Matrimônio

sex, 31/01/14
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento, Rio

A tradução literal do filme “500 dias com ela”, lembram dele?,  seria 500 dias de verão.

A mensagem do filme é que nessa vida tudo passa.

Para o carioca não. O carioca vive 500 dias de verão.

A diferença é que, quando chega a estação propriamente dita, tudo passa mais rápido, tudo fica mais ofegante, abafado, a vírgula substitui o ponto, o ponto substitui o parágrafo e, no caso deste texto, papel e lápis substituem o notebook, que esquenta demais para ficar no colo nesta noite de 30 graus, para ser suporte de ideias de uma cabeça quente e desorganizada pronta para um choque de ordem, porque no verão tudo precisa de um choque de ordem, sejam flertes que querem virar romances, seja o que fazer com o 13º ou com o coração em final de Campeonato Brasileiro, com o fígado em véspera de carnaval, com as resoluções de Ano Novo, pois como um bloco de sujos numa quarta-feira de cinzas e, quando o prefeito nos chama de bloco de sujos, nós tocamos o bumbo solitário de quem paga imposto mas fica sem luz no Leblon, sem luz na Tijuca e, exigimos em troca um choque de ordem nas instituições que são sustentadas por nós, mas esquecemos os nós que somos nós e o quanto sós estamos nós, que desatar e reunir faria do nosso verão uma estação ainda melhor, ainda que um verão carioca de verdade e, que talvez o próprio carioca, se chocado e ordenado, seja menos carioca e isso é lindo e péssimo, porque o calor que inspira os compositores de marchinhas é o mesmo que queima as obras de Helio Oiticica, que nos faz procurar as “comfort parties”, festas caras no meio da semana, sem filas e sem pegação, mas que nos deixa sem paciência para fazer coleta seletiva do lixo ou tomar conta da água parada nos vasos de plantas, o que esconde uma ainda mais grave visão superficial do que seja meio ambiente, como tenho discutido com meus alunos de ensino fundamental e médio, quando fazemos uma limpeza geral na sala de aula antes da aula começar, porque a sala de aula é um ambiente a ser respeitado e temos que ter uma melhor relação ambiental com esses ambientes pouco lembrados, a sala de aula, a rua onde se mora, o bairro onde se vive, a praia que se frequenta, o ônibus da segunda-feira, o outro, sim, o outro consiste em um ambiente a ser cuidado com doçura e respeito e, principalmente, a si próprio, esse ambiente esquecido, a mente, a saúde do corpo, a pele da mocinha que neste momento dorme ao meu lado, com um poema do Leminski tatuado nas costas. “A noite me pinga uma estrela no olho e passa”, que de vez em quando vai à academia para se manter bela e lê Ana Cristina Cesar na varanda para ocupar a mente, ou o pelo, sem circunflexo, abre parêntese, a língua é o ambiente que mais sofre com o impacto das ações do homem, fecha parêntese, pelo da gata vira-lata que dorme de barriga pra cima no pé da cama e agradece o calor, pois gatos gostam de calor e são exemplarmente organizados e, por isso cariocas deveriam ser as tais gatas extraordinárias que andam no meio onde fluem e, que evoluem e que incluem a todos, simples assim, então nosso prefeito, satisfeito, poderia ocupar-se de impor choque de ordem em outras áreas urgentes e, então haveria o equilíbrio entre os bons selvagens cariocas que somos e os cidadãos de Estocolmo que pretendem que sejamos, então haveria afinal equilíbrio ambiental, o altinho liberado na beira da praia, a pipa dibicando no alto do morro da mangueira imortalizando Oiticica, a piscina de plástico na laje de casa, o pisca-pisca sincretista das luzes de natal misturadas ao néon dos inferninhos de Copa, os blocos de sujos, esses nós do verão e nós no verão.

Ufa.

O texto acima foi escrito em 2010, quando a revista de domingo do jornal O Globo me convidou para escrever uma coluna que resumisse o verão.

Quatro anos depois, o que mudou? Sabemos mais sobre gás lacrimogêneo, preços altos, mau humor com turistas. Nas ruas, não se vê a comoção coletiva quando fomos escolhidos sede da Copa do Mundo. Nenhuma rua decorada de verde e amarelo.

John Turturro está em Paquetá filmando um dos episódios de “Rio, eu te amo”, filme no qual cineastas do mundo inteiro celebrarão a Cidade Maravilhosa.

Turturro foi um dos protagonistas de Faça a Coisa Certa, obra prima de Spike Lee, que se passa no dia mais quente do ano em Nova York e observa as tensões entre seus habitantes e a inexorável fricção entre cidadão e cidade.

Um filme sobre nós: eu, você e aquilo que fazemos com uma corda quando queremos amarrar algo.

O Rio de Janeiro está certamente mais bonito do que em 2010.

Porque num casamento de verdade, uma mulher é sempre mais bonita de manhã quando acorda do que maquiada.

A cidade está mais bonita porque terminaram finalmente os séculos de namoro entre o Rio de Janeiro e os que aqui vivem.

Começou o casamento.

Todos que trataram a cidade como fosse um amor de verão, destes que a gente aproveita só o romance e cai fora quando as coisas começam a dar nó, agora tem que casar. Dormir e acordar, junto, aguentar o bafo, respeitar os espaços, encarar as mudanças de humor, eventuais traições, desencantos, dispor-se a trabalhar duro para resolver crises.

Por isso, toda vez que você ouvir gente que mora aqui reclamando da cidade, não se impressione tanto: é só DR. Briga de casal. Tentativa de desatar nós em um ambiente de 500 dias de verão.

 

São Sebastião do Rio de Janeiro $urreal

ter, 21/01/14
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento, Rio

Poucos dias depois da criação da página do Facebook “Rio $urreal – NÃO PAGUE”, 100 mil pessoas aderiram à ideia de que:

1) Os preços praticados na Zona Sul da cidade estão impraticáveis;
2) Deve-se fazer algo à respeito como, por exemplo, boicotar comerciantes que abusam do preço.

Historicamente, o brasileiro é daqueles que espera que o Estado resolva seus problemas. Se não o Estado, alguma marca de refrigerante ou companhia telefônica que patrocine soluções.

É desconcertante observar cidadãos Brasileiros decidirem serem cidadãos por contra própria. O bom senso diz que daqui a 700 anos o país estará a mesma coisa. Mas se a moda da iniciativa independente, sem partido (ouvimos em 2013 isso em algum lugar), pega, ótimo: não se sabe onde esse país pode parar.

Já ponderei aqui no blog o fato de que para a dona Judith, dona de um barraco que valia 2 mil reais em 1980 e hoje 100 mil na comunidade de Santa Marta, quanto mais caro o Rio estiver, melhor.

Nas eleições, dona Judith votará em quem fez o Rio ficar caro. Quanto mais caro, melhor pra ela. Róbson, dono de uma barraca na praia, morador de Vilar dos Teles, e que está abusando do preço da água de coco na areia, também. E os próprios moradores de Vilar dos Teles, onde a empada, a cerveja, o pão, o refrigerante e a água, que não viram esse tal aumento de preços no Rio de Janeiro.

Por isso, sempre toma-se um susto com o resultado das eleições, e escutamos aquele papo de que brasileiro não sabe votar, brasileiro pobre tem os votos comprados etc.

Não causa espanto que estas 100 mil pessoas que aderiram à página “Rio $urreal” nunca tenham se mobilizado para tentar resolver o problema atual da favela de Para Pedro, no Irajá, que sofre com uma guerra entre o Comando Vermelho e o Terceiro Comando desde dezembro.

É que vivemos, não só na Zona Sul do Rio, mas em todo planeta que chamamos de terra – embora não façamos a menor ideia do que terra, essa palavra, realmente signifique – a era, delicadamente construída, da “farinha pouca, meu pirão primeiro”. O cidadão século XXI não está – ainda – preocupado com o coletivo. Preocupa-se com os habitantes da comunidade de Para Pedro, mas não ao ponto de fazer uma página no Facebook e pedir adesões. Quer saber é onde dói em seu bolso particular.

Por enquanto e ainda, o preço da cerveja de garrafa da mureta da Urca, do salgadinho em Ipanema, do aluguel em Laranjeiras nos dói mais do que a morte de um garoto de 11 anos por bala perdida no Irajá.

Mas é um primeiro e um muito belo passo. Na hora certa. Um entendimento de que o processo de valorização de preços, que aconteceu nos anos 80 em Nova York por exemplo, expulsando os boêmios do East Village para o Brooklyn e depois Queens – e levou entorno de Manhattan a  passar a conter o endereço dos lugares mais bacanas da cidade – só aconteceu com os bens oferecidos, não com os serviços.

A essa hora, pela lógica de ocupação de todas as metrópoles importantes do mundo, era para que a Zona Sul do Rio fosse um lugar brega, habitado pelos tais turistas e milionários tão recentemente odiados pelos cariocas e que as pessoas mais descoladas da cidade morassem em Vilar dos Teles, no Irajá, numa boa. Porque Irajá e Vilar dos Teles seriam bairros tão bem cuidados pela prefeitura quanto Barra, Ipanema e Leblon.

Então grita uma das diferenças entre o Brasil que há e o Brasil que o morador da Urca acha que vive: o transporte público aqui não funciona, por uma mistura de corrupção, má-fé, incompetência administrativa e necessidade de que os cariocas do lado de lá, invisíveis, que nunca viram o tal do Rio $urreal, entre em contato com o Rio de cá, o olímpico.

Os participantes da página Rio $urreal estão de parabéns. Já se mobilizaram para, na própria página, indicar os lugares programas baratos que existem nessa cidade, que ainda é uma das mais baratas de se viver – pergunte a quem no fim de semana se divertiu a valer com 20 reais no Karaokê da Feira de São Cristóvão, ou a quem com 15 se acabou de dançar debaixo do viaduto de Madureira, ou fez um piquenique na Lagoa, ou quem se fartou com o ensaio da Orquestra Voadora no Aterro do Flamengo.

Com o tempo e amadurecimento, pode cair a ficha de que agir, ao invés de esperar ações institucionais é a única coisa (tirando revolução com muito sangue e morte, como nos ensina Stendhal) que pode salvar o Brasil de um destino oracular, escrito há milhares de anos.

Com sorte, esta ficha pode cair dos dois lados: tanto o do Rio de Janeiro majoritário, o da periferia, o que manda nas urnas, que nunca se mobiliza pra nada (rolezinho não é mobilização, rolezinho é desejo), quanto para o Rio zona sul, minoritário mas articulado, cheio de voz no Facebook mas que não tem peso nas urnas.

Ontem foi dia de São Sebastião. No ano de 286 ele foi executado por Diocleciano, imperador de Roma, na base do espancamento até a morte. Depois de morto, seu corpo foi jogado nos esgotos da cidade.

Hoje, a cidade do Rio de Janeiro é um (belo) cadáver, espancada até a morte e jogada nos esgotos. Não há instituição que reverta este quadro. Só quem pode, é o carioca.

E sua habilidade com fichas.

* Crédito: Káthia Mello/G1 Rio

 

Tatá Orixá

qui, 16/01/14
por Dodô Azevedo |
categoria Sem categoria

Abelardo Barbosa dizia que seu programa de TV, o Cassino do Chacrinha, tinha algo de cerimônia de candomblé.

Ontem, Tatá Werneck entrou às 23h na casa do BBB e com a força dos incorporados, dos bolados em santo, ficou no personagem, criando muitas das falas em improviso, ao vivo, e o fez durante ininterruptas 12 horas.

Tudo com a conivência dos participantes, que entenderam a brincadeira (para a surpresa dos que julgam participantes de reality shows de serem necessariamente acéfalos) e receberam Valdirene como filhas de santo recebem a incorporação de um ‘Erê’.

Assisti até às 7 da manhã. Tatá Werneck, como todas as mulheres muito baixinhas, de Pina Baush a Bia Lessa, é uma força da natureza. Ou uma força espiritual de macumba.

Que essa demonstração de força artística (provavelmente um recorde mundial de atuação em alto nível sem interrupção) tenha acontecido ao vivo, num programa popular, no Brasil, é uma beleza.

Que um talento sofisticado como o de Tatá, a quem não conheço pessoalmente, esteja a serviço do popular e que dê a ela o reconhecimento de um orixá, muito importante para nossa formação cultural.

Foto: Reprodução/TV Globo

A vitória da internet

qui, 16/01/14
por Dodô Azevedo |
categoria Cinema, Cultura

Um dia para entrar na história da indústria cinematográfica. Embora o anúncio dos filmes que irão concorrer ao Oscar aconteça todo ano, desta vez algo bastante diferente e silencioso ocorreu.

A escolha de um filme que não foi exibido em salas de cinema. A escolha de um filme que foi exibido na internet.

“A praça”, documentário da egípcia Jehane Noujaim, conta a história do epicentro da Primavera Árabe, a Praça Tahir, no Cairo.

Após ser premiado em Sundance e Toronto no ano passado, foi comprado pela Netflix.

“Deixa que eu exibo esse filme” – disse a companhia.

“Oba. Agora sim muita gente vai ver o filme. Agora temos chances no universo político financeiro dos Oscars” – reagiram diretora e produtores do filme.

Não que a academia já esteja abraçando a internet. Para ela, filme é o que passa em salas de cinema. E para qualificar-se ao Oscar, “A praça” ficou uma semaninha em cartaz num cineminha poeira em Los Angeles.

Enquanto milhões assistiam ao filme pela internet.

Há, em todos indicados ao Oscar neste ano, uma coisa em comum: a vontade de dar uma sacudida, de comportar-se de um modo diferente.

Mesmo que haja um mais do mesmo. “Gravidade”, uma quase refilmagem de “Náufrago”, aquele em que Tom Hanks fica amigo de uma bola de vôlei numa ilha deserta, traz uma vontade de visualmente ser alguma coisa diferente. E sua última e constrangedora meia hora, um melodrama trash, pode dar estatuetas para o filme.

Há, também, o-filme-onde-o-ator-emagrece-e-fica-quase-irreconhecível-para-interpretar-um-doente-terminal-numa-história-edificante – por isso, Matthew McConaughey pode levar por “Clube de compras Dallas.”

Há o “A Lista de Schindler” de 2014 também. “12 anos de escravidão” é um filme sério e só por querer dizer: “Antes de pensarmos em dramas passados no espaço vamos primeiro resolver nossos problemas na terra, aqui na América, falar a sério sobre os anos de escravidão?” – merece prêmios. Não perca o trabalho de figurino da grande mestra Patricia Norris, também indicada este ano.

Há o-filme-com-uma-grande-dama-da-dramaturgia-de-língua-inglesa – “Philomena” está lá. A trilha de Alexande Desplat, compositor que concorre pela 6ª vez ao Oscar, vale o filme.

Há a tradicional nominação de Oscar de roteiro original para Woody Allen, recordista na matéria, e talvez seja ele e Lars Von Trier, provável indicado no ano que vem por “Ninfomaníaca”, os maiores escritores vivos – posto que tudo: textos teatrais, romances e roteiros de cinema, seja literatura.

Há, também, o Scorsese original versus o Scorsese genérico-hipster. “Trapaça”, o filme de David O. Russel é bacana, mas o diretor deveria ter sido premiado quando ainda era uma novidade, com o soberbo “Três Reis”, ambientado na guerra do Iraque e que tem uma das aberturas mais engenhosas. “Are we shooting?” – pergunta o fuzileiro naval ao seu capitão, e ao mesmo tempo ao diretor atrás das câmeras. Shooting, em inglês, significa tanto ‘atirar’ quanto ‘filmar’.

“O Lobo de Wall Street”, do Scorsese orginal, é, no fundo, sobre a relação que o diretor manteve com a cocaína durante décadas. Cheiradaço, o filme tem um corte original de 5 horas. Por questões de mercado, a versão que chegou aos cinemas tem 3.

O filme entra para a história oficial como o roteiro com a maior quantidade de palavras ‘fuck’ a ser indicado a um Oscar.

522 vezes a palavra é dita em “O Lobo de Wall Street”. O filme tem 180 minutos.

Filme estrangeiro. Temos, como favoritos, “A Caça” e “A Grande Beleza” os filmes que, em Cannes de 2013, comentávamos serem bons filmes, mas mais com cara de Oscar de filme estrangeiro do que de Palma de Ouro. Se, no ano passado, o Oscar premiou “Amor”, justamente o vencedor do prêmio máximo em Cannes, era porque o filme de Michael Hanake era mais ‘vendível’, no pega para capar que é o processo de sedução dos acadêmicos americanos.

Se “A grande beleza” ganhar o Oscar, o cinema italiano empatará com o cinema francês em número de prêmios. França tem 13, Itália 12 Oscars de melhor filme estrangeiro.

Não se enganem pela ausência do Brasil na lista. O cinema brasileiro de arte nunca esteve tão bem lá fora. Toronto, Roterdã e Berlim estão com o melhor de nossa produção recente e o estupendo “O Som ao Redor” teve uma cópia recentemente comprada pelo MOMA, em Nova York. Para os curadores do MOMA, “O Som ao Redor” já é, e tão cedo, um dos filmes indispensáveis da história do cinema mundial.

Há na lista de hoje, acintes imperdoáveis.
1) Robert Redford, ex-queridinho da academia, favorito até anteontem para melhor ator por “Tudo está perdido”, simplesmente fora da lista? Ciúmes de seu cada vez mais prestigiado Festival de Sundance?
2) James Gandolfini, o Tony Soprano em seu último papel, ele mesmo um delicioso… sopro, em “Enough Said”, desconsiderado? Ciúmes do sucesso de Gandolfini e dos Sopranos na tevê?
3) “Inside Llewyn Davis”, a nova obra prima dos irmãos Coen, fora de tudo, melhor filme, roteiro e direção? A academia resolveu até não fazer o que fez com Jennifer Hudson e deixar consagrar Justin Timberlake, o mais querido do momento?
4) A Pixar fora da competição em melhor animação?!
5) Thelma Schoonmaker, a melhor montadora do mundo, fora da competição por “O Lobo..”?
6) E finalmente, Paul Greengrass, o diretor que hoje todos imitam, e Spike Jonze fora da lista?!

“Her”, de Spike Jonze, é o grande filme desta lista toda. A história de um homem que se apaixona por um sistema operacional programado para ter voz e personalidade femininas é sim o que estão dizendo por aí: o filme definitivo sobre a Singularidade Tecnológica, denominação dada ao momento em que, no futuro, a inteligência artificial terá superado a inteligência humana. Scarlett Johansson empresta sua voz rouca ao sistema operacional, e por isso mereceria um Oscar – compor um personagem complexo usando apenas a voz é um esforço maior que viver um doente terminal ou alguém com paralisia cerebral no cinema. É de uma beleza assustadora quando a mulher/sistema operacional informa que o amor acabou porque chegou a hora dela se reproduzir, sozinha, para uma existência mais evoluída.

Seguimos, portanto, aguardando o dia em que os indicados e premiados ao Oscar serão escolhidos por inteligências artificiais, certamente menos artificiais do que as humanas que hoje fazem suas escolhas.

Quando isso acontecer, num futuro qualquer, o dia de hoje será lembrado como o dia em que um diretor poderá dizer, por exemplo, a uma atriz consagrada: “Vem filmar comigo. Se não conseguimos distribuidora e salas de cinema para exibi-lo, colocamos ele na internet. E você pode ganhar um Oscar por isso.”

Há uma discreta revolução no ar.

Apenas o tempo dirá se ela é legitima ou artificial.

Imagem: O ator Chris Hemsworth e a presidente da Academia de Hollywood, Cheryl Boone Isaacs, anunciam os indicados ao Oscar 2014 (Vince Bucci/Invision/AP)

Cariocas X Turistas

qui, 09/01/14
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento, Rio, Você

Rio de Janeiro, janeiro de 2014.

Fila de turistas para embarcar no bondinho do Pão de Açúcar - Foto por Dodô Azevedo

Há um fedor no ar. Repare. Um cheiro que não vem dos lixões nem dos esgotos desta cidade, que não é de ratos ou de mendigos. Não. É um cheiro que vem dos cemitérios da cidade do Rio de Janeiro. Todos eles. Fede o São João Batista, fede o Jardim da Saudade.

Um cheiro que, à noite, aumenta.

Venho por meio desta, constrangido, explicar o fenômeno.

É que trata-se do fedor dos defuntos cariocas revirando-se em seus túmulos.

Defunto doendo-se em suas tripas por desgosto.

Desgostos com seus compatriotas contemporâneos.

Os vivos.

Nós.

Porque há coisa de um, dois meses, os cariocas, de fama tão cordial e estusiasmada, se tornaram nos piores anfitriões do planeta.

Sim, o carioca declarou guerra aos turistas.

Principalmente com o turista brasileiro, de fora da cidade.

Começou assim, em cometários en passant de bar do tipo: “Que saco, Carnaval tá chegando aí, os blocos da cidade vão lotar mais uma vez de turistas. Como era bom ir ao desfile do Bangalafumenga antes desses caipiras invadirem a cidade!”

Sim, caipiras. Para o carioca século XXI, todo mundo que vem de fora virou caipira – “gente que não sabe passar protetor solar, nem se comportar na praia ou na noite da cidade.”

As moças cariocas, em dezembro, vaticinaram: “Praia? Só em abril! Eu vou é pra Trancoso. Não vou ficar em Ipanema dividindo lugar com meninas com pernas da cor de um palmito!”

Os taxistas também reclamam. “Nunca sabem o endereço de nada! Entram no táxi molhados de praia e pedem indicação de tudo: churrascaria, lugar bom pra jantar, lugar bom pra passear à noite…”

A polícia, seria surreal se não fosse óbvio, foi a primeira a perder a paciência de vez: “Os turistas estão muito desleixados. Vêm para o Rio de Janeiro e deixam a carteira no bolso de trás, como se estivessem no exterior.” – E aí o delegado do Leblon mandou cada turista se virar procurando seus pertences recuperados em caixas de papelão.

Que papelão.

O mercado imobiliário também contribiu para as tensões, emitindo boatos de que a bolha imobiliária carioca deve-se a turista brasileiro do interior, destes cheios de grana, dispostos a comprar tudo pelo preço que for, fazer o que os russos fizeram com Londres 10 anos atrás.

“É só reparar. Na hora do almoço eles se concentram nos Spolettos da cidade. Não querem gastar dinheiro nem arriscar-se na comida local! Desde que os turistas da cidade chegaram, a rede de restaurantes recolheu o potinho de manjericão grátis que ficava à nossa disposição, repare!”

O carioca delcarou guerra porque os turistas estão acabando com o manjericão do Spoletto.

Que manjericão.

Os defuntos, Antônio Maria, Leila Diniz, Rubem Braga, Clara Nunes, nossos avós, retorcem-se nas covas de desgosto conosco.

Se bem que, desde o tempo dos nossos avós, adoramos falar mal do “português da padaria”. Ele, o turista primordial, o que está desde 1500 acordando às 5 da manhã para colocar pão quentinho em nossas mesas.

“Com o calor, as famílias invadiram os shoppings! Na sessão de Até que a sorte nos separe II estava lotado de gente falando caipirês” – li em um comentário de notícia do G1 sobre esse calorão que tá aí.

“E os agroboys, gente? Na noite de réveillon fui ali na água molhar o pé e fui pega pelo braço, à força, por uns cinco, todos iguais, fortes, depilados, com grana no bolso e cabelo engomado! Só faltavam estar de sapato na praia!” – contou-me uma carioca pra lá e pra cá de bonita.

Os DJs da cidade também reclamam que os turistas ficam bêbados, incovenientes e passam a insistir para que “toque sertanejo universitário já”.

Enquanto isso, os turistas presos duas horas no meio da mata por falha no bondinho do Corcovado.

“Tá vendo? Sabia que o pichador da estátua do Drummond não era nascido no Rio de Janeiro! É mais um desses caipiras que vêm morar aqui!” – ouvi na sala de espera de um colsultório dentário enquanto passava o RJ TV.

E aí concluí – Aconteceu. Viramos os chatos insuportáveis dos parisienses.

E a fedentina das covas dos bons cariocas envergonhados com seus atuais representantes atenta as narinas.

Se achar melhor do que os outros sempre foi um dos charmes do carioca. Mas este se achar nunca foi pra valer – sempre foi mais um “quem desdenha, quer comprar” às avessas do que qualquer outra coisa.

Agora, tá tudo diferente. Se hoje você for a Buenos Aires, vai encontrar a cidade vazia de argentinos. Eles têm horror à invasão de brasileiros que se dá nesta época. Desde sempre, também no verão, os novaiorquinos vão embora de Nova Iorque. Os londrinos deixam a cidade para os espanhóis.

Este fenômeno nunca havia chegado ao Rio, o que tornava, para mim, carioca, uma cidade ainda mais única.

Agora chegou. Vou procurar um jazigo livre e me juntar aos protestos dos defuntos cariocas clássicos, os gente boa, sempre com um sorriso de “bem-vindos” nos olhos.

A você, meu caro, amado e bem-vindo turista, uma dica:

Não ligue para o que estes cariocas pensam não. Até porque o verdadeiro carioca, não espalha, mora lá longe e chacoalha num trem da central. E se você trocar a mureta da urca pela feijoada da Portela ou pelo Samba do Trabalhador, trocar Ipanema pelo Andaraí, você será recebido como você é: o admirador estrangeiro que nos faz, sempre nos fez, sentirmo-nos admiráveis.

Você, turista, é quem no fundo nos faz cariocas.

Dia Internacional da Ressaca

qua, 01/01/14
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento, Você

Rio de Janeiro, 01 de janeiro de 2014

 

Foto por Dodô Azevedo

Hoje é o Dia Internacional da Ressaca. Em todo o planeta, eu, você e todos nós bebemos na noite de ano novo. Muito. Exageramos. Todos. Os ricos, os pobres, os corruptos, os virtuosos, ateus e religiosos, casados e solteiros, adolescentes e de meia idade, todos bebemos muito.

A ressaca é esta pátria mãe que a todos acolhe. Embora odiada, negada, evitada, somos todos seus filhos a seus pés.

A seus pés. Ainda mais hoje. Em seu Dia Internacional.

Pausa para o Hino Internacional da Ressaca.

Shhhh, silêncio.

O Hino Internacional da Ressaca é extenso, com centenas de versos, todos queixosos, todos arrependidos. Mas a verdade é que nunca ninguém o ouviu. Com ressaca, não se aguenta ouvir nem canto de passarinho. Quanto mais hino. Por isso, o Hino Internacional da Ressaca é sempre tocado baixinho, Chet Baker, João Gilberto. Cantamos o Hino Internacional da Ressaca com a nobreza de quem serve a grandes damas.

Vocês, nós, os nobres súditos desta infalível senhora.

A ressaca enobrece o homem.

Ninguém diz “estou com uma ressaca terrível”, sem uma ponta de orgulho lá no fundo.

Diz-se “estou com uma ressaca terrível” com  um orgulho bélico, de quem foi à guerra e voltou vivo para contar a história.

Somos todos hoje, dia primeiro de janeiro, veteranos de guerra.

Medalha no peito, saco de gelo na cabeça.

E nobres. Pela nossa cabeça, hoje, só passam pensamentos nobres: “nunca mais bebo”, “juro que desta vez sossego”, “ano que vem só vou tomar chá verde”, “semana que vem vou marcar uma visita ao doutor”, “tenho que tomar vergonha na cara.”

De cama, desidratados, castigados pelo calor tropical, passamos o Dia Internacional da Ressaca planejando dias melhores.

Mentira. A ressaca de verdade, a ressaca que de fato, eleva o espírito mas não nos deixa planejar coisa alguma.

A ressaca de verdade, a ressaca vitoriosa e heróica, não nos deixa sequer pensar.

O raciocínio, afinal, é ferramenta exclusiva dos tempos de paz.

E vivemos todos, em época de reveillon, tempos de guerra.

Guerra conosco, com nossas frustações durante o ano que passou e expectativas para o ano que se inicia.

A função definitiva da ressaca. Nos fazer parar de pensar, esse veneno da alma. Nos pacificar por paralisia.

Há jeitos e jeitos de guardar respeito em dias de ressaca. Tomar uns remedinhos, trancar-se num quarto escuro e dormir é o mais desrespeitoso deles.

Ressaca é pra se sentir.

Há um aparelho eletrônico que ajuda muito na ressaca, porque passa a pensar por você, dá uma folga pra tua cabeça.

Chama-se televisão.

Ver televisão o dia inteiro, sem pensar em nada, bom remédio para a ressaca.

Pode-se, por exemplo, hoje só assistir filmes notórios por suas cenas de noite de reveillon. Harry & Sally finalmente se acertando no último segundo do ano de 1993.

Meg Ryan dizendo “Eu te odeio”, com a maior cara de “eu te amo”. – aula de marketing pessoal feminino.

Pode ser O Poderoso Chefão, Parte II, Michael dando um beijo na boca do irmão, Fredo, no último reveillon de Cuba antes da revolução comunista.

Al Pacino dizendo “você partiu meu coração” para o (grande) John Cazale. – uma aula de sexualidade.

Enquanto é o nosso fígado, e não o coração, que está partido.

O Dia Internacional da Ressaca é um oferecimento, é patrocinado, por ele, o Fígado.

Esse injustiçado benemérito da alma.

É recente essa história de que, para a medicina, o coração é o órgão mais importante do corpo.

Invenção da cristandade.

Embora São João da Cruz, interpretando Jeremias em “Lamentações”  e “Deuterônimo”, tenha afirmado “Mas o reino de Deus, se ele existe de fato, não está no coração, e sim no fígado.”

O Islã atribui ao fígado as paixões – provavelmente por conta do sabor amargo da bílis, e daí a palavra “amargura”.

Nas línguas do extremo oriente, várias expressões que significam “fígado”, também querem dizer “coragem”.

Na China antiga, era comum um gerreiro comer o fígado do vencido para absorver sua energia.

Os chineses ligam o fígado à cor verde – e verde é a cor da bílis. Também ligam o fígado, esse severo observador das nossas emoções, aos sabores ácidos.

A cor verde é ácida.

A acidez da vida faz mal o fígado.

A ressaca o educa.

Remédio bom, afinal, é remédio… amargo.

Então, se guerreiros ouvem os hinos de suas nações com a mão no coração, hoje é dia de levar a mão ao fígado e cantar o Hino Internacional da Ressaca.

Vamos lá,agora, todos juntos, começando pelo primeiro verso, o mais conhecido de todos os versos da história dos Hinos Nacionais, o mais imitado, o mais bonito.

Que, se não me engano, é assim:

“Shhhhhh…”

 

 

 



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