A vitória da internet

qui, 16/01/14
por Dodô Azevedo |
categoria Cinema, Cultura

Um dia para entrar na história da indústria cinematográfica. Embora o anúncio dos filmes que irão concorrer ao Oscar aconteça todo ano, desta vez algo bastante diferente e silencioso ocorreu.

A escolha de um filme que não foi exibido em salas de cinema. A escolha de um filme que foi exibido na internet.

“A praça”, documentário da egípcia Jehane Noujaim, conta a história do epicentro da Primavera Árabe, a Praça Tahir, no Cairo.

Após ser premiado em Sundance e Toronto no ano passado, foi comprado pela Netflix.

“Deixa que eu exibo esse filme” – disse a companhia.

“Oba. Agora sim muita gente vai ver o filme. Agora temos chances no universo político financeiro dos Oscars” – reagiram diretora e produtores do filme.

Não que a academia já esteja abraçando a internet. Para ela, filme é o que passa em salas de cinema. E para qualificar-se ao Oscar, “A praça” ficou uma semaninha em cartaz num cineminha poeira em Los Angeles.

Enquanto milhões assistiam ao filme pela internet.

Há, em todos indicados ao Oscar neste ano, uma coisa em comum: a vontade de dar uma sacudida, de comportar-se de um modo diferente.

Mesmo que haja um mais do mesmo. “Gravidade”, uma quase refilmagem de “Náufrago”, aquele em que Tom Hanks fica amigo de uma bola de vôlei numa ilha deserta, traz uma vontade de visualmente ser alguma coisa diferente. E sua última e constrangedora meia hora, um melodrama trash, pode dar estatuetas para o filme.

Há, também, o-filme-onde-o-ator-emagrece-e-fica-quase-irreconhecível-para-interpretar-um-doente-terminal-numa-história-edificante – por isso, Matthew McConaughey pode levar por “Clube de compras Dallas.”

Há o “A Lista de Schindler” de 2014 também. “12 anos de escravidão” é um filme sério e só por querer dizer: “Antes de pensarmos em dramas passados no espaço vamos primeiro resolver nossos problemas na terra, aqui na América, falar a sério sobre os anos de escravidão?” – merece prêmios. Não perca o trabalho de figurino da grande mestra Patricia Norris, também indicada este ano.

Há o-filme-com-uma-grande-dama-da-dramaturgia-de-língua-inglesa – “Philomena” está lá. A trilha de Alexande Desplat, compositor que concorre pela 6ª vez ao Oscar, vale o filme.

Há a tradicional nominação de Oscar de roteiro original para Woody Allen, recordista na matéria, e talvez seja ele e Lars Von Trier, provável indicado no ano que vem por “Ninfomaníaca”, os maiores escritores vivos – posto que tudo: textos teatrais, romances e roteiros de cinema, seja literatura.

Há, também, o Scorsese original versus o Scorsese genérico-hipster. “Trapaça”, o filme de David O. Russel é bacana, mas o diretor deveria ter sido premiado quando ainda era uma novidade, com o soberbo “Três Reis”, ambientado na guerra do Iraque e que tem uma das aberturas mais engenhosas. “Are we shooting?” – pergunta o fuzileiro naval ao seu capitão, e ao mesmo tempo ao diretor atrás das câmeras. Shooting, em inglês, significa tanto ‘atirar’ quanto ‘filmar’.

“O Lobo de Wall Street”, do Scorsese orginal, é, no fundo, sobre a relação que o diretor manteve com a cocaína durante décadas. Cheiradaço, o filme tem um corte original de 5 horas. Por questões de mercado, a versão que chegou aos cinemas tem 3.

O filme entra para a história oficial como o roteiro com a maior quantidade de palavras ‘fuck’ a ser indicado a um Oscar.

522 vezes a palavra é dita em “O Lobo de Wall Street”. O filme tem 180 minutos.

Filme estrangeiro. Temos, como favoritos, “A Caça” e “A Grande Beleza” os filmes que, em Cannes de 2013, comentávamos serem bons filmes, mas mais com cara de Oscar de filme estrangeiro do que de Palma de Ouro. Se, no ano passado, o Oscar premiou “Amor”, justamente o vencedor do prêmio máximo em Cannes, era porque o filme de Michael Hanake era mais ‘vendível’, no pega para capar que é o processo de sedução dos acadêmicos americanos.

Se “A grande beleza” ganhar o Oscar, o cinema italiano empatará com o cinema francês em número de prêmios. França tem 13, Itália 12 Oscars de melhor filme estrangeiro.

Não se enganem pela ausência do Brasil na lista. O cinema brasileiro de arte nunca esteve tão bem lá fora. Toronto, Roterdã e Berlim estão com o melhor de nossa produção recente e o estupendo “O Som ao Redor” teve uma cópia recentemente comprada pelo MOMA, em Nova York. Para os curadores do MOMA, “O Som ao Redor” já é, e tão cedo, um dos filmes indispensáveis da história do cinema mundial.

Há na lista de hoje, acintes imperdoáveis.
1) Robert Redford, ex-queridinho da academia, favorito até anteontem para melhor ator por “Tudo está perdido”, simplesmente fora da lista? Ciúmes de seu cada vez mais prestigiado Festival de Sundance?
2) James Gandolfini, o Tony Soprano em seu último papel, ele mesmo um delicioso… sopro, em “Enough Said”, desconsiderado? Ciúmes do sucesso de Gandolfini e dos Sopranos na tevê?
3) “Inside Llewyn Davis”, a nova obra prima dos irmãos Coen, fora de tudo, melhor filme, roteiro e direção? A academia resolveu até não fazer o que fez com Jennifer Hudson e deixar consagrar Justin Timberlake, o mais querido do momento?
4) A Pixar fora da competição em melhor animação?!
5) Thelma Schoonmaker, a melhor montadora do mundo, fora da competição por “O Lobo..”?
6) E finalmente, Paul Greengrass, o diretor que hoje todos imitam, e Spike Jonze fora da lista?!

“Her”, de Spike Jonze, é o grande filme desta lista toda. A história de um homem que se apaixona por um sistema operacional programado para ter voz e personalidade femininas é sim o que estão dizendo por aí: o filme definitivo sobre a Singularidade Tecnológica, denominação dada ao momento em que, no futuro, a inteligência artificial terá superado a inteligência humana. Scarlett Johansson empresta sua voz rouca ao sistema operacional, e por isso mereceria um Oscar – compor um personagem complexo usando apenas a voz é um esforço maior que viver um doente terminal ou alguém com paralisia cerebral no cinema. É de uma beleza assustadora quando a mulher/sistema operacional informa que o amor acabou porque chegou a hora dela se reproduzir, sozinha, para uma existência mais evoluída.

Seguimos, portanto, aguardando o dia em que os indicados e premiados ao Oscar serão escolhidos por inteligências artificiais, certamente menos artificiais do que as humanas que hoje fazem suas escolhas.

Quando isso acontecer, num futuro qualquer, o dia de hoje será lembrado como o dia em que um diretor poderá dizer, por exemplo, a uma atriz consagrada: “Vem filmar comigo. Se não conseguimos distribuidora e salas de cinema para exibi-lo, colocamos ele na internet. E você pode ganhar um Oscar por isso.”

Há uma discreta revolução no ar.

Apenas o tempo dirá se ela é legitima ou artificial.

Imagem: O ator Chris Hemsworth e a presidente da Academia de Hollywood, Cheryl Boone Isaacs, anunciam os indicados ao Oscar 2014 (Vince Bucci/Invision/AP)

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Uma comentário sobre “A vitória da internet”

  1. Edinilson Gama disse:

    Obrigado por contar o final do filme HER. Vai ser muito bom assistir sabendo como termina.



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