Comemorações

qua, 08/05/13
por Dodô Azevedo |

Londres, maio de 2013.

Fomos ao Ritzy assistir a “Os Amantes Passageiros”, novo filme do Almodóvar. Lá para os dez minutos de projeção, a personagem de Lola Dueñas vira para o piloto do transporte coletivo onde viaja e dá a notícia: “sou sensitiva e prevejo que hoje vou perder a minha virgindade”. Em seguida, ela molesta sexualmente o piloto. Algumas cenas depois, se aproveita que um dos passageiros está adormecido e estupra o rapaz. Até o final do filme, veremos uma sequência perseverante de cenas de sexo dentro desse transporte coletivo, onde ocorre praticamente toda a ação do filme.

Trata-se da volta do diretor espanhol à comédia. Uma comemoração, uma celebração da catástrofe.

Imediatamente, pensei nas mulheres em transportes coletivos no meu país.

E pensei nos comentários generosos de vocês na coluna de estreia, semana passada. Comemorei-os. Um dos comentários, em particular, dizia que o texto não era bom. Até aí, problema algum, claro. Me chamou a atenção foi o complemento da crítica. O texto de estreia não seria bom porque seria para mulheres.  Querendo dizer, sem provavelmente ter consciência, darei esse crédito, que textos para homens são melhores e, logo, homens são melhores que mulheres.

Imediatamente pensei nos homens em transportes coletivos no meu país.

Nós, mesmo o mais consciente de nós, nos achamos melhores que as mulheres. Fomos e somos criados assim. Todos nós. Aí no Brasil, aqui no Reino Unido, na Índia dos gurus espiritualizados. Muitas vezes, quem nos educa a respeito da inferioridade da mulher são nossas mães, inclusive. Nos tornamos adultos e acabamos por achar natural ter uma relação exagerada ao feminino, essa coisa que nos é estranha. E como vimos no texto da semana passada, isso pode perfeitamente ser chamado de alergia. Podemos nós, rapazes, até não termos alergia ao corpo das moças. Mas não há discussão que temos, fomos criados para ter, alergia à alma delas.

Em sala de aula, trabalho com a garotada desde ensino fundamental até o ensino médio. Quando sento para corrigir provas no final de um bimestre, tenho a certeza de que as mulheres já deveriam ter dominado o mundo. 90% das notas altas são tiradas por elas. Quem tem um filho pequeno e uma filha pequena também sabe a diferença entre o desenvolvimento das capacidades de um e de outro. Aqui no Reino Unido há um ressentimento com Angela, a chanceler alemã que comanda toda a Europa e não se furta de às vezes exibir-se em decotes.

E é por isso que, para mim, escrever para mulheres é uma responsabilidade maior. Uma honra. Porque é mais difícil. Até porque tenho dificuldades com esse conceito de um texto que sirva a um gênero e não sirva a outro. Pedro Almodóvar já resolveu, e há tempos, essa dificuldade. “Os Amantes Passageiros” “é o filme mais gay de minha carreira”, disse ao Telegraph. Uma mistura do humorístico Zorra Total, com os filmes do Wes Anderson, Irmãos Marx e, principalmente, com o filme “Apertem os Cintos, O Piloto Sumiu” – formidável tradução brasileira para “Airplane!”, titulo original deste clássico da Sessão da Tarde (quando na tevê podia-se exibir para crianças piadas deliciosamente ultrajantes como as criadas pelos irmãos Zucker).

Abraçado pelo público (a maior bilheteria de um filme de Almodóvar na Europa), “Os Amantes Passageiros”, que estreia em setembro no Brasil, se passa dentro de um avião que se prepara para um desastre na aterrissagem. Trata-se de uma metáfora para a Espanha de hoje, à beira de uma catástrofe econômica.

Volto a pensar nos transportes públicos do meu país e penso que talvez Almodóvar, embora entenda de gêneros, ainda não saiba o que é uma catástrofe de verdade.

Rimos muito durante o filme: os personagens, ao se darem conta da iminência de seu fim trágico, resolvem se divertir, soltar a franga e praticar, no avião, toda a sorte de festejos subversivos tendo como base sexo oral, mescalina e irresistíveis números musicais de quinta categoria. Após o cinema, tomando uma cerveja no bar do terraço do cinema com um grupo de ingleses, contei histórias sobre o que vem acontecendo dentro dos transporte público em meu país. Intrigados, perguntaram: “mas por que a população não sai às ruas, como na Índia?”. Lembrei dos espanhóis, que, nos últimos anos, regularmente, vão às ruas aos milhões protestar. E lembrei do nosso carnaval, de nossos machões vestidos de baiana, do que leva nossas multidões às ruas, de nossas marchinhas de carnaval (Que me importa que a mula manque. Eu quero é rosetar. / Pode me faltar tudo na vida: arroz, feijão e pão. Só não quero é que me falte a danada da cachaça!) e de que ao menos em termos de gerência de catástrofes e desejos, somos o que há nesse mundo.

Almodóvar propõe, no rastro de tantos pensadores, que o que o mundo precisa é também saber rir de suas tragédias. Nós, brasileiros, que sabemos rir das nossas desde sempre, o que nos torna, de fato, uma nação sofisticada, só precisamos é saber também chorar por elas. Ou parar de chorar e agir por elas. Se aprendermos que dentro da palavra comemoração há a palavra ação, e que ambas são substantivos femininos, levantaremos voo. Aqui e ali, já vê-se exemplos. E por isso, hoje, vamos, aqui no Reino Unido, brindar à eleição, contra a vontade dos europeus, de um brasileiro, natural de um país governado por uma mulher, para a Organização Mundial do Comércio. Afrouxem os cintos, o piloto apareceu – é o que temos para comemorar hoje. Um viva aos Azevedos naturais de países governados por uma mulher. Chega de acentos circunflexos e outras flexões: Hollywood quer dizer Azevedo. Sejamos imperialistas! Fala Mangueira!

Porque as melhores comemorações (como as melhores músicas, os melhores filmes e os melhores textos) são as femininas: aquelas que conseguem nos fazer felizes e tristes ao mesmo tempo.

Saúde e boa aterrissagem a todos.

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Uma comentário sobre “Comemorações”

  1. Jari da Rocha disse:

    Salve, Dodô!
    Parabéns pela coluna e pela linguagem bacana e desenrolada. Nos vemos por aqui.
    baita abraço!



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