Balzaquiana

qui, 29/08/13
por Dodô Azevedo |

Rio de Janeiro, 29 de agosto de 2013.

 

 

Nesta quinta-feira (29), começa mais uma Bienal do Livro no Rio de Janeiro. Em 2013, ela completa 30 anos.

Balzac escreveu “A mulher de 30 anos” em seis partes, entre 1829 e 1942.

Parte 1. Primeiros erros

Parte 2. Sofrimentos desconhecidos

Parte 3. Aos trinta anos

Parte 4. O dedo de Deus

Parte 5. Os dois encontros

Parte 6. A velhice de uma mãe culpada

A história da Bienal também pode ser dividida nessas seis partes. Do aprendizado com os primeiros erros da edição nos salões do Copacabana Palace até a velhice de uma mãe culpada, quando livros de papel e escritores de pele e osso já não mais interessarem o público.

Essa parte seis é difícil acontecer. A habilidade que tem a Bienal do Livro em ser exatamente o que o público quer é invencível. E é por isso que está ainda na parte três, “Aos Trinta anos”, – segundo Balzac, a “bela idade de trinta anos, ápice poético da vida das mulheres.”

A Bienal do Livro do Rio de Janeiro é segura e generosa como uma mulher que chega aos 30 e percebe que não só o mundo não acabou como ele ficou mais leve e desencanado. A Bienal não se furtou em agigantar-se nos anos 90, quando o mercado literário, que adora chorar pitangas, se dizia à beira da extinção. Não hesitou em liberar que stands infantis se transformassem em parques de diversões. Não teve medo da invasão dos quadrinhos e da cultura mangá.

Não teve vergonha de assumir-se popular.

A própria literatura brasileira aprendeu isso com a Bienal do Rio. E descobriu de vez o público que sustenta o mercado literário mundial. O Jovem Nerd.

Este ano, a Bienal abre as portas para o o gênero fantasy.

Caminho bacana e sem volta.

Ninguém como Balzac, o especialista em mulheres de 30, mostrava a influência do dinheiro na conduta humana. E sem demonizá-la.

A Bienal do Livro deste ano se parecerá mais com uma campus party do que qualquer outra feira mais intelectualizada.

Só que melhor que uma campus party, por conta da adição de literatura. E melhor do que as feiras intelectualizadas, por conta da adição do mundo nerd.

A Bienal do Rio vem com uma proposta mais escapista justamente em um momento que ninguém no país quer mais escapar de nada. Quer todo mundo, a garotada inclusive, o confronto: saber o que acontece no Congresso, nas câmaras, nas prefeituras, o que será da impunidade e do futuro do país.

Livros de anjos, fadas e dragões deixam a garotada feliz da vida. Mas, hoje, se um autor juvenil escrevesse um romance sobre uma menina Black Bloc de 17 anos que se apaixonou pelo rapaz que a ajudou a levantar no meio da manifestação, mesmo ela perdendo a visão por 3 meses por causa de uma rajada de spray de pimenta, venderia entre a garotada mais que qualquer obra fantasy.

Ou talvez a biografia do Zé Dirceu, a Privataria Tucana, O país dos Petralhas seja a maior obra do gênero fantasy no mercado hoje.

É o tal ápice poético que Balzac assinalou.

Nos mais velhos, a Bienal já não tanto mira. Hoje, há uma livraria da Travessa, da Cultura, ao lado de casa. Lá nos anos 90, antes destas lojas aparecerem, livro chinfroso, como um com fotos de backstage dos filme de Cassavetes editado pela Cahiers du Cinéma, só no Riocentro. Feliz, a velha guarda aturava numa boa o cachorro quente frio e a fatia de pizza gordurosa por preços suecos (um clássico das praças de alimentação das Bienais do Livro).

Hoje, a garotada das excursões dos colégios passa aos berros pra lá e pra cá pelos corredores do Riocentro. Há quem se incomode. Mas quem não gosta de berro de garotada de colégio é ruim da cabeça ou doente do pé. Ou não leu Maurice Sendak. Ou não viu “Onde Vivem Os Monstros”, filme do Spike Jonze. Ou esqueceu-se de como era bom sair em excursão com o colégio, sem se preocupar com o aumento do dólar, os ataques na Síria, a não cassação do deputado Natan Donadon, o perigo de um regime militar que se avisa como alternativa à tanta crise de representatividade e ao repúdio recente da opinião pública aos que quebram vidraças de bancos.

Mesmo essa garotada de colégio, que recebe 40 reais dos pais para gastar com livros durante a excursão à Bienal, tem a possibilidade de esbarrar com um livro qualquer, nem que seja, literalmente, obrigando-se a pegá-lo no chão, abrir numa página qualquer e ler, meio que sem querer, algo como:

“É a minha própria casa, mas creio que vim fazer uma visita a alguém”.

“Decidira que todo o passado não era passado e somente uma falácia mental como tantas outras poderia permitir o fácil expediente de imaginar um futuro garantido pelos jogos já jogados.”

“Até hoje ao meu coração me faz um bem / Ter tido o meu mundo no meu tempo.” 

“Uma vez que os mortos existem só em nós, golpeamos a nós mesmos, quando insistimos em recordar os golpes que neles deferimos.” 

“Exemplo é o que ele está tocando agora. Precisa-se ouvir com rigor. Preciso. Principia muito bem: em seguida ouvir os acordes por fora: sentir como perdido um pouquinho.”

“Molly Notkin confia frequentemente a Joelle Van Dyne por telefone pormenores do atormentado amor da sua vida até à data, um eroticamente circunscrito estudioso de W. Pabst da Universidade De Nova Iorque torturado pela convicção neurótica de que há apenas um número finito de ereções possíveis no mundo num dado momento e que uma tumescência sua significa a detumescência de um cultivador de sogro do Terceiro Mundo que sofre mais e merece muito mais do que ele tê-la e por isso, sempre que tumefica é assaltado por um acesso de culpa idêntico ao de um doutorado menos excentricamente torturado perante a ideia de , digamos, uma pele de foca bebê.”

“A literatura, o labirinto perquiridor da linguagem escrita, o contratempo, a literatura é a irmã siamesa do indivíduo. A idade das massas, evidentemente, não comporta mais a literatura como uma coisa viva e por isso em nossos dias ela se estribucha e vai morrer.” 

“Paixão. Só dela cresce o fôlego de um rumo.” 

“Ah, como se faz em nós um contraditório mover-se de felicidade e fagiga, como convivessem flores e aranhas, alimentos e tripa, coalescentes coisas desiguais, esconsas, que coita ter um pensar, um sacro emaranhado que não pára de ter idéias, de querer formar dentro da cabeça um quadro.”

“Toda saudade é uma espécie de velhice. O amor, já de si, é algum arrependimento. Dia da gente desexistir é um certo decreto”

A poesia da Bienal do Rio é poder esbarrar, na ordem acima, em Llansol, Cortázar, Chaucer, Proust, Joyce, DFW, Torquato, Garaude, Hilda, Guimarães Rosa, nas crianças ensandecidas, nos adolescentes barulhentos, nas famílias da Zona Oeste que vão completas e andam ao lado das outras atrapalhando o trânsito, perder-se entre o imenso pavilhão amarelo, o gigante pavilhão verde, e o sem fim pavilhão vermelho.

Numa cidade a cada dia mais acostumada com engarrafamentos de carro, com pessoas que têm como ambição apenas chegar a tempo às suas salas de jantar, nada melhor, nem mais bonito, do que o engarrafamento de gente atrás de livro.

A repórter Sônia Bridi e eu iremos nos juntar a vocês, a Guimarães Rosa, Chaucer e cia. no Café Literário, mesa de debates onde conversaremos sobre nossas experiências de viajantes ao redor do mundo e a literatura que nós produzimos a partir disso. No sábado, às 18h30.

É um convite.

Fazia tempo que eu não terminava uma coluna com minha palavra favorita.

Vamos?

Crédito da foto: Dodô Azevedo

 

De Niro 70

sáb, 17/08/13
por Dodô Azevedo |
categoria Cinema, Cultura, Você

Rio de Janeiro, agosto de 2013.

 

França, 2012. Uma daquelas festas que acontecem à noite durante no festival de Cannes. Eu derrotado por uma gripe, com um smoking apertado e algumas doses de uísque. Procuro um lugar pra sentar. Festa lotada. Dou algumas voltas até que encontro um sofá com um senhor de cabelos brancos, quase prateados, meio desanimado,  meio macambúzio, meio incomodado, sentado.

Peço licença, me sento ao lado, fico quieto ao lado do sujeito. Ele é quem puxa conversa, comentando sobre algo sobre o volume da música. Comento que é uma mesmo uma pena, porque o bacana de Cannes é justamente a oportunidade que se tem de conhecer pessoas, de com elas trocar ideias blablablá.

- De onde você é? – Pergunta o velhinho.

- Rio de Janeiro. E você?

- Manhattan.

Quinze minutos depois estamos conversando sobre uísque. Ele também tem um copo na mão. E de algum lugar no papo surge a teoria de que a vida de um homem não deve ser medida em anos, ou em casamentos, ou em filhos, ou em quantidade de trabalho. A vida de um homem deve ser medida é de acordo com a relação que ele tem com o uísque. Esse cavalo puro sangue a ser domado. Os tombos que se toma na juventude ao tentar domá-lo desrespeitosamente. O orgulho de pertencer ao seleto grupo de pessoas que envelhecem e aprendem a cavalgar um bom uísque.

Em seguida, falamos, claro, de Cinema. Sobre os filmes que assistimos no festival até ali. Ele me pergunta de que filme eu mais havia gostado até agora. Eu respondo que não importa: nunca a Palma de Ouro vai para o meu preferido. Que havia desistido de torcer desde que ‘Faça a coisa certa’, de Spike Lee, perdeu para ‘Sexo, mentiras e videotape’, do Sodenbergh, em 1989. Comentei que a única Palma de Ouro que me parecia ser um unanimidade era ‘Taxi Driver’, lá atrás, em mil novecentos e goiabada cascão.

O velhinho olhou pra mim, soltou um sorriso tímido e disse:

- Obrigado.

O velhinho era Robert Anthony De Niro Jr.

Robert De Niro.

Era o De Niro.

Olhei de novo. Aquele silêncio, ele percebeu, divertido, que só naquele momento eu havia atinado quem ele era. Deu um gole no uísque e perguntou, agora francamente se divertindo.

- Envelheci, não é?

Me lembro que, suando frio, pedi desculpas, me levantei com ele às gargalhadas e imediatamente deixei a festa, desprezando o táxi e andando três quilômetros até o hotel, falando baixinho pra mim mesmo:

- O De Niro… o De Niro.

Hoje Robert De Niro faz 70 anos.

E se eu pudesse voltar àquela festa eu responderia a ele: envelheceu sim, muito obrigado.

E, óbvio, teria peguntado, no momento em que ele puxou papo:

- Are you talking to me?

A cena mais famosa de ‘Taxi Driver’ não foi bolada por Martin Scorsese nem escrita por Paul Schrader. Foi De Niro que, improvisando com a câmera filmando, se olhou no espelho e perguntou: “você está falando comigo?”

A cena é o marco zero do homem contemporâneo. Foi ali que ele nasceu e foi definido.

Estamos todos, até hoje, 24h por dia, na frente do espelho, querendo arrumar briga com a gente mesmo.

Mas também somos todos outros Robert De Niros.

Somos o Jack La Motta sangrando num ringue de boxe, somos ele chorando por fomos obrigados a entregar uma luta, somos ele desconfiado da mulher, desconfiado do irmão, sabotando-se até terminar gordo numa cena de prisão, batendo com a cabeça na parede de tanta raiva se si próprio.

Somos o jovem Vito Corleone que volta até a Sicília e vingamos nossa família na base da faca, da peixeira.

Somos Sam ’Ace’ Rothstein, de ‘Cassino’, com roupas ridículas e uma convicção colérica de que as mulheres para casar são as garotas de programa – sendo elas interpretadas pela Sharon Stone ou não.

Somos o David Noodles, de ‘Era uma vez na América’, chapados de ópio lembrando e inventando o passado, com o olhar fissurando em close enchendo toda a tela do cinema, sem saber se o que vivemos é sonho ou realidade.

Somos todos Robert De Niro.

Uísques envelhecidos aniversariantes.

Chicanas

sex, 16/08/13
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento, Rio, Você

 Rio de Janeiro, agosto de 2013.

 

Quando o Ministro Joaquim Barbosa, em mais uma de suas explosões típicas de participante polêmico de reality show (Boninho deve sonhar um tipo como ele no BBB 14), acusou o Ministro Ricardo Lewandowski de estar fazendo uma chicana na sessão do mensalão, alguém na Redação do G1 que assistia à sessão na tevê comentou:

- A única chicana que eu conhecia era a da Fórmula 1.

Errado não estava. O termo jurídico e automobilístico tem a mesma origem: do francês chicane, nome das trincheiras em ziguezague que na 1ª Guerra Mundial eram usadas para atrasar o avanço do inimigo.

A chicana, um trecho também em ziguezague, é usada na Fórmula 1 para forçar a desaceleração de um carro antes de um trecho perigoso, por exemplo. É preventiva. É bem-vinda.

Já a chicana jurídica, o atraso de processos, é em si o próprio desastre.

Enquanto Joaquim Barbosa, esse carro às vezes acelerado demais, perdia o freio na sessão do Supremo Tribunal em Brasília, o Rio de Janeiro estava inteiro parad0 por conta da ação dos 200 manifestantes que fecharam o trânsito do centro da cidade.

A manifestação foi a chicana do carioca.

Preventiva? Bem-vinda? Ou em si o próprio desastre?

Todas as alternativas acima?

De certo há um trecho perigoso à frente: as manifestações prometidas para o 7 de setembro, dia em que as forças armadas estarão nas ruas.

O Egito, a 300 por hora, ignorou a chicana da Primavera Árabe e bateu de frente, sem capacete, em um golpe militar.

Prefeito e governador do Rio já entenderam o tamanho de suas chicanas. Resolveram cumpri-las. Um piloto experiente sabe que logo após uma chicana quase sempre vem uma reta onde se pode voltar a acelerar à vontade.

Os manifestantes entenderão e, principalmente, cumprirão também suas chicanas?

É humano não perceber as chicanas que aparecem à nossa frente, passarmos batido, acelerados, e nos estatelarmos num muro.

Quem nunca?

É humano, também, criar chicanas para si próprio com o intuito de obstruir os próprios processos, projetando muros, e medos de muros, imaginários.

Quem nunca?

Portanto, daqui pra frente, sempre para frente, pense nas chicanas da vida. Na próxima vez que for transar sem camisinha, quando for se posicionar a respeito das manifestações, ao ficar indeciso entre comprar à vista ou a prazo, ou aceitar um pedido de casamento, ou continuar ou não no emprego, antes de falar mal de alguém, antes de falar bem de alguém, na próxima vez que for postar uma foto indiscreta no Instagram, decidir se vale a pena parar de tomar anticoncepcional, ao pensar se o seu time de futebol está precisando da sua presença na arquibancada, antes de formar opinião sobre a depilação das partes íntimas dos outros e, claro, antes de se depilar, ou de trair alguém, ou ajudar também.

Pense nas chicanas antes de decidir qual direção seguir; pense nelas antes de fazer o bem, ou de pensar apenas em si, ou pra variar pensar um pouco em si, e pense nelas na próxima vez que avaliar quem são seus inimigos. Pense nas chicanas antes de decidir se deve tomar mais um chope antes de ir pra casa, se deve começar a malhar na academia na segunda-feira, se deve submeter-se a tudo a que é já submetido. Pense nelas na próxima vez em que se sentir atraído por alguém que todo mundo diz ser uma furada, ou ao decidir priorizar o trabalho e, principalmente, pense nas chicanas após ter certeza absoluta de alguma coisa.

Pense nos desastres, mas também pense nos processos positivos que você mesmo sabota.

Pense no que seria se tudo andasse finalmente pra frente.

Pense nas chicanas.

Os loucos

dom, 11/08/13
por Dodô Azevedo |
categoria Rio, Você

 Rio de Janeiro, agosto de 2013.

 

 

 

Você aí, lúcido.

Outros completamente malucos.

Gente que participa de coletivo – nome moderno para as ONGs do século passado: Tudo maluco.

Gente que resolve dedicar suas horas extras a fazer algo que melhore o mundo -  sair cansado do trabalho, pegar um ônibus e, ao invés de ir pra casa, se reunir por horas, sem salário, num espaço qualquer, e tentar discutir meios de melhorar a minha e a sua vida.

Gente maluca.

Gente que não espera que o Estado, tão bem financiado pelos impostos que pagamos, faça.

Gente que acha que gente junta é que faz a diferença.

Gente que tem esperança de que amanhã será maior e melhor: Tudo louco.

Gente que fica com vontade de invadir a Câmara de Vereadores quando fica sabendo que foi escolhido como presidente da CPI dos ônibus justamente o parlamentar que estava contra ela: pirados.

Gente que forma coletivo e opta por transparência em sua gestão, não vinculo com qualquer partido político e que se preocupa com o fluxo de cultura na Zona Norte do Rio então…

Aí já é caso de internação.

O coletivo Norte Comum está internado no Hotel da Loucura – parte do Instituto Municipal Nise da Silveira, antigo hospício do Engenho de Dentro. Ocupam enfermarias desativadas a convite da Universidade Popular de Arte e Ciência e se integram com os internos clínicos, sem preconceito.

Trabalhar de graça para melhorar a qualidade de vida de internos de hospício? Isso é maluquice.

Com tanta gente bonita no Arpoador, no Baixo Gávea, nas praças de alimentação dos Shoppings, com tanto filme milionário de robôs versus monstros passando no cinena, perder tempo em reuniões para pensar a Zona Norte?

Malucos.

Pois a principal diretriz do Coletivo Norte Comum é esta: articular artistas e público da Zona Norte e promover eventos culturais que funcione como um contraponto à terrível concentração de eventos culturais que acontecem na Zona Sul.

O Coletivo nasceu em 2011. No começo, a rapaziada se reunia na UERJ e em praças públicas do Grajaú, da Tijuca e do Méier.

Doidos.

É que dizem eles que a experiência e a vivência são tão importantes quanto o planejamento.

Malucos.

A cidade cheia de casas de sucos onde se pode tomar uma vitamina de pêra com leite.

E eles querendo experimenter e viver praças.

O discurso dos loucos colaboradores do coletivo impressiona:

“Sabíamos que o caminho para o fortalecimento do cenário cultural da Zona Norte seria pelas relações humanas, dando representatividade às lutas e à potência das diferentes práticas culturais e de estéticas locais, nos conhecendo olho no olho, para em conjunto construir cenários futuros e novas formas de vida.” – Diz Pablo Mejueiro, 25 anos, um dos fundadores do coletivo.

Conhecendo “olho no olho”? Na era do Whatsapp?

Malucos.

“Me interessei pela coisa de movimentar a cultura da Zona Norte, trazendo exposições, oficinas, musica, dança e poesia para as Praças Públicas.”  – Conta Patricia Andrade, 28 anos.

“Oficinas?” – Compartilhar conhecimento com o povo? Vai que o povo adquire, com isso, uma consciência crítica maior à respeito de cidadania? Vote com maior consciência e rigor?

Não mais elegeríamos estes polítcos maravilhosos como os que costumamos eleger.

“Aprendo muito com cada um dos que são sonhadores comigo no coletivo. É uma experiência de vida onde não existe chefe, nem ordens. A única coisa não permitida é ter medo de sonhar.” – conta Carlos Mejueiro, 26.

“Sonhadores”? “Sonho?” – Coisa de maluco.

Sonhar com o quê? A vida está tão boa como está…

Os transportes estão uma maravilha, as relações interpessoais maduras, violência e corrupção sob controle, não existe mais impunidade… o que mais pode-se querer?

“Eu acordo e fico na cama ainda um bom tempo. Me espreguiço e fico pensando o que posso fazer pra me tornar um ser humano melhor. O que posso fazer que influenciará de fato na evolução do meu espírito e dos que me rodeiam e o Norte Comum tem papel fundamental nesse momento em minha vida.” - Thiago Diniz, 31.

Acordar, e antes de ir trabalhar, se dedicar a pensar como, naquele dia, pode se tornar uma pessoa melhor? – Maluco!

Já pensou se todo mundo fizesse a mesma coisa? Já pensou um mundo a cada dia melhor?

Que desculpas daríamos para nossas prostações deprimidas diárias, que convenientemente nos deixam conformados no sofá?

Marcell Carrasco, 24 anos, é ainda mais delirante: “Sempre que me perguntam sobre o que é o Norte Comum eu chego a conclusão que não há uma resposta exata, pois a pluralidade do grupo faz com que as ideias e as ações se reinventem todos os dias. Portanto, chego a conclusão que o Norte é um local de encontro para aqueles que querem experimentar novas percepções de vida.”

“Novas percepções de vida?” -  Pra que se despencar para o Engenho de Dentro se se pode comprar um Tevê 3D e, no conforto do lar, com um óculos 3D na cara, ter novas percepções de vida?

Marcell, embora seja rapaz muito estudioso, trabalhador, educado e doce como um príncipe , é tão louco, mas tão louco, que após uma manifestação de rua da qual participou no mês passado, escreveu em seu perfil de rede social:

“Acho que desde os meus 11/12 anos eu sou revistado pela polícia. Perdi a conta de quantas vezes fui parado, mas garanto que mais de 50 vezes. já me apontaram pistola, fuzil, escopeta.. Já tive que ficar deitado, mãos na cabeça, mãos para trás, mãos no muro, abrir as pernas. Já tive que tirar a roupa no meio da rua, já abriram meu celular, já me xingaram, já fui parado pelo mesmo policial 3 vezes no mesmo dia, enfim, a polícia sabe mais da minha vida do que minha própria mãe. Me perguntam pra onde vou, de onde venho, o que vou fazer, o que eu sou, se porto drogas ou armas de fogo, se tenho passagem pela polícia, etc. Isso tudo porque eu sou negro. A PM é racista porque o estado é racista, porque a sociedade é racista.”

Nosso país, racista?!

Virgílio do Santos, 29, é o doido lírico. Compôs o delicoso samba que embala o vídeo do encontro deste blog com a turma do Norte comum. Além de ser coordenador do CIAB, Coletivo de Integração Artística de Benfica, que tenta fazer artistas de Benfica, Manguinhos, Jacarezinho, São Cristóvão, Mangueira e adjacências trocarem ideias. Trabalha praticamente de graça. E feliz da vida.

“Trabalhar de graça e feliz?” – Louco!

Todos loucos.

E os cariocas mais interessantes desta cidade.

Porque esta coluna compartilha a opinião de Jack Kerouac, escritor americano, que nos anos 50 escreveu:

“As únicas pessoas que me interessam são as loucas, aquelas que são loucas para viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, que têm um desejo de tudo ao mesmo tempo, aquelas que nunca bocejam ou dizem algo normal, mas queimam, queimam como velas cruzando o céu deixando todo mundo boquiaberto.”

Na hora em que me despedi, boquiaberto com o que vi e ouvi dos integrantes do Norte Comum, esbarrei com um dos internos do hospício Nise da Silveira. Cumprimentei-o, perguntando se estava tudo bem.

Ele respondeu:

- Tudo louco.

 

Foto: O Coletivo Norte Comum em sua sede no Engenho de Dentro. Crédito: Dodô Azevedo

 

Sucesso e nada mais

sex, 02/08/13
por Dodô Azevedo |
categoria Cultura, Música, Rio
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Álbum de estréia da banda carioca PELVs - Foto por Dodô Azevedo

Rio de Janeiro, agosto de 2013.

 

Na história do rock no Brasil há cinco páginas em branco.

Estas páginas estão reservadas para contar a história de um grupo de músicos muito jovens que odiava MPB, se contorcia de vergonha das letras que Renato Russo escrevia para a Legião Urbana – e não entendia como as pessoas não notavam que se tratava de uma cópia das letras dos Smiths -, assim como a banda Ira! era cópia da banda The Jam, Os Paralamas, do Police etc.

Para esta garotada, Clube da Esquina e Novos Baianos era coisa de maconheiro. Chico Buarque, coisa de menina. Cartola e qualquer samba, música de povo burro que votava mal.

Para esta garotada, estudar música, praticá-la, comprar os melhores instrumentos era coisa de quem tinha uma relação fria com a arte. Tocar um instrumento, transformar em canção o que está preso na garganta, era algo urgente – não podia esperar contrato com gravadora, gravação em um estúdio bacana, tocar na rádio, fama. Não podia sequer esperar o público aparecer.

Dane-se o público: ele estava ocupado consumindo maracatu, axé music e pagode.

Essa garotada não frequentava a praia. Não gostava de sol. Só saía à noite. Seu ponto de encontro na Zona Sul era uma boate chamada Kitschiette, um porão na Nossa Senhora de Copacabana que só abria suas portas uma e meia, duas da manhã, e não passaria em nenhuma revista de segurança. Na Zona Norte, botecos sórdidos que também não passariam por uma mínima fiscalização.

Mas é que estamos falando do início dos anos 90. Não existia fiscalização. Não existia direito do consumidor. Não exista o politicamente correto. Dizer que sentia vergonha do Renato Russo e que não se gostava de maracatu ainda não era contra a lei.

Essa garotada e suas bandas nascidas entre 1990 e 1995, ia além. Desprezava nosso idioma. Cantar em português pra quê? Ninguém que falasse português os entendia mesmo. Os cadernos culturais não sabiam como classificá-los, os músicos da geração anterior não os compreendiam. E o público. Bem, o público, como já foi dito aqui, não fazia diferença.

O Circo Voador não sabia o que fazer com estas bandas que, por cantar em inglês, não conseguia, nem estava interessada, em encher a platéia – ou tocar na MTV, ou na Rádio Fluminense FM.

Em 1993, uma destas bandas, chamada PELVs, ganhou a chance de gravar um LP.

A chance foi dada por dois músicos de bandas de rock que cantavam em português. Dado Villa-Lobos, da Legião Urbana, e André X, da Plebe Rude.

A garotada da PELVs não falou nada sobre o que achava de letras em português. E ainda ao invés de gastar dinheiro num estúdio, gravou tudo em casa, no quarto do vocalista, com os piores instrumentos do mercado. Confiavam nas canções, na força das canções. Muitas delas. Tantas que resolveram reduzi-las a 30 segundos, um minuto. Nada de repetir refrão. Nada de repetir letra. A canção reduzida a sua essência, as únicas células que as constituem.

Chamaram o LP de Peter Greenaway’s Surf. Greenaway era um diretor inglês tão incompreendido quanto a geração de bandas a qual a PELVs pertencia. Surf vinha da inveja dos rapazes da banda pelas pessoas que aproveitavam o dia, o sol, o mar no Rio de Janeiro. Bolaram capa e encarte com cola Pritt, uns recortes de revistas antigas de cinema e uma velha máquina de escrever. Um mês depois, o disco estava nas prateleiras das lojas, cercado de LPs do Asa de Águia e da Janet Jackson. Foram fazer o show de abertura na casa de shows mais bacana da cidade.

Os épicos shows destas bandas, e eram muitas, sete, oito por noite, papo de acabar às 10 da manhã, aconteciam num casarão abandonado na abandonada Rua Ceará, ao lado da melhor e pior oficina de motocicletas do país, onde esta garotada trocava ideia com traficante, cafetão, trabalhador da Baixada Fluminense e barrigudas prostitutas de 5 mil cruzeiros reais (equivalente a 5 reais).

O som destas bandas? Barulho. Muito barulho. Às vezes doce, às vezes lento, às vezes calmo. Outras vezes furioso, agressivo. Quase nunca político. Muito menos partidário. Todo mundo de preto.

Em 1993, essa garotada já era Black Bloc e não sabia.

Ou sabia, porque ainda nos anos 90 os Black Blocs iriam tomar Seattle, nos Estados Unidos, em assalto, durante o encontro da Organização Mundial do Comércio.

Seattle, de onde surgiu a banda que iria, finalmente, fazer com que as bandas brasileiras de 1993 fosse entendida por todos. A importância do Nirvana para bandas como a PELVs é que,  finalmente, a estética da banda era entendida pelos amigos do colégio, por avôs e tias, pelos críticos de música.

Em 1993 um dos integrantes da PELVs, na qualidade de jornalista, encontrou com Kurt Cobain no Rio de Janeiro e, num quarto de hotel, ficou umas 12 horas conversando sobre as coisas mais importantes do mundo: fanzines, pedais fuzzface, J. Mascis os efeitos da heroína e sobre se finalmente compreendido pelo mundo.

Kurt Cobain confidenciou estar encantado com a cor do céu e o espírito das pessoas na cidade. Que se tivesse sido criado no Rio de Janeiro não teria precisado se viciar em heroína. O jornalista, o garoto, concordou, dizendo que esta cidade já é viciante o suficiente. Por 12 horas, o maior popstar do planeta, vocalista da banda mais famosa do planeta conversava com a banda mais anônima do planeta.

Seria uma história bem difícil de acreditar.

Se não fosse eu aquele garoto.

Saí da PELVs em 1997 para me dedicar ao jornalismo, à literatura e ao cinema. Os que ficaram, tornaram a banda maior, com mais músicos e maior reputação. Ontem, meu amigo Carlos Albuquerque publicou no 2o caderno matéria de página inteira sobre os 20 anos do álbum Peter Greenaway’s Surf e anunciar o lançamento de uma caixa com mais de 60 canções que pode ser baixada de graça na rede. A caixa PELVs 1991-2012 foi lançada hoje. Mas nada de falar-se sobre a geração da qual a PELVs pertence.

De 1993 até o aparecimento dos Los Hermanos, Raimundos e Planet Hemp (compondo em português, um alívio para público e crítica que não estava entendendo nada sobre a geração anterior) as páginas que contam a história dos roqueiros black blocs brasileiros ainda estão em branco. Em 2011, o jornalista Leonardo Panço escreveu, editou e lançou, por conta própria, uma boa biografia destes tempos. O livro chama-se “Esporro” e é tão bom que pede para virar um filme ainda mais bacana do que o antológico “The Committments – loucos pela fama”, do Alan Parker.

Até lá, esta história incrível destes artistas que de modo sistemático e convicto recusaram o sucesso continuará sem registro, sem reconhecimento.

Talvez seja para ser assim.

Até porque aquela rapaziada não existe mais. Hoje é, como eu, fã de Renato Russo, Chico Science e suas cirandas e da metafísica arte de Cartola.

Ou talvez porque seja como uma vez disse o filho de um cirurgião normando no século XIX: o reconhecimento é ouvir um monte de asneiras a seu próprio respeito.

Ou talvez existir já seja um sucesso.



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