Liberte-me, por favor
Rio de Janeiro, junho de 2013.
Em 213 A.C., o imprerador chinês Qin Shi Huang ordenou que sua guarda recolhesse das residências de seus súditos todos os livros de filosofia e história. Na Grécia antiga, escrituras judaicas foram apreendidas pelo governo. Na Roma antiga, foi a vez de escrituras cristãs. Do séc. XIII ao séc. XVII, papas ordenaram que fossem apreendidas todas as cópias do Talmud, o livro mais importante do judaísmo. A inquisição espanhola apreendeu e queimou cinco mil manuscritos árabes. Em 1562, os conquistadores ibéricos destruíram todos os textos sagrados da civilização Maia. Em 1640, a bíblia produzida na reforma luterana foi caçada pelos católicos alemães. Em 1920, os comunistas queimaram centenas de milhares de livros que representavam os valores do ocidente. Em 1932, os alemães perseguiram todas as obras que não fossem nacionalistas. Depois da 2a guerra, os americanos apreenderam livros que representassem os valores comunistas. Em 1968, militares brasileiros apreenderam livros que representassem valores socialistas. No Brasil, foi a última vez que os livros, estes suspeitos número um na lista de governos autoritários, foram apreendidos por uma autoridade policial.
Até o último dia 26 de junho.
O livro Mate-me, por favor, escrito por dois jornalistas e que conta a história do movimento punk, foi apreendido pela polícia na casa de um anarcopunk, suspeito de vandalismo na passeata do dia 20 de junho no Rio, junto com objetos como faca, martelos e morteiros.
Quando um livro é, na visão da autoridade, algo tão perigoso quanto uma faca, ter ideias passa a ser tão fora da lei quanto cometer um homicídio.
Li Mate-me, por favor, umas três vezes. Sou fã do livro. Sou fã de sua principal mensagem: faça você mesmo.
E tudo de bom que aconteceu com o brasileiro, com todos os brasileiros, nestas semanas de ouro, foi que desistiu-se de assistir parado a banda passar.
Decidiu-se fazer-se você mesmo.
Devemos todo o medo de nossos governantes, esse pavor que os fez trabalhar mais de 6 horas por dia (como se essa não fosse sua obrigação), que os fez receber representantes da sociedade para ouví-los e se arvorar em apresentar soluções, devemos tudo isso à ideologia… punk.
Não se engane: quando você decidiu ir para a rua, escrever seu cartaz e bradar o seu grito, mesmo que sem violência, e antes ainda da grande midia apoiar o movimento (lembra?), você foi punk.
Fez você mesmo.
Voltando ao caso do livro apreendido pela polícia, como estivéssemos sob o regime militar brasileiro dos anos 60, ou sob a inquisição espanhola, ou na Alemanha de Hitler, hoje não sou eu quem vai combater ignorâncias - o mal por trás de tudo o que de ruim que a humanidade já protagonizou.
Resolvi chamar um punk para falar.
Larry Antha é vocalista de um grupo de rock alternativo dos anos 90, o Sex Noise, reconhecido e respeitado no underground carioca. Hoje ele é também escritor. Lançou dois livros. ‘Memórias não póstumas de um punk’(2011) e ‘Tropicalismo Selvagem – As memórias não póstumas de um punk na infância’(2012), ambos pela Editora Multifoco. No momento, prepara seu terceiro livro, chamado ‘Dom Josué & seu galo infante na Belle Époque Punk’. Carioca da Zona Oeste. Não a Barra da Tijuca. Da região mais… punk da região. Dei a ele 10 minutos para escrever sobre o livro. Assim, um texto rápido, de supresa, pra ontem, punk:
Vamos lá. Um, dois, três, quatro:
“Um livro que nasceu clássico? “Mate-me por favor (Please Kill Me)”, é uma obra prima. O compêndio de entrevistas, conduzidas com destreza pelos jornalistas Legs McNeil e Gillian McCain, narra o nascimento do punk, vai fundo em suas origens e acompanha o nascimento do The Velvet Underground de Lou Reed e companhia, ainda em 1965, mapeando os primeiros passos da banda. O livro chegou modestamente por aqui e aos poucos foi se tornando um clássico cult.
‘Pô você nunca leu ‘Mate-me por favor’? É demais, cara!’. Volta e meia escuto alguém falando do livro por aí. E acho que é justamente por ser o movimento punk tão diverso e controverso, que o livro acaba se tornando uma obra com frescor que se renova a cada nova geração de aficionados pela então vanguarda da cultura pop.
E o grande barato do livro e poder lê-lo sem seguir uma ordem cronológica. Deixá-lo quietinho num canto da casa e abri-lo de vez em quando em alguma página aleatória, tal qual um livro de autoajuda. E que autoajuda! Imagina saber como se livrar de uma cilada num banheiro sujo de Nova York e descolar a sua ‘onda’ com a pessoa certa/ ou não por aquelas plagas.
O livro vai te envolvendo, e aos poucos você vai descobrindo histórias que tem versões diferentes narradas pelos mesmos personagens, e o que acaba sendo o grande deferencial do livro. As centenas de entrevistas que com personagens reais como Iggy Pop, Patti Smith, Dee Dee e Joey Ramone, Debbie Harry, Nico, Richard Hell e Malcolm MacLaren, te colocam para dentro das entranhas da cena de Nova York dos anos 70, mostrando porque e como uma pequena cena artística local tomou proporções mercadológicas mudando e definindo padrões estéticos e culturais da cultura pop como a vemos hoje em dia.
Não se engane, a barra era pesada na Nova York cantada por Lou Reed em sua obra mais emblemática; ‘Transformer’ que conta com a clássica canção ‘Walk on the wild side’, citada até por Cazuza e ‘Só as mães são felizes’; “(…) Você nunca ouviu falar em Lou Reed, Walk on the wild side”, que nos transporta para dentro daquela época, e deixa claro que muitas gerações ainda serão marcadas por aqueles dizeres ácidos escritos em letras garrafais na camisa usada por Richard Hell, ex-baixista do Television, com as eletrizantes histórias movidas a overdoses de sexo, drogas e rock and roll. “Mate-me por favor” pelo visto ainda não tem pazo de validade. Nem fronteiras.”
Larry Antha
Feito o esclarecimento, fica o alarme ligado. Estas contrações do parto desta democracia mais madura que viveremos a partir deste inverno vão expor, já estão expondo, a hipocrisia, violência, covardia, oportunismo e ignorância de uma nação até ontem sentada no pudim da fama de povo satisfeito e festivo. Se não examinarmos esta maravilhosa exposição de nossos aspectos mais obscuros perderemos a incrível oportunidade de nascer sem eles.
Portanto, façamos.