, ser jornalista, apresentadora de TV, trabalhar 10 horas por dia, ter sido a repórter da matéria que deu o único Emmy ao jornalismo das organizações Globo, ter uma filha, que é uma espécie de super Emmy, educar a filha sem o auxílio de babás, ou, pra rimar, nannys, cuidar de si própria, ir pra academia, ficar gostosa, se entender com mil cremes, ficar linda, ir à praia, ler John Fante antes de dormir, ir ao cinema assistir à última Palma de Ouro em Cannes, ir para a balada dançar o último single do Daft Punk, jantar uma noite no Gero e na outra saborear as coxinhas de galinha do Bar da Gema, na Tijuca, conhecer e ser bem vinda em todas as quadras das Escolas de Samba, em todos os blocos de Carnaval, socorrer amigos quando estão deprê, dar-se o direito de ter de vez em quando sua própria deprezinha, saber contar piada, saber gerenciar sozinha sua vida financeira, e ainda por cima… tocar piano?

Como pode uma única mulher fazer isso tudo?

(Sabe-se que, se um homem aparece com muitos talentos, não há espanto).

As respostas para a pergunta “como pode uma única mulher fazer isso tudo?” são dois jogos de palavra muito simples:

1) Nenhuma mulher é uma só.

2) E por isso, todas as mulheres são únicas.

E paradoxalmente vítimas, como Ana Paula, destas mesmas respostas imperiais.

Porque todos nós, homens, mulheres, velhos e crianças tememos tudo o que é único.

Exemplo: não há mulher menos desejada por homens do que mulheres mais capazes do que eles.

Elas acabam, então, não apenas diminuindo-se, não apenas precisando redimensionar-se para caber  no gosto e na falta de coragem dos sujeitos.

Pior.

Elas acabam se transformando numa mulher só.

Numa mulher apenas.

E, enfim, só.

Sós. Até que acontecem momentos assim, em que resolvem mostrar que, além de tudo, sabem, por exemplo tocar piano. E assim, descobrem que não são apenas uma só.

São várias.

E e estas várias mulheres, a melhor companhia que se pode ter para si própria.

Embora a maioria das mulheres não suporte a si própria.

Duas horas antes de Ana Paula subir ao palco, este blog esteve nos bastidores do Projeto Aquarius e invadiu um momento íntimo de uma das Ana Paula Araújo que vivem dentro da Ana Paula Araújo: o momento em que, sozinha, só, o piano e ela, acontece o aquecimento, o reconhecimento dos dedos com as teclas.

Assim que começou a tocar o piano, reparei que aquela Ana Paula ali, na minha frente, estava muito, muito tensa.

Mas estar tensa é normal. O problema é que ela, a duas horas da apresentação, estava é com medo.

Medo do sucesso, claro.

Este mesmo medo que você, leitor, tem em todas horas pares da sua vida.

Chamei a atenção desta Ana Paula a respeito de ser bom ainda existirem coisas que nos fazem sentir medo de sucessos. É sinal que a aventura ainda não acabou para nós.

Em seguida, informei que ela estava tocando o piano como estivesse se preparando para um terrível obstáculo.

Quando, na verdade, era um presente.

Um convite do próprio maestro da incrível Orquestra Sinfônica Brasileira.

Acontece que a gente tem esse costume besta de confundir presentes com terríveis obstáculos.

“Então, Ana Paula: chegou a hora de você decidir como vai se relacionar com um presente.”

Ela ouviu e falou: “É, acho que estou mesmo com este medo tolo.”

De novo, informei: todo mundo sente isso o tempo todo.

Qualquer pessoa.

Então, todo o peso do mundo saiu dos ombros desta Ana Paula quando ela, enfim, entendeu que era, ufa, uma mulher qualquer.

Única.

Como qualquer mulher.

(Você pode ver a apresentação de Ana Paula aqui)

Mandela, eu, minha mãe e o Samba

sex, 06/12/13
por Dodô Azevedo |

O colunista Dodô Azevedo no colo de sua mãe em 1972 – Foto Arquivo Pessoal

Armação de Búzios, 6 de dezembro de 2013

 

No dia 07 de dezembro de 1971, minha mãe fazia aniversário.

Para ela, não houve bolo nem vela para assoprar, nem pessoas em volta cantando “parabéns pra você”, não houve casa cheia de gente comendo e bebendo.

É que minha mãe passou o aniversário numa maternidade, dando à luz seu primeiro filho.

Eu.

No momento em que nasci, numa maternidade do bairro de Laranjeiras, perto dali, meu pai comemorava o nascimento do primeiro filho bebendo numa roda de samba com amigos, num boteco da rua General Glicério, onde funcionou de 1880 a 1930 a fábrica de tecidos Aliança, cujos trabalhadores fundaram dois dos primeiros ranchos carnavalescos da cidade, o União Aliança e o Arrepiados.

Minha mãe diz que eu nasci arrepiado.

O rancho carnavalesco Arrepiados desfilava com as cores Verde e Rosa, cores que seriam adotadas pela escola de samba Estação Primeira de Mangueira.

Nasci mangueirense.

Com meu nascimento, minha mãe imediatamente largou o trabalho (um cargo vitalício em um emprego público) e foi viver para administrar a família. Quando parou de trabalhar, surtou. Três anos depois, ela estava desempregada, com dois filhos (um caçula nasceu um ano depois de mim), vendo sua beleza e juventude indo embora (nos anos 70, não existia esse papo de academia, malhação e muito menos plástica para as mulheres de classe média).

No meu aniversário de quatro anos de idade, minha mãe deu a si própria um presente de aniversário: abandonou a família e foi viver a vida que lhe havia pela frente.

Jack Kerouac e os beatniks faziam isso (ter filhos e abandoná-los para cair na estrada) a torto e a direito. Todo mundo acha bonito. Mulher fazer isso, não.

Meu pai, infantilizado pelo rancor, passou a ouvir samba em casa todos os dias. Sentava numa cadeira de madeira, bebia, praguejava, manipulava a vitrola e cantava em voz alta sambas de Candeia, Elton Medeiros e Geraldo Pereira.

Tirando o básico, o obrigatório na formação do caráter de meninos, que era levar os filhos todos os domingos ao Maracanã, meu pai tampouco queria saber de mim. Passava as horas de folga do botequim para a vitrola – quando arrumava outra mulher para amar e brigar, amar e brigar, ficava em paz.

Paz é isso: arrumar uma mulher para amar e brigar, amar e brigar – aprendi.

Comigo e com meu irmão estava tudo bem. Passávamos os dias jogando bola no campinho de terra da rua Belisário Távora, soltando pipa com a garotada da favela do morro Dona Marta, namorando meninas embaixo da escada do bloco A do prédio Os Três Mosqueteiros, pegando jacaré em dia de semana na praia do Leme, passando por baixo da roleta do ônibus, bebendo mate em garrafa usada de água mineral (uma moral que os vendedores davam pra garotada sem grana na praia e que não pesava no bolso porque a empresa cobrava cada ambulante por copo, e não por litro vendido, veja só), e caçando tatuís para fritar e comer com manteiga e farinha antes do jantar.

Eu era um garoto que sabia soltar pipa, dar passe de trivela numa pelada, desabotoar o sutiã de uma menina curiosa, e pegar jacaré.

Um carioca gema dura. E carioca gema dura não sente falta de mãe. Para entender a alma do Rio de Janeiro, tem que se entender que esta cidade é, desde sua fundação, uma uma feliz e desencanada órfã de mãe.

A minha eventualmente aparecia. Quase sempre no dia 7 de dezembro. Sumia meses, passava uma época em comunidade hippie na Amazônia, outra com uma turma barra pesada do pó da Zona Sul, ou sumia pros lados da baixada fluminense, outra em Nova Iorque, de onde trouxe meu primeiro livro de poemas do Paul Laurence Dunbar  e, em sua mais interessante encarnação, chegou a viver no aterro do Flamengo, com um grupo de mendigos, “observando hipócritas, junto à fogueirinha de papel”. Ela era apaixonada pela canção “Não chores mais”, a adaptação de Gil para “No Woman no Cry”, de Bob Marley.

Em 1991, apareceu de supetão, vestindo uma camisa vermelha do partido comunista e me levou para ver Nelson Mandela na Praça da Apoteose. Enquanto Mandela falava, ela, na arquibancada, chorava, me abraçava e pedia perdão.

Minha mãe chorava muito quando reaparecia para a família. E invariavelmente pedia perdão – essas coisas que não se pede, se conquista. Chorava aos joelhos dos filhos, mesmo nós com 22, 23 anos na cara. Implorava por perdão, bêbada, fraca.

E falava (fala até hoje): “Luiz Fernando, seu filho de uma pu$%ta! Sabia que você é o melhor e mais maravilhoso e o mais terrível presente de aniversário que uma mulher pode ganhar?”

Sim, meu nome é Luiz Fernando.

Apesar destes raciocínios tão fascinantes que minha mãe tinha quando bebia e vivia crises de culpa em nosso aniversário, estes eram os únicos momentos em que meu gigante amor e fascínio por esta mulher arrefecia: quando ela fraquejava.

Minha relação com a cidade também é a mesma.

Quando fraqueja, perde a marra, sente culpa, o Rio de Janeiro é pra mim um lugar tão desinteressante quanto Cleveland.

Neste século, minha mãe, e o Rio e o samba sossegaram um pouco. Ela teve um insight genial: passou a, toda vez que me encontra, dizer aos berros para todos ouvirem:

“A única mulher que pode chamar este homem de filho da p%$ta sou eu! Mais ninguém! Mais ninguém, ouviram?!”

Ouviram?

Da mesma forma, os únicos que podem chamar esta cidade de “uma cidade filha da p%$ta” são os cariocas.

Eu acho minha mãe o máximo, mas ela não é feliz.

E muitas vezes tenho também a mesma relação com esta cidade: acho ela o máximo, mas desconfio de sua felicidade aparente.

Amanhã é dia 7 de dezembro. Aniversário de minha mãe, meu, e do Samba. Tudo bem, o dia oficial do samba foi dia 2/12, mas finalmente tiveram a manha de estender as comemorações e só fazer o Trem do Samba – evento para 30 mil pessoas que mobiliza todas as linhas de trem e o bairro de Oswaldo Cruz – num sábado, não só para não atrapalhar o trabalhador como para incluí-lo de vez neste que talvez seja o evento mais bonito, e o mais filha da p%$ta, desta cidade.

O Trem do Samba é realizado desde 1991 e reúne cantores, músicos e populares em rodas de samba dentro dos vagões de trens que fazem, sem paradas, o trajeto Central do Brasil – Oswaldo Cruz. Houve um tempo em que o Samba era proibido na cidade. Então os primeiro sambistas vinham tocando dentro dos vagões de trem, vindos de Oswaldo Cruz e, chegando à cidade, paravam de tocar e escondiam os instrumentos da polícia.

O evento Trem do Samba trata-se, portanto, de uma viagem de volta, uma viagem pra dentro, uma das vinganças mais bonitas – e cariocas – que a história já produziu contra algo que foi proibido.

Já não vou ao Trem do Samba desde 2004, quando (não sei ainda é assim), dentro de cada vagão, ia uma velha-guarda de uma escola de samba tradicional. Você escolhia se queria fazer o trajeto ouvindo os velhos sambas do Império, da Portela ou Salgueiro…

O trem saía da Central do Brasil assim: lotadíssimo, e polifônico, cada vagão festejando suas melodias.

A exata expressão desta incrível cidade filha da pu%$a.

Quando o trem começava a andar e você sentia a falta da Estação Primeira de Mangueira entre as escolas, ele, o trem, parava repentinamente. Logo no início da viagem. Logo na primeira estação. E, surpresa: se juntava ao comboio a velha guarda da verde e rosa, sendo saudada por todas as escolas, em todos os vagões, ao som de “Mangueira, teu cenário é uma beleza. Chegou, a Mangueira chegou…”

Todo mundo chorava.

E chorar também é uma viagem pra dentro.

Como disse, não sei se ainda é assim. Só sei que amanhã, às 17h, embora eu não veja minha mãe há um bom tempo e faça apenas alguma ideia de onde ela viva, estaremos lá, na Central do Brasil, pois esteja onde ela esteja ela não perde uma edição do Trem do Samba, prontos para comemorarmos e envelhecermos em paz.

Paz é isso: arrumar uma mulher para amar e brigar.

Amanhã, estaremos prontos para mais uma viagem de fora pra dentro.

Nós, os homenageados do dia.

Mandela, eu, minha mãe e o Samba.

Lulu

seg, 02/12/13
por Dodô Azevedo |
categoria Cultura, Música, Rio

Lulu Santos em 1980. Foto Antônio Guerreiro: Divulgação

 

Rio de Janeiro, dezembro de 2013.

 

Passou-se a última semana falando-se neste tal de Lulu, aplicativo para celulares. Só me vinha à cabeça Lulu Santos. E de como o mundo seria melhor se passássemos toda a semana falando deste Lulu e não daquele.

Foi Lulu Santos quem deu nome à minha primeira banda de rock. Em 1984, Léo Gandelman era saxofonista de Lulu e tio de nosso guitarrista, Lula Carvalho, hoje fotógrafo de cinema de filmes como “Cidade de Deus” e a nova versão de “Robocop”. Lulu Santos e banda faziam uma temporada de shows de divulgação do LP Tudo Azul na danceteria Mamute, na Tijuca.

Danceteria era como chamávamos os lugares que nos anos 70 as pessoas chamavam de boate. Nos 90, clube. Na primeira década dos anos 2 000, casa. E que, hoje em dia, não se chama de nada. Onde será o show? Ah, lá no Circo Voador.

Os shows de Lulu na danceteria Mamute começavam cedo. Para a garotada poder ir. Então você via, na plateia de uma mesma boate/casa/clube/sem-nome, garotinhas new wave de 13 anos, surfistas de 19 e hippies maconheiros de 35 cantando coisas como “tudo azul / todo mundo nu”.

Eram tempos modernos.

E aquelas melodias, aquelas letras. A língua portuguesa descomplicou-se quando santo Lulu veio com mensagens tão diretas e descomplicadas, a tal da simplicidade onde mora a filosofia menos vã, o tal do zen-surfismo como uma onda no mar.

O Tao.

É preciso entender muito de música para compreender que o pop perfeito é mais difícil e mais raro de ser encontrado do que erudições harmônicas. É mais difícil compor uma canção de Lulu Santos do que uma boa peça para um quarteto de cordas, um trio de jazz ou uma intervenção dodecafônica – modalidades geralmente associadas a inteligência e superioridade.

Embora “She Loves you yeah yeah yeah” ou as canções redondas da banda escocesa Teenage Fanclub sejam, antes de obras de um músico virtuoso, produtos de um espírito sofisticado.

A alma simples e por isso sofisticada de Lulu Santos me fez aos 14 anos dançar colado cheirando os cabelos de uma mocinha da mesma idade, os dois de olhos fechados, ouvindo verdades que só se amplificam quanto mais vivemos: “Não existiria o som se não houvesse o silêncio. Não existira luz se não fosse a escuridão. A vida é mesmo assim. Dia e noite. Não e sim.”

Um ensinamento zen que de tão simples parece brega. Mas se brega fosse de fato, não seria algo tão difícil de ser verdadeiramente aprendido.

Se falássemos menos do aplicativo de celular e mais de Lulu Santos, estariam resolvidos todos os problemas do Oriente Médio, por exemplo, e venderia-se menos Rivotril aqui na cidade, e se entenderia mais esta vida tão aparentemente complicada, aparentemente insolúvel.

E se isso que escrevo também parece brega para um raciocínio acadêmico ocidental, pior para o raciocínio acadêmico ocidental. Lulu Santos sofreu (e sofre) um preconceito besta (que todo pop perfeito sofreu, ou tudo o que é perfeito sofreu) nada velado, de quem acha que tudo o que é simples é necessariamente superficial e tudo o que é profundo é necessariamente mais inteligente.

Pois aqui vai uma novidade: se Zenão, discíplulo de Parmênides, contou com os Eleatas para desempinar o nariz dos pluralistas e elaborou a primeira teoria dos paradoxos, o fez ao descobrir que os raciocínios mais corajosos do ponto de vista da Matemática e da Filosofia são os radicalmente transparentes: “Tolice é viver a vida assim, sem aventuras. Deixa ser pelo coração. Se é loucura, então melhor não ter razão.”

E tem os solos perfeitos de Lulu. E vocês aí falando em solidão. Num aplicativo de celular que quer aplacar solos.

Show de Lulu Santos em 1984 na danceteria Mamute na Tijuca. O fato de Lulu fazer música para a senhora do Grajaú, para a menina da Urca, para o maconheiro de Niterói, para o hipster da Gávea, para a lavadeira que pega o trem todo o dia pra cozinhar para o hipster da Gávea ainda me diz mais sobre a existência curativa de Lulu Santos:

Neste fim de semana, foi inaugurada a Árvore de Natal da Lagoa. Pela quarta vez, Maria Hermínia da Silva, 58 anos, saiu de Duque de Caxias com oito amigas, uma caixa de cerveja e petiscos num isopor para assistir ao show. Imediatamente vi em meu feed no Instagram e Facebook fotos de moradores da Zona Sul aproveitando-se do incômodo do engarrafamento para coisas do tipo: “Vai começar o inferno.”

Li ontem na revista de domingo d’O Globo a excelente entrevista feita por Mariana Filgueiras com a antropóloga Julia O’Donnel: “Praia democrática é mito”, disse a pesquisadora, antes de emendar: “Se um grupo de meninos negros chega no posto 10 fazendo a festa, no dia seguinte as pessoas irão se mudar para o posto 11″.

Por muitas vezes prefiro a literatura brega de Bret Easton Ellis, “People are afraid to merge”, aos floreios de David Foster Wallace, ou da nova literatura brasileira, tão fã de DFW e, por isso, tão Zona Sul.

Lulu Santos, além de não ter medo de se misturar, tem a receita da mistura – Tim Maia e Jorge Ben também têm, mas são extraterrestres, não contam. E sua poética, dos versos aos solos, desenha generosamente um mapa da mina que muita gente boa já entendeu que é o que há em terapia para tudo.

“Só falta reunir a Zona Norte à Zona Sul.” – ele canta sorrindo desde 1984.

Não tive tempo de ver nenhuma edição do programa The Voice Brasil. Mas dizem que Lulu é a alma do show. Acho que li no Twitter semanas atrás Boninho chamando-o de gênio. Andando por Manhattan há alguns anos, Lulu Santos olhou pro céu, pensou, e cunhou a expressão: “Mãe Atã”. E eu não vi Woody Allen, Lou Reed, ou Paul Auster resumir aquela cidade de modo tão preciso e glorioso em apenas duas palavras. É provável que Boninho tenha razão.

Um dia, quando pararmos de achar que a culpa dos arrastões em Ipanema é da quantidade de ônibus que vêm da comunidade do Alemão ou concluirmos ser estranho a FIFA achar que Lázaro Ramos e Camila Pitanga não são muito a cara do Brasil, talvez mereçamos uma definição, assim, um diagnóstico em duas palavras dos Santos de Lulu.

Em 1984, após uma das apresentações na danceteria Mamute, fomos, eu e minha banda, ao camarim. Moleques felizes e sem vergonha, pedimos para Lulu batizar a banda. Ele pensou, pensou, pensou. Aí sorriu. E anunciou em voz alta:

“JA SEI! OS CHOCANTES!”

Sim. Os Chocantes.

Eu estava fadado ao pobre do Cinema, à pobre da Filosofia e ao pobre do Jornalismo.

E a um dia devolver:

#Chocante é você, Lulu.

Distorções

sex, 22/11/13
por Dodô Azevedo |

Rio de Janeiro, novembro de 2013.

 

Recebo em casa as 244 páginas da belíssima edição ampliada e revisada do livro “Niterói Rock Underground 1990-2010″, do jornalista Pedro de Luna.

Editado de forma independente, projeto gráfico destes raros de ver no mercado editorial brasileiro (lembra as coisas de John Barnett para a Voyageur Press), toneladas de fotos e reproduções de flyers, cartazes e fanzines de um tempo onde o ‘faça você mesmo’ era o natural da vida.

E, por isso, a vida era mais natural.

Ao lado dos livros “Esporro”, de Leonardo Panço, e “Memórias não póstumas de um punk”, de Larry Antha, “Niterói Rock Underground 1990-2010″ materializa um momento cultural muito rico, porque bruto e puro, que a grande mídia na época não cobriu.

Muito pelo contrário: jornalistas diziam que rock bom era o que vinha de fora.

Leonardo Panço, autor do “Esporro”, explica melhor aqui.

 

Produções independentes, estes três livros obrigatórios também corrigem outro cacoete que a grande mídia ainda hoje não perdeu: a de se ater apenas à cena musical da Zona Sul do Rio de Janeiro ao editar histórias sobre novas cenas culturais.

De quebra, ainda reabilita o balneário de São Sebastião como o maior, ou ao menos o mais bem documentado em livros, centro de rock de garagem do Brasil nos anos 90 – coisa que quem frequentou as garagens da Baixada Fluminense, e de Niterói, sempre soube.

Rio de Janeiro, túmulo do Rock? Só para quem não conhece a cidade além dos limites da Zona Sul ou não leu a incrível produção cultural desta gente bronzeada no século XXI.

Aos sábados à noite, os escombros mal iluminados da rua Ceará, na Zona Norte do Rio, ponto de encontro da garotada que até hoje curte rock menos domesticado, de paladar avesso à farofa, ficam mais lotados que o Baixo Gávea, na Zona Sul do Rio.

Ah, estes conceitos: iluminação, paladar, farofa, balneário, ‘faça você mesmo’.

Imagens:
1 – Capa do livro ‘Niterói Rock Underground 1990-2010′/Dodô Azevedo
2 e 3 – Fotos do livro ‘Esporro’/Divulgação



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