Balzaquiana
Rio de Janeiro, 29 de agosto de 2013.
Nesta quinta-feira (29), começa mais uma Bienal do Livro no Rio de Janeiro. Em 2013, ela completa 30 anos.
Balzac escreveu “A mulher de 30 anos” em seis partes, entre 1829 e 1942.
Parte 1. Primeiros erros
Parte 2. Sofrimentos desconhecidos
Parte 3. Aos trinta anos
Parte 4. O dedo de Deus
Parte 5. Os dois encontros
Parte 6. A velhice de uma mãe culpada
A história da Bienal também pode ser dividida nessas seis partes. Do aprendizado com os primeiros erros da edição nos salões do Copacabana Palace até a velhice de uma mãe culpada, quando livros de papel e escritores de pele e osso já não mais interessarem o público.
Essa parte seis é difícil acontecer. A habilidade que tem a Bienal do Livro em ser exatamente o que o público quer é invencível. E é por isso que está ainda na parte três, “Aos Trinta anos”, – segundo Balzac, a “bela idade de trinta anos, ápice poético da vida das mulheres.”
A Bienal do Livro do Rio de Janeiro é segura e generosa como uma mulher que chega aos 30 e percebe que não só o mundo não acabou como ele ficou mais leve e desencanado. A Bienal não se furtou em agigantar-se nos anos 90, quando o mercado literário, que adora chorar pitangas, se dizia à beira da extinção. Não hesitou em liberar que stands infantis se transformassem em parques de diversões. Não teve medo da invasão dos quadrinhos e da cultura mangá.
Não teve vergonha de assumir-se popular.
A própria literatura brasileira aprendeu isso com a Bienal do Rio. E descobriu de vez o público que sustenta o mercado literário mundial. O Jovem Nerd.
Este ano, a Bienal abre as portas para o o gênero fantasy.
Caminho bacana e sem volta.
Ninguém como Balzac, o especialista em mulheres de 30, mostrava a influência do dinheiro na conduta humana. E sem demonizá-la.
A Bienal do Livro deste ano se parecerá mais com uma campus party do que qualquer outra feira mais intelectualizada.
Só que melhor que uma campus party, por conta da adição de literatura. E melhor do que as feiras intelectualizadas, por conta da adição do mundo nerd.
A Bienal do Rio vem com uma proposta mais escapista justamente em um momento que ninguém no país quer mais escapar de nada. Quer todo mundo, a garotada inclusive, o confronto: saber o que acontece no Congresso, nas câmaras, nas prefeituras, o que será da impunidade e do futuro do país.
Livros de anjos, fadas e dragões deixam a garotada feliz da vida. Mas, hoje, se um autor juvenil escrevesse um romance sobre uma menina Black Bloc de 17 anos que se apaixonou pelo rapaz que a ajudou a levantar no meio da manifestação, mesmo ela perdendo a visão por 3 meses por causa de uma rajada de spray de pimenta, venderia entre a garotada mais que qualquer obra fantasy.
Ou talvez a biografia do Zé Dirceu, a Privataria Tucana, O país dos Petralhas seja a maior obra do gênero fantasy no mercado hoje.
É o tal ápice poético que Balzac assinalou.
Nos mais velhos, a Bienal já não tanto mira. Hoje, há uma livraria da Travessa, da Cultura, ao lado de casa. Lá nos anos 90, antes destas lojas aparecerem, livro chinfroso, como um com fotos de backstage dos filme de Cassavetes editado pela Cahiers du Cinéma, só no Riocentro. Feliz, a velha guarda aturava numa boa o cachorro quente frio e a fatia de pizza gordurosa por preços suecos (um clássico das praças de alimentação das Bienais do Livro).
Hoje, a garotada das excursões dos colégios passa aos berros pra lá e pra cá pelos corredores do Riocentro. Há quem se incomode. Mas quem não gosta de berro de garotada de colégio é ruim da cabeça ou doente do pé. Ou não leu Maurice Sendak. Ou não viu “Onde Vivem Os Monstros”, filme do Spike Jonze. Ou esqueceu-se de como era bom sair em excursão com o colégio, sem se preocupar com o aumento do dólar, os ataques na Síria, a não cassação do deputado Natan Donadon, o perigo de um regime militar que se avisa como alternativa à tanta crise de representatividade e ao repúdio recente da opinião pública aos que quebram vidraças de bancos.
Mesmo essa garotada de colégio, que recebe 40 reais dos pais para gastar com livros durante a excursão à Bienal, tem a possibilidade de esbarrar com um livro qualquer, nem que seja, literalmente, obrigando-se a pegá-lo no chão, abrir numa página qualquer e ler, meio que sem querer, algo como:
“É a minha própria casa, mas creio que vim fazer uma visita a alguém”.
“Decidira que todo o passado não era passado e somente uma falácia mental como tantas outras poderia permitir o fácil expediente de imaginar um futuro garantido pelos jogos já jogados.”
“Até hoje ao meu coração me faz um bem / Ter tido o meu mundo no meu tempo.”
“Uma vez que os mortos existem só em nós, golpeamos a nós mesmos, quando insistimos em recordar os golpes que neles deferimos.”
“Exemplo é o que ele está tocando agora. Precisa-se ouvir com rigor. Preciso. Principia muito bem: em seguida ouvir os acordes por fora: sentir como perdido um pouquinho.”
“Molly Notkin confia frequentemente a Joelle Van Dyne por telefone pormenores do atormentado amor da sua vida até à data, um eroticamente circunscrito estudioso de W. Pabst da Universidade De Nova Iorque torturado pela convicção neurótica de que há apenas um número finito de ereções possíveis no mundo num dado momento e que uma tumescência sua significa a detumescência de um cultivador de sogro do Terceiro Mundo que sofre mais e merece muito mais do que ele tê-la e por isso, sempre que tumefica é assaltado por um acesso de culpa idêntico ao de um doutorado menos excentricamente torturado perante a ideia de , digamos, uma pele de foca bebê.”
“A literatura, o labirinto perquiridor da linguagem escrita, o contratempo, a literatura é a irmã siamesa do indivíduo. A idade das massas, evidentemente, não comporta mais a literatura como uma coisa viva e por isso em nossos dias ela se estribucha e vai morrer.”
“Paixão. Só dela cresce o fôlego de um rumo.”
“Ah, como se faz em nós um contraditório mover-se de felicidade e fagiga, como convivessem flores e aranhas, alimentos e tripa, coalescentes coisas desiguais, esconsas, que coita ter um pensar, um sacro emaranhado que não pára de ter idéias, de querer formar dentro da cabeça um quadro.”
“Toda saudade é uma espécie de velhice. O amor, já de si, é algum arrependimento. Dia da gente desexistir é um certo decreto”
A poesia da Bienal do Rio é poder esbarrar, na ordem acima, em Llansol, Cortázar, Chaucer, Proust, Joyce, DFW, Torquato, Garaude, Hilda, Guimarães Rosa, nas crianças ensandecidas, nos adolescentes barulhentos, nas famílias da Zona Oeste que vão completas e andam ao lado das outras atrapalhando o trânsito, perder-se entre o imenso pavilhão amarelo, o gigante pavilhão verde, e o sem fim pavilhão vermelho.
Numa cidade a cada dia mais acostumada com engarrafamentos de carro, com pessoas que têm como ambição apenas chegar a tempo às suas salas de jantar, nada melhor, nem mais bonito, do que o engarrafamento de gente atrás de livro.
A repórter Sônia Bridi e eu iremos nos juntar a vocês, a Guimarães Rosa, Chaucer e cia. no Café Literário, mesa de debates onde conversaremos sobre nossas experiências de viajantes ao redor do mundo e a literatura que nós produzimos a partir disso. No sábado, às 18h30.
É um convite.
Fazia tempo que eu não terminava uma coluna com minha palavra favorita.
Vamos?
Crédito da foto: Dodô Azevedo