Noite de Oscar

sex, 28/02/14
por Dodô Azevedo |
categoria Cinema, Cultura, Você

Cena do filme Ela, de Spike Jonze, que concorre ao Oscar de melhor roteiro original

 

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Aqui, neste post, a partir das 20h, este blog passa a comentar tudo sobre a noite dos Oscars.

Sabe papo de quem tá ali do teu lado com um balde de pipoca na mão?

A ideia é que juntos, ainda que pela tela do computador, tudo fica mais divertido.

 

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POSTADO às 02:09

E a grande vitoriosa da noite foi Ellen Degeneres. Revolucionou tudo com a ação de marketing que deu no selfie mais compartilhado da história, conduziu o espetáculo de modo a passar mais rapido do que nos anos anteriores. Contrato garantido no ano que vem.

MUITO obrigado a você que acompanhou aqui estas três, quatro horas de comentários aqui. Eu adorei.

Próxima parada, Cannes.

Você vem comigo, né?

 

 

POSTADO às 02:00

Deu 12 anos de escravidão. Ganhou mas não levou. Gravidade foi o grande vencedor da noite. Brad Pitt, branco, constrangedor em sua participação no filme, foi o primeiro a falar, antes de McQueen, o diretor negro. Óbvio. No fundo, e na superfície, é tudo negócio. E o Lobo de Wall Street é uma ópera que explica isso maravilhosamente. O filme do ano. Que explica tudo o que você viu comigo hoje.

POSTADO às 01:55

Matthew McConaughey. Mesma coisa da Lupita. Papel fácil prum ator. Leonardo Di Caprio não sair com estatueta é caso para o parlamento da Ucrânia.

POSTADO às 01:50

A impressão que se tem é se Leonardo Di Caprio nao ganhar a platéia levanta e vai embora.

POSTADO às 01:47

Meio mundo agora de olho na conta de twitter da @MiaFarrow .

POSTADO às 01:46

Estendo o tira-teima: Quero ver a Cate Blanchet fazendo uma escrava preta chicoteada

POSTADO às 01:36

Virou o jogo. Gravidade virou todo o tom da noite, preparada para consagrar 12 anos de escravidão. Alfonso Cuarón, o primeiro latino-americano a vencer melhor direção, sendo o menos latino americano que um diretor pode ser.

POSTADO às 01:35

Roteiraço, o de Ela. Inacreditavel Spike Jonze ter vencido. E conseguiu o que queria: empatou com a ex-esposa, Sofia Coppola, num filme que é clara resposta a Encontros e Desencontros, que explana a relação dos dois quando eram um casal e deu a ela também o Oscar de melhor roteiro original.

POSTADO às 01:33

O primeiro job de John Ridley, roteirista de 12 anos de escravidão, foi roterista do Fresh Prince of Bel Air. Pode ser que 12 anos fique com os prêmios principais e poucos, e Gravidade com o resto.

POSTADO às 01:18

Nos livramos do discurso do Bono.

POSTADO às 01:16

Trilhas muito fracas este ano. Todas. Mas é o sexto Oscar de Gravidade, o primeiro favorito ao Oscar, lembram?

 

POSTADO às 01:02

Momento máximo.

 

Viva Coutinho!

 

POSTADO às 00:55

Porque  que ficamos tão comovidos na hora do obituário? Porque nos enfiam na cabeça, o tempo todo, que são imortais.

 

POSTADO às 00:54

Agora, a homenagem a Eduardo Coutinho. Pera…

POSTADO às 00:39

Tira-teima definivo? Ver a Meryl Streep fazendo o papel da escrava negra chicoteada pelo homem branco.

POSTADO às 00:32

Melhor montagem sem Thelma Schoonmaker, ainda mais em Lobo de Wall Street, é campeonato de basquete sem o time americano. Mas é bacana o Oscar de montagem ir para o diretor do filme. Ah, gosto do trabalho de montagem de Alan Baumgarten, editor de A Trapaça, em Zombiland. Só.

POSTADO às 00:28

O fofógrafo do Terence Malick finalmente ganhou uma. E Roger Deakins, um dos melhores fotógrafos do mundo, bate o próprio recorde de derrotas.

POSTADO às 00:16

O prêmio pra Lupita é o primeiro sinal de que o vencedor da noite será mesmo 12 anos… – o papel e a atuação em si não são extraordinários não. É o tipo de papel bem fácil de atuar na verdade. Já vimos em novelas da Globo.

POSTADO às 00:13

Sally Hawkins, a irmã de Blue Jasmine: descobri-a no incrivel Happy-go-Lucky, do Mike Leigh. Dica de filme pra este fim de carnaval.

POSTADO às 00:09

Skip Lievsay é o soundmixer dos filmes dos irmãos Coen. Faz um trabalho incrivel em gravidade. Pouca gente reparou, mas metade do filme de Cuarón deve-se ao som.

 

POSTADO às 00:07

Tudo bem de novo.

 

Selfie Epic Win

 

POSTADO às 00:01

U2, melhor não comentar.

 

POSTADO às 23:54

E a Amy Adams tuitando na platéia?

POSTADO às 23:51

Outro que pouco barulho fez em Cannes foi A Grande Beleza. Mas o filme cresceu, acontece. Este blog trocaria todos os indicados este ano por Azul é a cor mais quente, vencedor da palma em 2o13.

POSTADO às 23:41

Estão ligados que esta que levantou o público com a cantoria é a esposa do Sargento Murtaugh de Máquina Mortífera, né? Sério.

POSTADO às 23:36

Kate Hudson nunca deixa nada em casa. Traz tudo o que tem.

POSTADO às 23:26

Karen O e sua canção de comercial de plano de saúde.

POSTADO às 23:21

Este clipe com os heróis do cinema (é o tema dos Oscars de hoje), tira todas as possibilidades de O Lobo de Wall Street, não?

POSTADO às 23:15

Frozen atingiu neste domingo um bilhão de bilheteria, tornando-se o segundo filme a faze-lo desde toy story 3. Merecido.

POSTADO às 23:12

Kim Novak no palco. Um corpo que cai, maior filme da história do cinema, foi indicado, na época, apenas para som e direção de arte.

POSTADO às 23:03

Uma verdade dita agora no palco: A garotada não sabe o que é a AIDS. Por isso, Clube de Compras Dallas vale.

 

POSTADO às 22:58

Michael Wilkison, figurinista de A trapaça, trabalhou com Walter Salles em Água Negra. Era o favorito e perdeu. Tô dizendo que trapaça vai ser o grande perdedor desta noite.

POSTADO às 22:53

Insistindo nesse chapéu e nesse gestual, o onipresente Pharell  reduz-se a a um Jamiroquai reboot. A música é bem boa, porém. Inofensiva, mas boa.

 

 

POSTADO às 22:46

Ponto pra Jared Leto. Valeu também pela primeira menção à política. Sóbria, embora o “estamos de olho”, dirigido à Venezuela e Ucrânia tenha soado, no fim das contas um tanto imperialista.

 

POSTADO às 22:43

Trapaça perdeu a primeira. Jared Leto superestimado. Filme superestimando. Mas tudo esperado.

POSTADO às 22:40

Ellen, de banho tomado, fazendo um dos melhores monolólogos de abertura dos últimos anos. Primeiro acerto da noite. Golaço.

 

POSTADO às 22:25

Assisto a esse povo todo bem vestido no tapete vermelho e penso que falta o peladão que invadiu o palco ao vivo durante a cerimônia 1974, lembram? Google aí: David Niven + Oscar + The Streaker.

 

POSTADO às 22:19

Gravidade deveria concorrer a melhor desenho animado, não filme. Apenas os rostos de Sandra Bullock e George Clooney são de carne e osso. O resto é animação renderizada em gigabytes. Tudo o que ganhar será por seus primeiros 15 minutos de filme. Tudo o que perder será por seus contrangedores 15 minutos finais de filme

 

POSTADO às 22:04

E o Jonah Hill, que levou a Iídiche Mama para a cerimônia do Oscar? Hollywood é judia, todo mundo sabe, mas essa safra desencanada, maconheira, cujo padrinho é o Judd Appatow (diretor de Ligeiramente Grávidos e Virgem de 40 anos) e o mentor é o Harold Hamis (de Feitiço do Tempo) falecido semana passada, ah essa geração é um grande barato.

 

POSTADO às 21:59

Este blog, fã de Steeve Coogan, torce pra qualquer coisa que Philomena belisque.

 

POSTADO às 21:33

O importante aqui é relaxar, curtir a festa, porque o que sai das urnas é historicamente coisa de maluco. Exemplos?

- Taxi driver não ganhou nenhum Oscar. Scorsese sequer foi nomeado para melhor diretor, que naquele ano foi para John Avildsen, de… Rocky, um lutador.

- A grande ilusao, de Renoir, foi o primeiro filme estrangeiro a ser indicado para melhor filme. Perdeu para You Can’t Take it With You, do Capra.

- Spike Lee perdeu o roteiro original de Faça a Coisa Certa para Tom Schulman, de Sociedade dos poetas mortos.

- Stanley Kubrick foi indicado a melhor diretor por Laranja Mecânica… E PERDEU William Friedkin, de Operação França.

- Art Carney, ganhou, por Harry and Tonto (!), de Al Pacino em O Poderoso Chefão II e de Jack Nicholson em Chinatown.

- Cantando na chuva foi indicado apenas para melhor trilha a atriz coadjuvante. E PERDEU nas duas.

 

 

POSTADO às 21:22

Vi Nebraska em Cannes 2013. Não me pegou, não. Nem a ninguém na Croisette.

 

POSTADO às 21:12

David O. Russel conhecido no metiêr como péssimo caráter. Pitis onde ele humilha atores estão pelo youtube, só achar. Artisticamente, não tem personalidade alguma. Trapaça imita Scorsese – ele diz que homenagem e todo mundo finge que acredita. Porém, em Três Reis, ótimo filme, engendrou uma das cenas de abertura mais sensacionais da história do cinema. Mark Whalberg, caracterizado de soldado americano, no meio do deserto do Iraque, perguntando “Are we shooting?” é um ponto alto da história do cinema. Um dia vão ter que dar um Oscar póstumo a O. Russel por isso. Tomara que não hoje.

 

POSTADO às 21:06

E a grande tragédia deste Oscar são as indicações por Trapaça. Um dos piores filmes já indicadados para melhor filme em 84 anos de Oscar. Como o hype em torno dele já passou, deve ser o grande perdedor da noite.

 

POSTADO às 21:03

Her/Ela, o favorito particular do blogueiro. É, na minha opinião, um filme… otimista. Toda forma de amor vale à pena. Monogamia e amor romântico é atributo humano. Amar demais, amor difuso, coisa de máquinas. E sim, uma escancarada resposta de Spike Jonze a Sofia Copola, que expôs o relacionamento dos dois, quando casados, no filme Encontros e Desencontros.

 

POSTADO às 21:00

Já O Lobo de Wall Street é um triunfo do cinema. Há mais valor técnico ali (montagem, edição de som, fotografia), que o técnico Gravidade. Scorsese filmando com tesão de um estudante de cinema de 18 anos. Ou como um velhinho de 71 cheirado. É o favorito deste blog.

 

POSTADO às 20:58

Em Los Angeles, há cartazes publicitários a favor de 12 Anos de Escravidão que apelam para o que elegeu Obama: “Chegou a hora de um negro ganhar o Oscar” etc. O maior triunfo do filme é ser britânico. O maior defeito é ser britânico. Há uma mão pesada e formal e na verdade não nos conectamos com os personagens emocionalmente, e sim fisicamente. Não sentimos a dor da mãe que é separada de seus filhos. Sentimos é as chibatadas que elas levam. Culpa do diretor. Uma única cena genial, que valeria uma estatueta: A que o personagem principal para o filme, e chocado, olha para a câmera. Mas é uma só.

 

POSTADO às 20:52

Vencedores de melhor ator que NÃO eram brancos: José Ferrer, Sidney Poitier, Ben Kingsley, F. Murray Abraham, Denzel Washington, Jamie Foxx, Forest Whitaker. Em 85 anos. Por isso também, a noite deve ser de 12 anos de Escravidão.

POSTADO às 20:51

Nos últimos 10 anos, nenhum ator latino, asiático ou descendente de indio ganhou Oscar.

POSTADO às 20:50

Dos votantes da Academia, 94% são brancos, 77% são homens.

POSTADO às 20:48

Acho que foi hoje, inclusive, que  a Julie Delply, cujo “Antes da Meia Noite” concorre a roteiro adaptado (por causa de uma lógica maluca que diz que continuação é roteiro adaptado) deu uma descascada Academia, dizendo à Vanity Fair que não se pode esperar muito de um corpo de votantes composto de velhinhos de mais de 70 que estão mais interessados nos presentinhos distribuidos durante a campanha dos filmes.

POSTADO às 20:42

Estas limusines todas chegando e o primeiro a dar as caras no tapete vermelho é justamente um ex-motorista de limusine. O somali Barkhad Abdi, em seu primeiro trabalho como ator, indicado para coadjuvante por Capitão Philips. Difícil os velhinhos da academia, todos lotados de culpa, não curtirem premiar o africano.

 

 

POSTADO às 19:52

Repórter para Ellen Degeneres, faltando duas horas para começar a cerimônia dos Oscars, que ela vai apresentar.

- E aí? Nervosa? Conta pra gente o teu ritual antes de subir ao palco, principalmente numa noite tão importante!

- Gosto de tomar banho, me vestir e pentear o cabelo.

A noite promete.

 

 

Carnaval em casa

qua, 26/02/14
por Dodô Azevedo |
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São muitos os sentidos da palavra liberdade. Para os ucranianos que passaram o último mês ocupando a praça em Kiev, liberdade é uma coisa. Para os presidiários do Maranhão, outra. Para quem nunca teve grana pra comprar uma TV de LED, comprar uma TV de LED.

Ser livre pode ser, então, questão de poder agir – liberdade física. Ou de poder pensar – liberdade intelectual.

Porém, liberdade de querer é, de longe, a mais difícil de conservar. Afinal somos livres para querer o que queremos?

Chama-se a liberdade do querer liberdade metafísica. Ou liberdade sobrenatural, ensinam Platão, Russeau e Kant.

Para os cariocas, liberdade é querer passar o carnaval em casa.

Repare: faz uns quatro anos que o carioca deixou o carnaval de rua, revitalizado no início do século 21 e já três vezes o tamanho do carnaval da Bahia, para os turistas.

Carioca que é carioca curte o carnaval  nos cada vez mais antecipados fins de semana que o antecedem.

Durante os feriados do carnaval propriamente dito, o  carioca, já cansado da folia do pré-carnaval (já desfilou o Pérola da Guanabara em Paquetá, o Gigantes da Lira em Laranjeiras, o Timoneiros da Viola em Oswaldo Cruz, o Monobloco só na semana que vem) quer é distância.

E a distância mais barata entre o carioca e o vamos chamar de carnaval oficial – seu trânsito imprevisível, suas ruas fedendo a mijo sob um sol pusilânime e os brasileiros meio riquinhos com pele cor de palmito que a cada ano invadem em maior número a cidade – é a sua casa.

Quem nunca experimentou passar o carnaval em casa não sabe nada de metafísica.

Afinal, a gente vive reclamando que não tem tempo de visitar a casa dos amigos. Ou de curtir a própria casa.

Na verdade, o carioca trabalha tanto que o conceito de casa já é algo muito, digamos, intelectivo neste momento.

Pois o carnaval – que a cada ano expulsa mais cariocas das ruas – está aí pra isso.

Pra ficar em casa.

Mas ficar em casa fazendo o quê? Ah, a liberdade física.

Pra começar, esquece o preconceito dos outros. Olha-se para quem passa o carnaval em casa como quem sofre de dengue.

Liga não, é dengo de quem queria te ver na rua ali agregando valor ao camarote.

Segundo passo: deixar dietas para lá. Aliás, quanta gente faz dieta, malha e acorda cedo em dias de carnaval, já repararam? Meu avô me ensinou que exatamente o contrário que se faz em feriados.

Deixar as dietas: é carnaval dentro de você também. Brigadeiro de colher, Cheetos, Baconzitos, ovinhos de amendoim, essa nova Pringle’s sabor asa de frango frito e apimentado, pacotes de Bis, mortadela com limão servida no prato com palitos de madeira.

Esquece copo – menos coisa pra lavar. Tudo em lata. O refri, o suco, a vodca, a cerva. Arroto está liberado. Afinal, só amigo muito íntimo tem a manha de frequentar sua casa no carnaval.

TV. Prato cheio. Mesmo raciocínio de deixar a dieta e o preconceito para lá: veja TV aberta, que vai desde a manhã, acompanhando o carnaval de rua ao vivo do nordeste, passando pela cobertura de bailes decadentes e camarotes na Sapucaí cheio de celebridades pagando mico com camisa de cervejaria.

Rir de coisas ridículas – o feriado que seu espírito precisa.

Rebata com algum filme em preto em branco. Lubitsch ou alguma chanchada funcionam como um Engov para a alma. Tudo o que precisa num sábado de carnaval para recuperar o fôlego é assistir a, por exemplo, “Carnaval em Marte”, de 1995, com Ansemo Duarte.

Domingo é dia da cerimônia do Oscar. Já viu todos os indicados a melhor filme no cinema, reclamando feliz do frio do ar-condicionado? Tem até domingo para fazê-lo.

Se estamos falando aqui de um casal, convém alertar para um preconceito ainda mais feroz. Ah, Fulano não veio ao bloco este ano porque tá casado.

Já repararam nos casais em blocos? Bebendo para esquecer a tensão de encontrar com o ex, ou do outro encontrar com o ex. Se se perdem por 15 minutos, pronto: DR no meio da rua.

Já repararam nos solteiros em blocos? Todos solitários, no fundo sorrindo pra não chorar. No carnaval o folião baixa suas expectativas românticas como se no século 21 o romance já não sofresse tanto preconceito quanto… ficar em casa no carnaval.

O máximo que vão conseguir é um beijo ou um amasso descompromissado de cinco minutos, na melhor das hipóteses. No fundo, ninguém quer nada fundo contigo, pierrô, nem contigo, colombina. Bora beber pra esquecer.

Repare, metade das marchinhas são sobre tristezas, perdas, saudades e desencontros. Não só as marchinhas. No carnaval, metade do povo sai por aí acusando que você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão.

Enquanto nas ruas bebe-se para esquecer que se está sozinho, em casa bebe-se para celebrar a bela companhia que pode no caso ser até você mesmo.

E não se preocupe em perder nada do que se passa nas ruas. Você vai acompanhar o carnaval de todo mundo, e em tempo real, não se preocupe. Instagram, Whatsapp, o Tumblr onçinha cadê você, i hate flash, tá todo mundo aí pronto para expor, em todos os sentidos, suas fantasias.

A Zona Sul do Rio de Janeiro cabe todo em seu smartphone – sem o cheiro de mijo. “Não é que o mundo seja pequeno, a renda é que é má distribuída”. Se amigos foliões insistirem na sua presença, diz que você foi ao bloco fantasiado de múmia, e que quis passar incógnito, e que achou um barato. Minta. É carnaval.

Agora, se chover, caro leitor… Se por acaso o tempo fechar, ficar cinza, a temperatura cair a 18 graus e chover, ah, se isso acontecer, você para tudo o que estiver fazendo, coloca tua melhor fantasia e vai pra rua e canta todo Hino da Bandeira, emenda com o refrão de “Chuva, suor e cerveja”, passe a mão na bunda do guarda e dê cambalhotas no meio fio.

Se chover, será uma demonstração definitiva liberdade sobrenatural dos céus.

E se os céus resolverem também ir pra rua, aí sim: quem é você pra ser do contra?

PS: Saio de casa para pedir benção ao Cacique de Ramos na madrugada da Av. Rio Branco, que este ano será palco de tanta coisa política. No domingo, à partir das 21h, estarei em casa, bem acompanhado, comentando a cerimônia dos Oscars aqui neste blog. Agora que somos íntimos, está convidado.

Foto: Fernando Maia/Riotur

Estações

ter, 18/02/14
por Dodô Azevedo |

Fachada de rua do Cinema do Grupo estação - Foto por Dodô Azevedo

Sendo direto: No próximo dia 3 de abril, o Rio de Janeiro saberá se o Grupo Estação, responsável pela formação cinéfila do carioca nos últimos 30 anos, irá pedir falência definitiva.

O carioca está acostumado a perder ou ver transformadas suas coisas mais cariocas. O Palácio Monroe, o Morro do Pasmado, o Jornal Última Hora, o Tivoli Park, O Circo Voador no Arpoador, a Feira de São Cristóvão, o antigo Maracanã.

Morreram de vez ou reiventaram-se.

Em comum, um espírito imortal.

Que uma grife de cinemas, sozinha, entre para este grupo, é inédito. E diz muito sobre ela.

Quem, nas redes sociais, nos botecos e nos blocos de pré-carnaval está consternado, não é tanto o profissional de cinema, não é tanto quem trabalho no ramo ou é do meio.

Quem mais sentirá falta do Grupo Estação é tudo quanto é carioca. Aquele cujo apetite para a sala escura não se sacia com essas aventuras milionárias hollywoodianas, ou comédias brasileiras televisivas, esses filmes grandes.

Aquele que lambe o beiços é com grandes filmes.

Nas redes sociais, quem lambe os beiços com grandes filmes já se mobiliza para evitar o fim do Grupo Estação. No Facebook já existe página de apoio. No perfil de Marcelo Mendes, à frente do grupo, são muitas as manifestações de solidariedade.

Marcelo respondeu com uma proposta, algo que se pode fazer já: que cada pessoa que tem alguma história com o Grupo Estação, lembre-se, escreva, publique.

As minhãs são muitas. Fui criado nos cinemas do Grupo Estação. Minha vida daria um filme passado dentro de um dos cinemas do Estação. Eu aos 16 anos afogado nos números de Peter Greenaway, aos 18 conhecendo o cinema de preto de Spike Lee, aos 20 encontrando minhas almas gêmeas, os personagens de Jim Jarmush, tão estranhos no paraíso quanto nós que nos vestíamos de preto na cidade do sol para dançar no Cubatão, conhecendo Cassavetes e entendendo que aquilo já não é mais cinema, latindo feito um cão para um tal jovem chamado Tarantino, gritando “Lulaaaa!”, com o coração selvagem de Nicholas Cage e David Lynch, descobrindo o silêncio restaurado de Antonioni e, enfim, já no século 21, assistindo ao renascimento definitivo do cinema brasileiro.

Posso dizer, convicto: sou os filmes que vi na vida.

Em seu filme recente, “O primeiro dia de um ano qualquer”, Domingos Oliveira, há uma cena, dentre tantas, particularmente bonita. O personagem de Domingos dorme durante um filme antigo numa pequena sala de cinema. E é esquecido lá. Ao acordar, comenta algo como se existe um lugar digno para um último repouso, é o cinema.

Não quero viver numa cidade onde uma loja da Apple abre com cariocas cantando “sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor” e no mês seguinte cinemas fecham.

Mas morrer, bem velhinho, dentro de uma sala de cinema do Grupo Estação, assistindo a qualquer filme que esteja passando por lá, seria morrer satisfeito.

Morrer de ver, ou reinventar-se; afogar-se em números ou permanecer perto do coração selvagem; o que temos hoje, de certo, como consumado, é que a história do Grupo Estação é filme grande e um grande filme.

Fim?

A vitória da internet

qui, 16/01/14
por Dodô Azevedo |
categoria Cinema, Cultura

Um dia para entrar na história da indústria cinematográfica. Embora o anúncio dos filmes que irão concorrer ao Oscar aconteça todo ano, desta vez algo bastante diferente e silencioso ocorreu.

A escolha de um filme que não foi exibido em salas de cinema. A escolha de um filme que foi exibido na internet.

“A praça”, documentário da egípcia Jehane Noujaim, conta a história do epicentro da Primavera Árabe, a Praça Tahir, no Cairo.

Após ser premiado em Sundance e Toronto no ano passado, foi comprado pela Netflix.

“Deixa que eu exibo esse filme” – disse a companhia.

“Oba. Agora sim muita gente vai ver o filme. Agora temos chances no universo político financeiro dos Oscars” – reagiram diretora e produtores do filme.

Não que a academia já esteja abraçando a internet. Para ela, filme é o que passa em salas de cinema. E para qualificar-se ao Oscar, “A praça” ficou uma semaninha em cartaz num cineminha poeira em Los Angeles.

Enquanto milhões assistiam ao filme pela internet.

Há, em todos indicados ao Oscar neste ano, uma coisa em comum: a vontade de dar uma sacudida, de comportar-se de um modo diferente.

Mesmo que haja um mais do mesmo. “Gravidade”, uma quase refilmagem de “Náufrago”, aquele em que Tom Hanks fica amigo de uma bola de vôlei numa ilha deserta, traz uma vontade de visualmente ser alguma coisa diferente. E sua última e constrangedora meia hora, um melodrama trash, pode dar estatuetas para o filme.

Há, também, o-filme-onde-o-ator-emagrece-e-fica-quase-irreconhecível-para-interpretar-um-doente-terminal-numa-história-edificante – por isso, Matthew McConaughey pode levar por “Clube de compras Dallas.”

Há o “A Lista de Schindler” de 2014 também. “12 anos de escravidão” é um filme sério e só por querer dizer: “Antes de pensarmos em dramas passados no espaço vamos primeiro resolver nossos problemas na terra, aqui na América, falar a sério sobre os anos de escravidão?” – merece prêmios. Não perca o trabalho de figurino da grande mestra Patricia Norris, também indicada este ano.

Há o-filme-com-uma-grande-dama-da-dramaturgia-de-língua-inglesa – “Philomena” está lá. A trilha de Alexande Desplat, compositor que concorre pela 6ª vez ao Oscar, vale o filme.

Há a tradicional nominação de Oscar de roteiro original para Woody Allen, recordista na matéria, e talvez seja ele e Lars Von Trier, provável indicado no ano que vem por “Ninfomaníaca”, os maiores escritores vivos – posto que tudo: textos teatrais, romances e roteiros de cinema, seja literatura.

Há, também, o Scorsese original versus o Scorsese genérico-hipster. “Trapaça”, o filme de David O. Russel é bacana, mas o diretor deveria ter sido premiado quando ainda era uma novidade, com o soberbo “Três Reis”, ambientado na guerra do Iraque e que tem uma das aberturas mais engenhosas. “Are we shooting?” – pergunta o fuzileiro naval ao seu capitão, e ao mesmo tempo ao diretor atrás das câmeras. Shooting, em inglês, significa tanto ‘atirar’ quanto ‘filmar’.

“O Lobo de Wall Street”, do Scorsese orginal, é, no fundo, sobre a relação que o diretor manteve com a cocaína durante décadas. Cheiradaço, o filme tem um corte original de 5 horas. Por questões de mercado, a versão que chegou aos cinemas tem 3.

O filme entra para a história oficial como o roteiro com a maior quantidade de palavras ‘fuck’ a ser indicado a um Oscar.

522 vezes a palavra é dita em “O Lobo de Wall Street”. O filme tem 180 minutos.

Filme estrangeiro. Temos, como favoritos, “A Caça” e “A Grande Beleza” os filmes que, em Cannes de 2013, comentávamos serem bons filmes, mas mais com cara de Oscar de filme estrangeiro do que de Palma de Ouro. Se, no ano passado, o Oscar premiou “Amor”, justamente o vencedor do prêmio máximo em Cannes, era porque o filme de Michael Hanake era mais ‘vendível’, no pega para capar que é o processo de sedução dos acadêmicos americanos.

Se “A grande beleza” ganhar o Oscar, o cinema italiano empatará com o cinema francês em número de prêmios. França tem 13, Itália 12 Oscars de melhor filme estrangeiro.

Não se enganem pela ausência do Brasil na lista. O cinema brasileiro de arte nunca esteve tão bem lá fora. Toronto, Roterdã e Berlim estão com o melhor de nossa produção recente e o estupendo “O Som ao Redor” teve uma cópia recentemente comprada pelo MOMA, em Nova York. Para os curadores do MOMA, “O Som ao Redor” já é, e tão cedo, um dos filmes indispensáveis da história do cinema mundial.

Há na lista de hoje, acintes imperdoáveis.
1) Robert Redford, ex-queridinho da academia, favorito até anteontem para melhor ator por “Tudo está perdido”, simplesmente fora da lista? Ciúmes de seu cada vez mais prestigiado Festival de Sundance?
2) James Gandolfini, o Tony Soprano em seu último papel, ele mesmo um delicioso… sopro, em “Enough Said”, desconsiderado? Ciúmes do sucesso de Gandolfini e dos Sopranos na tevê?
3) “Inside Llewyn Davis”, a nova obra prima dos irmãos Coen, fora de tudo, melhor filme, roteiro e direção? A academia resolveu até não fazer o que fez com Jennifer Hudson e deixar consagrar Justin Timberlake, o mais querido do momento?
4) A Pixar fora da competição em melhor animação?!
5) Thelma Schoonmaker, a melhor montadora do mundo, fora da competição por “O Lobo..”?
6) E finalmente, Paul Greengrass, o diretor que hoje todos imitam, e Spike Jonze fora da lista?!

“Her”, de Spike Jonze, é o grande filme desta lista toda. A história de um homem que se apaixona por um sistema operacional programado para ter voz e personalidade femininas é sim o que estão dizendo por aí: o filme definitivo sobre a Singularidade Tecnológica, denominação dada ao momento em que, no futuro, a inteligência artificial terá superado a inteligência humana. Scarlett Johansson empresta sua voz rouca ao sistema operacional, e por isso mereceria um Oscar – compor um personagem complexo usando apenas a voz é um esforço maior que viver um doente terminal ou alguém com paralisia cerebral no cinema. É de uma beleza assustadora quando a mulher/sistema operacional informa que o amor acabou porque chegou a hora dela se reproduzir, sozinha, para uma existência mais evoluída.

Seguimos, portanto, aguardando o dia em que os indicados e premiados ao Oscar serão escolhidos por inteligências artificiais, certamente menos artificiais do que as humanas que hoje fazem suas escolhas.

Quando isso acontecer, num futuro qualquer, o dia de hoje será lembrado como o dia em que um diretor poderá dizer, por exemplo, a uma atriz consagrada: “Vem filmar comigo. Se não conseguimos distribuidora e salas de cinema para exibi-lo, colocamos ele na internet. E você pode ganhar um Oscar por isso.”

Há uma discreta revolução no ar.

Apenas o tempo dirá se ela é legitima ou artificial.

Imagem: O ator Chris Hemsworth e a presidente da Academia de Hollywood, Cheryl Boone Isaacs, anunciam os indicados ao Oscar 2014 (Vince Bucci/Invision/AP)

Uma mulher qualquer

qua, 18/12/13
por Dodô Azevedo |
categoria Cultura, Música, Rio

Rio de Janeiro, dezembro de 2013.

(Foto: Daniela Dacorso / Agência O Globo)

 

Desde que participou no último domingo do Projeto Aquarius, tocando ao piano o Concerto 21 em dó maior, de Mozart, acompanhada da Orquestra Sinfônica Brasileira, Ana Paula Araújo (foto acima), a apresentadora do Bom Dia Brasil, não ouve outra coisa:

“Não sabia que você tocava piano! Como você consegue fazer tantas coisas ao mesmo tempo?”

Ana Paula tem ouvido isso de desconhecidos nas ruas, de amigos, de parentes distantes, desde que as imagens de sua apresentação foram veiculadas na TV.

Todos surpresos.

Como pode uma mulher, uma única mulher, ser jornalista, apresentadora de TV, trabalhar 10 horas por dia, ter sido a repórter da matéria que deu o único Emmy ao jornalismo das organizações Globo, ter uma filha, que é uma espécie de super Emmy, educar a filha sem o auxílio de babás, ou, pra rimar, nannys, cuidar de si própria, ir pra academia, ficar gostosa, se entender com mil cremes, ficar linda, ir à praia, ler John Fante antes de dormir, ir ao cinema assistir à última Palma de Ouro em Cannes, ir para a balada dançar o último single do Daft Punk, jantar uma noite no Gero e na outra saborear as coxinhas de galinha do Bar da Gema, na Tijuca, conhecer e ser bem vinda em todas as quadras das Escolas de Samba, em todos os blocos de Carnaval, socorrer amigos quando estão deprê, dar-se o direito de ter de vez em quando sua própria deprezinha, saber contar piada, saber gerenciar sozinha sua vida financeira, e ainda por cima… tocar piano?

Como pode uma única mulher fazer isso tudo?

(Sabe-se que, se um homem aparece com muitos talentos, não há espanto).

As respostas para a pergunta “como pode uma única mulher fazer isso tudo?” são dois jogos de palavra muito simples:

1) Nenhuma mulher é uma só.

2) E por isso, todas as mulheres são únicas.

E paradoxalmente vítimas, como Ana Paula, destas mesmas respostas imperiais.

Porque todos nós, homens, mulheres, velhos e crianças tememos tudo o que é único.

Exemplo: não há mulher menos desejada por homens do que mulheres mais capazes do que eles.

Elas acabam, então, não apenas diminuindo-se, não apenas precisando redimensionar-se para caber  no gosto e na falta de coragem dos sujeitos.

Pior.

Elas acabam se transformando numa mulher só.

Numa mulher apenas.

E, enfim, só.

Sós. Até que acontecem momentos assim, em que resolvem mostrar que, além de tudo, sabem, por exemplo tocar piano. E assim, descobrem que não são apenas uma só.

São várias.

E e estas várias mulheres, a melhor companhia que se pode ter para si própria.

Embora a maioria das mulheres não suporte a si própria.

Duas horas antes de Ana Paula subir ao palco, este blog esteve nos bastidores do Projeto Aquarius e invadiu um momento íntimo de uma das Ana Paula Araújo que vivem dentro da Ana Paula Araújo: o momento em que, sozinha, só, o piano e ela, acontece o aquecimento, o reconhecimento dos dedos com as teclas.

Assim que começou a tocar o piano, reparei que aquela Ana Paula ali, na minha frente, estava muito, muito tensa.

Mas estar tensa é normal. O problema é que ela, a duas horas da apresentação, estava é com medo.

Medo do sucesso, claro.

Este mesmo medo que você, leitor, tem em todas horas pares da sua vida.

Chamei a atenção desta Ana Paula a respeito de ser bom ainda existirem coisas que nos fazem sentir medo de sucessos. É sinal que a aventura ainda não acabou para nós.

Em seguida, informei que ela estava tocando o piano como estivesse se preparando para um terrível obstáculo.

Quando, na verdade, era um presente.

Um convite do próprio maestro da incrível Orquestra Sinfônica Brasileira.

Acontece que a gente tem esse costume besta de confundir presentes com terríveis obstáculos.

“Então, Ana Paula: chegou a hora de você decidir como vai se relacionar com um presente.”

Ela ouviu e falou: “É, acho que estou mesmo com este medo tolo.”

De novo, informei: todo mundo sente isso o tempo todo.

Qualquer pessoa.

Então, todo o peso do mundo saiu dos ombros desta Ana Paula quando ela, enfim, entendeu que era, ufa, uma mulher qualquer.

Única.

Como qualquer mulher.

(Você pode ver a apresentação de Ana Paula aqui)

Mandela, eu, minha mãe e o Samba

sex, 06/12/13
por Dodô Azevedo |

O colunista Dodô Azevedo no colo de sua mãe em 1972 – Foto Arquivo Pessoal

Armação de Búzios, 6 de dezembro de 2013

 

No dia 07 de dezembro de 1971, minha mãe fazia aniversário.

Para ela, não houve bolo nem vela para assoprar, nem pessoas em volta cantando “parabéns pra você”, não houve casa cheia de gente comendo e bebendo.

É que minha mãe passou o aniversário numa maternidade, dando à luz seu primeiro filho.

Eu.

No momento em que nasci, numa maternidade do bairro de Laranjeiras, perto dali, meu pai comemorava o nascimento do primeiro filho bebendo numa roda de samba com amigos, num boteco da rua General Glicério, onde funcionou de 1880 a 1930 a fábrica de tecidos Aliança, cujos trabalhadores fundaram dois dos primeiros ranchos carnavalescos da cidade, o União Aliança e o Arrepiados.

Minha mãe diz que eu nasci arrepiado.

O rancho carnavalesco Arrepiados desfilava com as cores Verde e Rosa, cores que seriam adotadas pela escola de samba Estação Primeira de Mangueira.

Nasci mangueirense.

Com meu nascimento, minha mãe imediatamente largou o trabalho (um cargo vitalício em um emprego público) e foi viver para administrar a família. Quando parou de trabalhar, surtou. Três anos depois, ela estava desempregada, com dois filhos (um caçula nasceu um ano depois de mim), vendo sua beleza e juventude indo embora (nos anos 70, não existia esse papo de academia, malhação e muito menos plástica para as mulheres de classe média).

No meu aniversário de quatro anos de idade, minha mãe deu a si própria um presente de aniversário: abandonou a família e foi viver a vida que lhe havia pela frente.

Jack Kerouac e os beatniks faziam isso (ter filhos e abandoná-los para cair na estrada) a torto e a direito. Todo mundo acha bonito. Mulher fazer isso, não.

Meu pai, infantilizado pelo rancor, passou a ouvir samba em casa todos os dias. Sentava numa cadeira de madeira, bebia, praguejava, manipulava a vitrola e cantava em voz alta sambas de Candeia, Elton Medeiros e Geraldo Pereira.

Tirando o básico, o obrigatório na formação do caráter de meninos, que era levar os filhos todos os domingos ao Maracanã, meu pai tampouco queria saber de mim. Passava as horas de folga do botequim para a vitrola – quando arrumava outra mulher para amar e brigar, amar e brigar, ficava em paz.

Paz é isso: arrumar uma mulher para amar e brigar, amar e brigar – aprendi.

Comigo e com meu irmão estava tudo bem. Passávamos os dias jogando bola no campinho de terra da rua Belisário Távora, soltando pipa com a garotada da favela do morro Dona Marta, namorando meninas embaixo da escada do bloco A do prédio Os Três Mosqueteiros, pegando jacaré em dia de semana na praia do Leme, passando por baixo da roleta do ônibus, bebendo mate em garrafa usada de água mineral (uma moral que os vendedores davam pra garotada sem grana na praia e que não pesava no bolso porque a empresa cobrava cada ambulante por copo, e não por litro vendido, veja só), e caçando tatuís para fritar e comer com manteiga e farinha antes do jantar.

Eu era um garoto que sabia soltar pipa, dar passe de trivela numa pelada, desabotoar o sutiã de uma menina curiosa, e pegar jacaré.

Um carioca gema dura. E carioca gema dura não sente falta de mãe. Para entender a alma do Rio de Janeiro, tem que se entender que esta cidade é, desde sua fundação, uma uma feliz e desencanada órfã de mãe.

A minha eventualmente aparecia. Quase sempre no dia 7 de dezembro. Sumia meses, passava uma época em comunidade hippie na Amazônia, outra com uma turma barra pesada do pó da Zona Sul, ou sumia pros lados da baixada fluminense, outra em Nova Iorque, de onde trouxe meu primeiro livro de poemas do Paul Laurence Dunbar  e, em sua mais interessante encarnação, chegou a viver no aterro do Flamengo, com um grupo de mendigos, “observando hipócritas, junto à fogueirinha de papel”. Ela era apaixonada pela canção “Não chores mais”, a adaptação de Gil para “No Woman no Cry”, de Bob Marley.

Em 1991, apareceu de supetão, vestindo uma camisa vermelha do partido comunista e me levou para ver Nelson Mandela na Praça da Apoteose. Enquanto Mandela falava, ela, na arquibancada, chorava, me abraçava e pedia perdão.

Minha mãe chorava muito quando reaparecia para a família. E invariavelmente pedia perdão – essas coisas que não se pede, se conquista. Chorava aos joelhos dos filhos, mesmo nós com 22, 23 anos na cara. Implorava por perdão, bêbada, fraca.

E falava (fala até hoje): “Luiz Fernando, seu filho de uma pu$%ta! Sabia que você é o melhor e mais maravilhoso e o mais terrível presente de aniversário que uma mulher pode ganhar?”

Sim, meu nome é Luiz Fernando.

Apesar destes raciocínios tão fascinantes que minha mãe tinha quando bebia e vivia crises de culpa em nosso aniversário, estes eram os únicos momentos em que meu gigante amor e fascínio por esta mulher arrefecia: quando ela fraquejava.

Minha relação com a cidade também é a mesma.

Quando fraqueja, perde a marra, sente culpa, o Rio de Janeiro é pra mim um lugar tão desinteressante quanto Cleveland.

Neste século, minha mãe, e o Rio e o samba sossegaram um pouco. Ela teve um insight genial: passou a, toda vez que me encontra, dizer aos berros para todos ouvirem:

“A única mulher que pode chamar este homem de filho da p%$ta sou eu! Mais ninguém! Mais ninguém, ouviram?!”

Ouviram?

Da mesma forma, os únicos que podem chamar esta cidade de “uma cidade filha da p%$ta” são os cariocas.

Eu acho minha mãe o máximo, mas ela não é feliz.

E muitas vezes tenho também a mesma relação com esta cidade: acho ela o máximo, mas desconfio de sua felicidade aparente.

Amanhã é dia 7 de dezembro. Aniversário de minha mãe, meu, e do Samba. Tudo bem, o dia oficial do samba foi dia 2/12, mas finalmente tiveram a manha de estender as comemorações e só fazer o Trem do Samba – evento para 30 mil pessoas que mobiliza todas as linhas de trem e o bairro de Oswaldo Cruz – num sábado, não só para não atrapalhar o trabalhador como para incluí-lo de vez neste que talvez seja o evento mais bonito, e o mais filha da p%$ta, desta cidade.

O Trem do Samba é realizado desde 1991 e reúne cantores, músicos e populares em rodas de samba dentro dos vagões de trens que fazem, sem paradas, o trajeto Central do Brasil – Oswaldo Cruz. Houve um tempo em que o Samba era proibido na cidade. Então os primeiro sambistas vinham tocando dentro dos vagões de trem, vindos de Oswaldo Cruz e, chegando à cidade, paravam de tocar e escondiam os instrumentos da polícia.

O evento Trem do Samba trata-se, portanto, de uma viagem de volta, uma viagem pra dentro, uma das vinganças mais bonitas – e cariocas – que a história já produziu contra algo que foi proibido.

Já não vou ao Trem do Samba desde 2004, quando (não sei ainda é assim), dentro de cada vagão, ia uma velha-guarda de uma escola de samba tradicional. Você escolhia se queria fazer o trajeto ouvindo os velhos sambas do Império, da Portela ou Salgueiro…

O trem saía da Central do Brasil assim: lotadíssimo, e polifônico, cada vagão festejando suas melodias.

A exata expressão desta incrível cidade filha da pu%$a.

Quando o trem começava a andar e você sentia a falta da Estação Primeira de Mangueira entre as escolas, ele, o trem, parava repentinamente. Logo no início da viagem. Logo na primeira estação. E, surpresa: se juntava ao comboio a velha guarda da verde e rosa, sendo saudada por todas as escolas, em todos os vagões, ao som de “Mangueira, teu cenário é uma beleza. Chegou, a Mangueira chegou…”

Todo mundo chorava.

E chorar também é uma viagem pra dentro.

Como disse, não sei se ainda é assim. Só sei que amanhã, às 17h, embora eu não veja minha mãe há um bom tempo e faça apenas alguma ideia de onde ela viva, estaremos lá, na Central do Brasil, pois esteja onde ela esteja ela não perde uma edição do Trem do Samba, prontos para comemorarmos e envelhecermos em paz.

Paz é isso: arrumar uma mulher para amar e brigar.

Amanhã, estaremos prontos para mais uma viagem de fora pra dentro.

Nós, os homenageados do dia.

Mandela, eu, minha mãe e o Samba.

Lulu

seg, 02/12/13
por Dodô Azevedo |
categoria Cultura, Música, Rio

Lulu Santos em 1980. Foto Antônio Guerreiro: Divulgação

 

Rio de Janeiro, dezembro de 2013.

 

Passou-se a última semana falando-se neste tal de Lulu, aplicativo para celulares. Só me vinha à cabeça Lulu Santos. E de como o mundo seria melhor se passássemos toda a semana falando deste Lulu e não daquele.

Foi Lulu Santos quem deu nome à minha primeira banda de rock. Em 1984, Léo Gandelman era saxofonista de Lulu e tio de nosso guitarrista, Lula Carvalho, hoje fotógrafo de cinema de filmes como “Cidade de Deus” e a nova versão de “Robocop”. Lulu Santos e banda faziam uma temporada de shows de divulgação do LP Tudo Azul na danceteria Mamute, na Tijuca.

Danceteria era como chamávamos os lugares que nos anos 70 as pessoas chamavam de boate. Nos 90, clube. Na primeira década dos anos 2 000, casa. E que, hoje em dia, não se chama de nada. Onde será o show? Ah, lá no Circo Voador.

Os shows de Lulu na danceteria Mamute começavam cedo. Para a garotada poder ir. Então você via, na plateia de uma mesma boate/casa/clube/sem-nome, garotinhas new wave de 13 anos, surfistas de 19 e hippies maconheiros de 35 cantando coisas como “tudo azul / todo mundo nu”.

Eram tempos modernos.

E aquelas melodias, aquelas letras. A língua portuguesa descomplicou-se quando santo Lulu veio com mensagens tão diretas e descomplicadas, a tal da simplicidade onde mora a filosofia menos vã, o tal do zen-surfismo como uma onda no mar.

O Tao.

É preciso entender muito de música para compreender que o pop perfeito é mais difícil e mais raro de ser encontrado do que erudições harmônicas. É mais difícil compor uma canção de Lulu Santos do que uma boa peça para um quarteto de cordas, um trio de jazz ou uma intervenção dodecafônica – modalidades geralmente associadas a inteligência e superioridade.

Embora “She Loves you yeah yeah yeah” ou as canções redondas da banda escocesa Teenage Fanclub sejam, antes de obras de um músico virtuoso, produtos de um espírito sofisticado.

A alma simples e por isso sofisticada de Lulu Santos me fez aos 14 anos dançar colado cheirando os cabelos de uma mocinha da mesma idade, os dois de olhos fechados, ouvindo verdades que só se amplificam quanto mais vivemos: “Não existiria o som se não houvesse o silêncio. Não existira luz se não fosse a escuridão. A vida é mesmo assim. Dia e noite. Não e sim.”

Um ensinamento zen que de tão simples parece brega. Mas se brega fosse de fato, não seria algo tão difícil de ser verdadeiramente aprendido.

Se falássemos menos do aplicativo de celular e mais de Lulu Santos, estariam resolvidos todos os problemas do Oriente Médio, por exemplo, e venderia-se menos Rivotril aqui na cidade, e se entenderia mais esta vida tão aparentemente complicada, aparentemente insolúvel.

E se isso que escrevo também parece brega para um raciocínio acadêmico ocidental, pior para o raciocínio acadêmico ocidental. Lulu Santos sofreu (e sofre) um preconceito besta (que todo pop perfeito sofreu, ou tudo o que é perfeito sofreu) nada velado, de quem acha que tudo o que é simples é necessariamente superficial e tudo o que é profundo é necessariamente mais inteligente.

Pois aqui vai uma novidade: se Zenão, discíplulo de Parmênides, contou com os Eleatas para desempinar o nariz dos pluralistas e elaborou a primeira teoria dos paradoxos, o fez ao descobrir que os raciocínios mais corajosos do ponto de vista da Matemática e da Filosofia são os radicalmente transparentes: “Tolice é viver a vida assim, sem aventuras. Deixa ser pelo coração. Se é loucura, então melhor não ter razão.”

E tem os solos perfeitos de Lulu. E vocês aí falando em solidão. Num aplicativo de celular que quer aplacar solos.

Show de Lulu Santos em 1984 na danceteria Mamute na Tijuca. O fato de Lulu fazer música para a senhora do Grajaú, para a menina da Urca, para o maconheiro de Niterói, para o hipster da Gávea, para a lavadeira que pega o trem todo o dia pra cozinhar para o hipster da Gávea ainda me diz mais sobre a existência curativa de Lulu Santos:

Neste fim de semana, foi inaugurada a Árvore de Natal da Lagoa. Pela quarta vez, Maria Hermínia da Silva, 58 anos, saiu de Duque de Caxias com oito amigas, uma caixa de cerveja e petiscos num isopor para assistir ao show. Imediatamente vi em meu feed no Instagram e Facebook fotos de moradores da Zona Sul aproveitando-se do incômodo do engarrafamento para coisas do tipo: “Vai começar o inferno.”

Li ontem na revista de domingo d’O Globo a excelente entrevista feita por Mariana Filgueiras com a antropóloga Julia O’Donnel: “Praia democrática é mito”, disse a pesquisadora, antes de emendar: “Se um grupo de meninos negros chega no posto 10 fazendo a festa, no dia seguinte as pessoas irão se mudar para o posto 11″.

Por muitas vezes prefiro a literatura brega de Bret Easton Ellis, “People are afraid to merge”, aos floreios de David Foster Wallace, ou da nova literatura brasileira, tão fã de DFW e, por isso, tão Zona Sul.

Lulu Santos, além de não ter medo de se misturar, tem a receita da mistura – Tim Maia e Jorge Ben também têm, mas são extraterrestres, não contam. E sua poética, dos versos aos solos, desenha generosamente um mapa da mina que muita gente boa já entendeu que é o que há em terapia para tudo.

“Só falta reunir a Zona Norte à Zona Sul.” – ele canta sorrindo desde 1984.

Não tive tempo de ver nenhuma edição do programa The Voice Brasil. Mas dizem que Lulu é a alma do show. Acho que li no Twitter semanas atrás Boninho chamando-o de gênio. Andando por Manhattan há alguns anos, Lulu Santos olhou pro céu, pensou, e cunhou a expressão: “Mãe Atã”. E eu não vi Woody Allen, Lou Reed, ou Paul Auster resumir aquela cidade de modo tão preciso e glorioso em apenas duas palavras. É provável que Boninho tenha razão.

Um dia, quando pararmos de achar que a culpa dos arrastões em Ipanema é da quantidade de ônibus que vêm da comunidade do Alemão ou concluirmos ser estranho a FIFA achar que Lázaro Ramos e Camila Pitanga não são muito a cara do Brasil, talvez mereçamos uma definição, assim, um diagnóstico em duas palavras dos Santos de Lulu.

Em 1984, após uma das apresentações na danceteria Mamute, fomos, eu e minha banda, ao camarim. Moleques felizes e sem vergonha, pedimos para Lulu batizar a banda. Ele pensou, pensou, pensou. Aí sorriu. E anunciou em voz alta:

“JA SEI! OS CHOCANTES!”

Sim. Os Chocantes.

Eu estava fadado ao pobre do Cinema, à pobre da Filosofia e ao pobre do Jornalismo.

E a um dia devolver:

#Chocante é você, Lulu.

Distorções

sex, 22/11/13
por Dodô Azevedo |

Rio de Janeiro, novembro de 2013.

 

Recebo em casa as 244 páginas da belíssima edição ampliada e revisada do livro “Niterói Rock Underground 1990-2010″, do jornalista Pedro de Luna.

Editado de forma independente, projeto gráfico destes raros de ver no mercado editorial brasileiro (lembra as coisas de John Barnett para a Voyageur Press), toneladas de fotos e reproduções de flyers, cartazes e fanzines de um tempo onde o ‘faça você mesmo’ era o natural da vida.

E, por isso, a vida era mais natural.

Ao lado dos livros “Esporro”, de Leonardo Panço, e “Memórias não póstumas de um punk”, de Larry Antha, “Niterói Rock Underground 1990-2010″ materializa um momento cultural muito rico, porque bruto e puro, que a grande mídia na época não cobriu.

Muito pelo contrário: jornalistas diziam que rock bom era o que vinha de fora.

Leonardo Panço, autor do “Esporro”, explica melhor aqui.

 

Produções independentes, estes três livros obrigatórios também corrigem outro cacoete que a grande mídia ainda hoje não perdeu: a de se ater apenas à cena musical da Zona Sul do Rio de Janeiro ao editar histórias sobre novas cenas culturais.

De quebra, ainda reabilita o balneário de São Sebastião como o maior, ou ao menos o mais bem documentado em livros, centro de rock de garagem do Brasil nos anos 90 – coisa que quem frequentou as garagens da Baixada Fluminense, e de Niterói, sempre soube.

Rio de Janeiro, túmulo do Rock? Só para quem não conhece a cidade além dos limites da Zona Sul ou não leu a incrível produção cultural desta gente bronzeada no século XXI.

Aos sábados à noite, os escombros mal iluminados da rua Ceará, na Zona Norte do Rio, ponto de encontro da garotada que até hoje curte rock menos domesticado, de paladar avesso à farofa, ficam mais lotados que o Baixo Gávea, na Zona Sul do Rio.

Ah, estes conceitos: iluminação, paladar, farofa, balneário, ‘faça você mesmo’.

Imagens:
1 – Capa do livro ‘Niterói Rock Underground 1990-2010′/Dodô Azevedo
2 e 3 – Fotos do livro ‘Esporro’/Divulgação

O último espanto

seg, 11/11/13
por Dodô Azevedo |

Rio de Janeiro, novembro de 2013.

 

 

O hoje nos espanta?

Já vimos e ouvimos de tudo nesta vida. Se amanhã um disco voador aparecer nos céus da cidade, não ficaremos tão espantados quanto esperávamos. Já vimos discos voadores o suficiente no cinema.

Violência braba já não nos comove também. A expressão “crime bárbaro” já não quer dizer muita coisa nas manchetes.

Adjetivos precisam ser gritados se quiserem causar impacto. O disco do Caetano não pode se chamar “Abraço”, tem que se chamar “Abraçaço”.

Hoje qualquer coisa é maravilhosa, incrível, genial.

Qualquer coisa é terrível, horrorosa.

Hoje, sinistro e bizarro são gírias.

Quando muito se tem, perde-se o gosto do objeto. Acostuma-se.

Sonha-se em comprar um apartamento de frente para o mar e dois anos depois enjoa-se da vista.

Todos os dias, aquela vista toda ali, disponível, sem que seja preciso fazer esforço, de graça.

Marilyn Monroe, aos 30 anos, podia ter todo o homem e mulher que quisesse. Casou com o Arthur Miller, intelectual 11 anos mais velho, 11 vezes mais feio que James Dean.

E se daqui a 11 anos alguém inventar o carro que voa, não ficaremos espantados. Faremos é fila nas concessionárias.

Quando inventarem o carro que voa, de tão acostumados com a ideia, afinal crescemos vendo os Jetsons, chamaremos o invento apenas de “carro”. O último “carro que voa”, o último espanto, foi inventado no final do século XIX. Era um negócio chamado toca-discos.

Um disco continha algo gravado. Um discurso, uma canção, uma ópera.

Mas algo gravado antes em algum lugar que não era ali, a sala de estar onde agora escutava-se o conteúdo.

Até então, ou nos 200 mil anos anteriores, quando se queria ouvir uma ópera, tinha-se que ir até o teatro, sentar-se a alguns metros dos músicos, tirar a cera dos ouvidos.

Com a invenção do disco, uma orquestra inteira tocava ali, na sala de estar. Na hora que bem se entendesse. Quantas vezes se quisesse.

Esse foi o último espanto, o último e verdadeiro susto que tomamos.

No último domingo aconteceu a VII feira de Discos de Vinil do Rio de Janeiro. Vendedores do Rio e de São Paulo reunidos, quase 30 mil álbuns à venda.

Muita gente de 17, 20 anos comprando suas primeiras bolachas.

Duas mil pessoas passaram pelas dependências do Instituto Bennett, no Flamengo, onde aconteceu o evento, duas vezes maior do que o do ano passado.

Ao contrário do que se costuma dizer, estas 2.000 pessoas não estavam lá por nostalgia ou por conta da qualidade de som do vinil.

Embora, quando se ouve um disco, ouve-se com atenção genuína, porque é algo que nos deu trabalho ter, que é algo que nós dá trabalho manter, que precisamos levantar-nos para trocar o lado B para o Lado A etc. E conseguir atenção genuína de alguém, hoje, é ouro.

Ao contrário do que se costuma dizer, estas 2.000 pessoas não estavam lá por causa da história da arte e do design do século XX exibidas nas voluptuosas capas de discos, enormes num mundo onde quanto menor e mais portátil o objeto, mais valor e utilidade ele tem.

Embora os álbuns sejam uma óbvia, porém, ainda útil metáfora da vida, dividida em lado A e lado B. Metáfora ainda mais útil se pensar que a vida é nem um lado nem outro, não é a parte que se pode tocar com a agulha do toca-discos, e sim o fino recheio espremido entre um um lado e outro. Coloque um disco de lado, observe a fina espessura dele. Estará contemplando a vida.

Mas não, estas 2.000 pessoas não estavam atrás de nada disso.

Estavam atrás de algo ainda mais maravilhoso, incrível, genial, terrível, horroroso, sinistro e bizarro.

Estavam todos é atrás do espanto perdido.

Foto: Dodô Azevedo

Lou Reed: Vida e Veludo

dom, 27/10/13
por Dodô Azevedo |
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Rio de Janeiro, outubro de 2013.

Lou Reed e Dodô Azevedo em São Paulo, 2010.

Por que se deve lamentar a morte de um artista?

Lou Reed foi líder de uma banda The Velvet Underground que, a partir de 1964, foi responsável pelo fim da cultura hippie, aquela que pregava paz, amor, e que tudo iria acabar bem.

Nada nesta vida acaba bem – é um bom resumo da extensa obra, das inúmeras e longas letras das canções que Lou Reed escreveu.

O Rio de Janeiro é famoso por seus cronistas: nos textos e observações dos mestres Rubem Braga e Antônio Maria, a cidade aparece graciosa, cheia de delicadezas e pessoas com boas intenções.

Lou Reed foi o cronista maior de Nova York. Falava de drogados, prostitutas, cafetões, travestis, traficantes, assassinatos, overdoses, sexo sadomasoquista, ressacas. Foi o primeiro a popularizar o tema. A informar ao mundo que nele existe uma bad vibe invencível, eterna. E que nada acaba bem.

Por que deveria-se então lamentar a morte deste artista?

“I’ll Be Your Mirror”, “Eu serei o seu espelho”, canção que explicita a profissão de fé de Lou Reed em não ser mais que o reflexo amplificado que a visão percebe, é um bom exemplo da imprescindibilidade das energias perversas para entender o universo dentro e fora de nós mesmos.

A física moderna ensina que um átomo é composto de partículas que se comportam de modo perverso, violento. A Terra, com seus continentes e mares, foi formada a partir de violentas e épicas convulsões tectônicas. Há sangue e suor e urros de dor na coisa mais maravilhosa que um ser humano é capaz de fazer: parir.

Tudo na vida, afinal, existe porque ela se resolveu, sempre se resolve, exercendo o seu lado selvagem.

“Walk on The Wild Side”, a canção mais famosa de Reed, título que veio da gíria “Take a Walk on The Wild side!/Faça uma loucura!” que os travestis usavam em Manhattan para persuadir os engravatados caretas que passavam nas ruas, está mais perto do coração selvagem do que o romance de estreia de Clarice Lispector.

Reed não era um desencantado como DostoiévskiEle celebrava a perversão humana, nos apontava a poesia contida nos defeitos, desatinos, dores, convulsões e violências da vida. E o fazia com calma e doçura.

Há calma e doçura na sordidez da vida.

As melodias e os arranjos que compunha para suas letras, sempre muito simples, dois, três acordes, sempre muito acessíveis, e cheios de ruídos e distorções e barulhos furiosos, foram fundamentais tanto para a alta cultura quanto para cultura pop que viriam depois.

Há ruído, distorções e barulhos furiosos nesta vida. Entender e metabolizar isso torna a vida, ela inteira, terrível e maravilhosa, finalmente acessível.

Por isso, mesmo que você pouco tenha ouvido falar do artista, Lou Reed era o o seu, o meu, o nosso espelho.

E por isso deve-se lamentar sua morte como quem lamenta a morte de um átomo, ou de um planeta, ou a queda de um espelho no chão.

7 anos de azar.

Agora é juntar os cacos.

E entender que no fundo de tudo, das coisas mais tristes e das coisas mais desgraçadas, há um veludo macio.



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