Primer amor

sex, 31/05/13
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento, Rio, Você

Barcelona, maio de 2013.

A moça mais sorridente que já conheci se chama Maria, tem 29 anos, e é geminiana. Trabalha como garçonete num restaurante da rua Dr. Trueta, no bairro de Poblenou, e me presenteou, quando nos despedimos um do outro em meu último dia na cidade, com um pequeno envelope azul, com um cartão azul dentro, onde se lia a seguinte frase, diz ela, de autoria do filósofo espanhol José Ortega y Gasset:

“A vida é um naufrágio constante.”

Maria é muito famosa no Pobleneu. Pode-se dizer que é a musa do bairro. É uma mocinha de pernas finas, seios pequenos e baixinha. Mas, quando passa na rua, não tem pra ninguém. Embora se dê muito bem com mulheres, a maioria de seus amigos são homens, e se não fosse por uma feminilidade franca, sem frescura, sem nove horas, um instinto maternal equivalente a oito vezes o seu tamanho e uma voz rouquinha de quem está desde anteontem debaixo do edredom com o namorado, você juraria que ela é um menino.

Após o expediente, Maria costuma ir para o boteco da esquina. Com homens, todos amigos, loucos para levá-la para debaixo do edredom – apesar da espontaneadade dela ao comunicar que “amizade é mais importante que isso”. Maria fuma. Fica ela então fumando, rodeada de homens, conversando assunto de homem a noite inteira até que ela resolve ir embora. Nesse momento, todos os homens se entreolham e comentam que está na hora de ir pra casa também. Eles não percebem, mas Maria é o macho alfa do grupo.

Quando Maria está afim de beijar alguém, ela beija. Quando quer dormir com alguém, ela dorme. Quando quer namorar com alguém, ela namora. Não é que Maria pode tudo. É que ela simplifica as coisas. Quando ela está com raiva, fica com raiva. Quando dá uma gargalhada, é daquelas de salvar o teu dia. Não é que Maria pode tudo. É que ela faz o que ela pode. Tanta gente prefere tentar fazer o que não pode e desdenha do fazer-o-que-pode, o que é permitido, que esse caso simples que Maria é, na verdade, desconcerta e encanta a todos.

Mas Maria não é simples. Ela ri, sorri, trabalha o dia inteiro, vive maquiada. À noite, tira a maquiagem e bebe com os amigos; vai para ali, vem pra cá, não para. Maria corre por um motivo: ela não quer ser pega. Não ela, Maria musa do Poblenou; mas uma outra Maria, uma que se esconde, uma que ninguém conhece. Ninguém, não; ela mesma conhece um pouquinho essa Maria escondida. E o pouco que conhece, odeia. A Maria escondida é uma menina frágil, mulherzinha, que ao invés de dar colo quer colo, que odeia o que faz, gostaria de encontrar o cara certo, ter três filhos e viver para a família, odeia o tempo que perdeu se tornando independente, odeia até a burrice de seus amigos (Maria é muito inteligente, mas esconde isso – uma estratégia muito inteligente).

Maria, a musa do Pobleneu, se esconde porque tem medo de que ninguém mais goste dela se a Maria escondida vier à tona. Ela não se dá o direito de inteira ser.

E quem não se dá o direito de inteiro ser, fica com essa sensação de que precisa, minuto a minuto, gritar “Oba!” para abafar os gritos de “Socorro!” que vem do fundo de si.

O sonho de Maria – confidenciado numa noite em que voltei ao restaurante no qual ela trabalha para bater um longo papo – é morar no Rio de Janeiro.

Me pediu para, como carioca, resumir a cidade.

Eu disse que o Rio de Janeiro era muito parecido com ela: uma cidade que precisa gritar “viva!”, “oba!” o tempo inteiro para abafar os gritos de socorro.

E que talvez ele, o Rio de Janeiro, seja mais bacana que Barcelona justamente por isso. Que esta tensão torna a cidade mais viva, menos fácil de se viver, mas mais viva.

O Rio de Janeiro e Maria estão, no fundo, esperando o dia em que alguém pegue pela mão e diga: “Vem comigo ser tudo o que você é. Só assim, pode-se resolver os problemas que faz-se esta questão toda de mante-los escondidos.”

Maria precisa do que as mulheres desde criança aprenderam a chamar de príncipe encantado.

Já o Rio precisa de um povo encantado.

Por povo entende-se eu, você, o sujeito que xingou o prefeito e o próprio prefeito.

O príncipe encantado de Maria apareceu no meio de nosso papo. Era um garoto, Pedro, sete anos de idade, que brincava com os amigos na praça ao lado. De cinco em cinco minutos, o moleque batia no vidro e gritava: “Maria, acuda! Os outros meninos estão arrancando as flores do jardim do restaurante!” – Maria saía e nada. Os meninos jogavam futebol. As flores estavam intactas. Pedro voltava e fazia tudo de novo. Maria, divertida, dava atenção ao garoto. Comentei: ele está apaixonado por você, Maria. Você é, provavelmente, o primeiro amor da vida dele.

Fiz uma foto de Pedro finalmente convidando Maria para “uma taça de vinho mais tarde” – palavras do moleque. Maria riu, deu uma palmada na bundinha do garoto e disse: “Você não sabe o que está falando!”

 

 

Pedro tem a manha.

Maria comentou: “Pena que vocês começem assim, tão homens aos sete anos e, na medida que vão envelhecendo, vão se tornando moleques por dentro. Viram uns gillipollas. Fazer o quê? Me cago en la hostia. Me cago en la virgen santa.”

Eu, moleque, carioca, saí pela tangente: “Bom, essa é, na verdade, uma conversa de despedida. Amanhã tenho um voo para Paris.”

Ela foi até o escritório do restaurante, voltou com o bilhete azul, me entregou, se despediu e voltou a trabalhar com aquele sorriso que engana a todo mundo, menos aos príncipes encantados.

Maria é geminiana. Seu aniversário está perto. Ela vai fazer 30 anos. Aquela época, para elas, em que tudo o que foi escondido de si, aparece às três da madrugada, sem avisar, com quatro malas de 32 quilos, avisando que veio pra ficar.

Se um dia eu revê-la, ainda mais no Rio de Janeiro, cidade que também pratica aquele sorriso que engana todo mundo, prometo que pego na mão, mostro que escrevi este texto para confessar que o quanto me apaixonei por ela é o quanto sou apaixonado pela minha cidade. Convido para uma taça de vinho, não aceito sorrisos, não aceito maquiagem.

Maria e o Rio de Janeiro são mais bonitos, muito mais bonitos, sem maquiagem.

Crédito da foto: Dodô Azevedo 

Doncs anem

seg, 27/05/13
por Dodô Azevedo |

Barcelona, maio de 2013.

Fachada de prédio em Barcelona

Carta para Neymar.

Rapaz, Barcelona te espera ansiosamente. Te cuida, porque se hoje você já carrega nas costas, sozinho, as esperanças de uma nação inteira em vencer uma Copa do Mundo em casa, aqui a responsabilidade em ajudar o time catalão a voltar a ser o melhor do mundo é muito mais séria.

A começar pela própria expectativa do brasileiro para a Copa do Mundo. Aí no Brasil, as pessoas só colocam a bandeira na janela, só se orgulham da bandeira verde e amarela, a cada 4 anos, quando há uma Copa do Mundo. Em Barcelona, não. Você tem que saber que aqui na Espanha o buraco é mais embaixo. Pra começar, nem Espanha é. Barcelona é a principal cidade da Catalunha, região que está louca para ser um país à parte. Separar-se da Espanha. É nas sacadas de quase todas as janelas da cidade que está a bandeira da Catalunha, não da Espanha.

Mistura-se aqui futebol com política com a maior facilidade. Quando há um gol do Messi, nos bares agita-se não a bandeira da Espanha, nem mesmo a bandeira do clube – todo mundo balança é a bandeira amarela e vermelha da Catalunha. Da nação separada que ela quer ser.

Você, rapaz, vai jogar por essa revolução, cada gol seu dará força para o catalão separatista. E, dizem nas rodas de cervejas e tapas no Poblenou, hoje o bairro mais catalão da cidade, que há um interesse da Inglaterra nessa separação da Catalunha. Fica esperto. É um povo politizado, o catalão. Falam uma língua que parece com o espanhol falado pelo Mussum, dos Trapalhões. E também entre cervejas e tapas ouviram desconcertados ao reladt que chega, de que o prefeito do Rio, Eduardo Paes, tenha dado uns tapas num cidadão que resolveu mandar ele tomar naquele lugar, neste sábado, em um restaurante da Zona Sul do Rio. 

O prefeito da cidade olímpica.

Confirmando-se o fato, você vai ter trabalho para explicar como um negócio desses pode acontecer no seu país.

As Olimpíadas mudaram a vida de Barcelona, em 1992. Pasqual Maragall, prefeito da cidade na época, foi muito criticado antes das Olimpíadas. Falavam que ele desviava verbas, cuspiam nele na rua. Democracia. Ele nunca deu tapa em ninguém.

Mas não pense que, saindo do Brasil, você vai se livrar de problemas como corrupção e violência não, Neymar. Todo mundo na Europa se odeia. O povo de um país odeia o povo do país vizinho, o país vizinho odeia os seus imigrantes e os imigrantes odeiam a forma com a qual os locais os tratam. Em Londres, na semana passada, você viu que um imigrante passou a faca num soldado do exército britânico. Ontem, um grupo de ingleses, todos brancos, invadiu esse bairro querendo colocar fogo em tudo: nos imigrantes, em suas casas, mandarem eles de volta pra seus países. Ontem, em Paris, aconteceu uma manifestação enorme contra o casamento gay, aprovado pelo congresso francês. A manifestação começou pacífica. Mas no momento que escrevo, vejo na tevê, ao vivo, o couro comendo na esplanada de Invalides. Polícia versus um grupo que acha o homossexualismo uma aberração da natureza e é contra a presença de imigrantes de países pobres na França.

Nada que se compare com o que acontece nas periferias daí do Brasil, claro.

Mas também não vai achando que você está indo pro melhor lugar do mundo, Neymar. Já vi Bruna, sua namorada, pessoalmente, num evento de trabalho. Você tem bom gosto. Ela é a prova viva de que Deus é um designer inato. Mas em Barcelona, ou qualquer outro lugar da Europa, andando no meio da rua, o povo acharia – teria certeza – que meninas brasileiras, pelo tom da pele, formato das cadeiras, o suingue no andar, mesmo as doces e lindas, são prostitutas. Na Europa, o preconceito, característica que todos nós temos, é endêmico. Faz parte da formação do continente. Começa a perder uns gols pra ver do que vão te chamar pela Europa. Já te chamam de cai-cai, né? Neymar is a jumper, é o que li num jornal inglês faz umas semanas.

Boa sorte, cara. Não tenta se adaptar ao futebol europeu não. Vai na sua. Seja o Neymar, com todos os defeitos que apontam em ti. E, nas horas de folga, fora de campo, não olha muito pro lado não. As mulheres catalãs são lindas como as brasileiras. Ou é amor o que você sente por Bruna?

Se for amor, na hora que vocês forem alugar um filme para conhecer melhor Barcelona, ela vai entender se você seguir o conselho que vou te dar agora. Troca o “Vicky Cristina Barcelona”, do Woody Allen, pelo “Biutiful”, do Alejandro González Iñárritu. Se for amor, pega na mão dela e faz um passeio sem pressa pelo Poblenou, veja o vídeo abaixo, e entenda que se o prefeito brasileiro pode dar uns tapas num cidadão, e se os catalães podem querer abandonar a Espanha à mercê de sua crise econômica, você tá liberadaço para cavar quantos pênaltis quiser.

Até.

Crédito da foto: Dodô Azevedo

Tapete vermelho

ter, 21/05/13
por Dodô Azevedo |

Cannes, maio de 2013.

 

Dustin Hoffman tem um segredo para encarar O tapete vermelho: “Tequila” – ele diz, sem cerimônia.

Meu primeiro tapete vermelho foi justamente aqui em Cannes. Foi tão rápido que não vi quando acabou. Não doeu.

O segundo, dois dias depois, ainda em Cannes, foi um acontecimento. Era a gala de “On The Road”, e eu havia acabado de lançar “Fé na Estrada”, livro que conta minha história ao refazer a rota que Jack Kerouac fez nos anos 50. O percurso deu origem ao clássico livro que inspirou o filme de Walter Salles. Era o filme mais aguardado do festival. Disputava-se um convite com sangue e lágrimas.

Aqui em Cannes, não tem jeito. Gala é gala. Smoking completo. Cabeça aos pés. Senão, não entra.

Resolvi ir com meu Dr. Martens roxo – alguém tinha que  quebrar aquela mesmice. Era, afinal, a gala de “On The Road”! Kerouac iria puxar o meu pé à noite, se eu entrasse de sapato preto bico fino.

Fui sumariamente barrado, claro.

E aí parei a fila de entrada. Sentei no chão, no chão do tapete vermelho, e disse, sei lá em que língua, que não tinha sapatos pretos e que isso era um desrespeito com Jack Kerouac.

Atrás de mim, impedidos de entrar, o elenco do filme: Kristen Stewart, Kirsten Dunst, Garrett Hedlund, Viggo Mortesen.

Nas caixas de som, o locutor narrando o incidente. No telão, foco no maluco que sentou na entrada do tapete vermelho.

Eu estava sóbrio. Não havia tomado uma dose de tequila.

Meses depois, no Festival do Rio, era o tapete vermelho do meu filminho, no cinema onde fui criado, o Cine Odeon, na Cinelândia. Estava uma pilha. Faltava-me ar. Vontade de esmurrar uma lata de lixo. Gritar um palavrão. Faltava ainda uma hora pra sessão.

Me deram a dica do Dustin Hoffman.

Alguns rabos de galo depois, tudo bem.

De lá pra cá, perdi o medo. Tanto que já deu pra fazer um filminho com duas sessões no tapete vermelho que aconteceram até agora.

Pra você sentir o drama.

Não é vermelha a cor do tapete à toa. Além de remontar à antiguidade, quando o pigmento vermelho era dificílimo de se conseguir para tingir tecidos, encarecendo-os e tornado-os de uso exclusivo da nobreza, vermelho é a cor do drama.

Entra comigo no Grand Théâtre Lumière, a sala mais linda de cinema que existe. Onde tudo o que falam sobre sua projeção (a melhor do mundo) e som (o melhor do mundo) e grandiosidade (2 mil e duzentos lugares) é a mais pura verdade.

E a mais pura verdade é o mais verdadeiro sonho.

Vem comigo?

Praias

dom, 19/05/13
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento, Você

Cannes, maio de 2013.

O muro que separa a praia pública e a privatizada em Cannes.

O que é que o Rio de Janeiro tem?

Que não deixa, como Cannes e Florianópolis, fecharem suas praias para quem pode pagar por elas?

Quem o carioca acha que é, para no último verão se mostrar tão indignado, você lembra, com a instalação de um clube privado na praia do Forte de Copacabana?

Aqui em Cannes é assim: te deixam um pedacinho de praia livre, de graça, para quem quiser deitar na areia, esticar-se ao sol e banhar-se nas águas da Côte d’Azur. O resto, 90% da praia, é loteado e vira clube fechado. São uns vinte, numa orla quatro vezes menor que Copacabana. Fazendo as contas, em Copacabana caberiam uns 80 clubes. Gerariam emprego, acabariam com a criminalidade e a insegurança na praia. Cada um destes mini-resorts conta com toda a infra estrutura que não se encontra em Copacabana: banheiro de luxo, seguranças de terno, gravata e, o mais importante, óculos escuros – afinal, não queremos olhar nos olhos dos empregados.

Os seguranças se parecem com os soldados imaculados da série de TV “Game of Thrones”: mudos, escravos, eunucos, sérios, não olham pro lado, não veem o que não é pra ser visto. Obedientes, barram a entrada de quem não tiver grana para pagar. E, na verdade, ter praias privadas e pagas é algo que aqui se acha tão natural que os que não tem grana nem tentam enganar os seguranças eunucos, que acabam por ter o trabalho mais fácil do mundo. Mais ainda: o povo, e sim há em Cannes uma classe média baixa, o povo da terra, que trabalha geralmente na manutenção dos casarões dos ricos na baixa temporada, ah o povo nem chega perto da praia. E não reclama por isso não.

Quem o carioca acha que é?

 

 

 

 

Cannes é o Jardim de Cima, sede da Casa Tyrell na série “Game of Thrones”. A série é tudo o que você precisa, hoje, para entender a Europa. O brasão da família Tyrell é uma flor sobre um campo verde. Enquanto as outras famílias que compõem o reino fictício de Westeros (a representação de uma Europa medieval que se confere até os dias de hoje) estampam em seus brasões lobos, dragões e  ameaçadores polvos gigantes, tudo para impor respeito, o Jardim de Cima opta por uma flor. Porque tudo são flores para os habitantes do Jardim de Cima, e tudo são flores para os moradores de Cannes.

E tudo são flores os cariocas que acham injusta a indgnação de seus compatriotas com o fechamento de uma praia para os ricos.

Afinal, quando o carioca fica indignado com o fechamento de um trecho de praia em Copacabana ele está querendo dizer o quê? Que a praia é pública? Que ele paga impostos e por isso é dono da praia também? Que nem o Estado nem a iniciativa privada podem ser donos do mar? Que, ao contrário do reino do Jardim de Cima, de Cannes, tem-se no Rio uma desigualdade social tão mais aguda que fechar uma praia e cobrar ingresso por ela é simplesmente imoral?

Mas os ricos do Rio de Janeiro não têm direito também de ter sua praia particular, como as de Cannes e Florianópolis (onde a desigualdade social é também aguda mas aparentemente o povo está ok com isso)?

Mas os pobres não têm direito também de se tornarem ricos?

Aqui em Westeros, opa, na Europa, se você trabalhar muito, mas muito mesmo, durante anos, você acaba rico. No Brasil, muito trabalho não garante nada. No máximo, a sobrevivência.

O que o carioca tem que deixam as praias livres para vendedores ambulantes vindos ali da favela a três quarteirões da praia, suburbanos, mulatos, prostitutas, se misturarem com todo mundo? O que o carioca tem que deixa, em primeiro lugar, as favelas aparecerem, o morador de um barraco no Vidigal ter direito a mesma vista do turista que se hospeda no hotel Sheraton? Será que é por isso que a diária no Sheraton da Avenida Niemeyer está o mesmo preço de um quartinho na  Rue d’Antibes, que nem tem vista pro mar, aqui em Cannes?

O que o carioca tem pra gostar tanto de misturar-se, e não se excluir?  O que o carioca tem que não acha a menor graça em pagar para entrar na praia?

Eu acho que sei o que o carioca tem.

O carioca não é imaculado.

O carioca não é eunuco.

 Fotos: Dodô Azevedo

 

 

 

Calma

sáb, 18/05/13
por Dodô Azevedo |
categoria Cinema, Você

Cannes, maio de 2013.

Cena do curta 'Pouco mais de um mês', de André Novais Oliveira

“A calma é um elemento criador. Purifica, recolhe, põe em ordem as forças internas, compensando o que o desordenado movimento dispersa.” –  Stefan Zweig

 

Lembro ter prometido aqui que não falaria de cinema.

Costumo não cumprir as promessas que faço – lembrem-se disso.

Acontece que acabei de ver, aqui no Festival de Cannes, “Pouco mais de um mês”, do André Novais Oliveira.

Do André não.

De André.

Não conheço o André.

É que a vida é uma correria e não tive tempo de ir ao último festival de Tiradentes, onde o curta de André foi urgentemente selecionado para mostra Semana da Crítica, aqui em Cannes, que busca revelar novos e talentosos diretores pelo mundo.

A vida é uma correria e mesmo aqui no Festival só consegui assisti-lo, com calma, em uma cabine do Short Film Corner.

E aí, Cannes, essa correria estressada de dias em que você sabe que há muitos amigos seus do Brasil na cidade mas ninguém consegue ver pessoalmente ninguém, esse desencontro permanente, porque todo mundo tem hora pra tudo, pra reunião, pra entrevista, pro almoço, pro táxi, essas horas exatas, essa precisão na agenda de cada um, e a volatilidade barroca de balneário que em Cannes grita, finalmente acalmou-se.

Minha cabeça acalmou. E saí da sessão andando pelas ruas pensando quanta gente ali, na rua, sem saber que o grande filme do festival, o melhor filme até agora deste festival estava ali, sendo exibido de graça. E todo mundo surdo. E todo mundo cego.

“Pouco mais de um mês”, esse título que finalmente atribui imprecisão ao tempo e, exatamente por isso, encontra-se imediatamente com o espectador, começa com um longo plano praticamente sem luz. Um casal conversando em um quarto de janelas fechadas. Em cinco minutos, nossa retina começa a se acostumar e, se ajustando como uma câmera digital automática, começamos a enxergar algo. Olha que bonito: o filme começa com o autor dizendo que todo o equipamento cinematográfico está no espectador.

Com calma, os personagens levantam, brincam com as cortinas, a luz entra, a cor entra e, elemento por elemento, muito calmamente, temos uma aula prática sobre cada um dos elementos do qual o cinema é feito.

O ator que interpreta o homem do casal é André, o autor do filme. A atriz é sua namorada na vida real.

Eles, atores e personagens, se conhecem faz pouco mais de um mês.

Um mês é muito tempo? É pouco tempo? É o suficiente? – Pergunta o filme de André.

André filma como quem “passa um café” na cozinha de sua casa.

O filme, e um bom tanto da nova cinematografia brasileira, é também sobre o quanto se perde por não entender a grandeza do gesto que é passar um café para alguém na cozinha de casa.

Ao sair do quarto, o casal toma café da manhã.

Calmamente.

Depois, saem de casa. Vão juntos até o ponto de ônibus. Conversam. Aos poucos, a figura do casal é envolvida por letreiros das lojas que estão em volta do ponto, e das propagandas estampadas nas carrocerias dos ônibus. Tem-se tudo para distrairmo-nos do casal, mas não, continuamos vidrados na conversa mansa deles, identificados com ela.

Saí da cabine direto no Palacio do Festival na Croisette. Letreiros piscando, gente apressada, limusines engarrafadas. Mas agora eu estava imune. Eu estava forte.

Eu estava com uma força que só a calma me dá.

Tem força e calma também o trabalho de som de Bruno Vasconcelos e a arte delicada de Tati Boaventura.

Obrigado por esta força, André. Um dia a gente se encontra e eu te passo um café.

Foto: Divulgação

Festim

sex, 17/05/13
por Dodô Azevedo |
categoria Comportamento

 

Cannes, maio de 2013.

Foi o caso de “eu estava lá”. Sim, eu estava quando o boçal brincou atirando com um revólver de festim, e para o alto. É cheio dessas excentricidades aqui, durante o festival, no meio da rua: às vezes é um sujeito que, por esporte, grita “help!” pra chamar a atenção. Não houve, como a Reuters quer vender, “um tiroteio em Cannes”.

Não mesmo. Tanto que vi a cena e me dirigi à sala de cinema, ali do lado, para assistir ao meu filme. Também o resto de Cannes toda: cinco minutos, vida de volta ao normal. E olha que nem todos são cariocas como eu, acostumados com esse tipo de aventura.

O vídeo do programa sendo interrompido e do elenco dando no pé, no melhor estilo “é arrastão!” já foi parar no YouTube. Pode ser visto aqui.

A correria no estúdio na praia é real e, sim, não deve ser desprezada como um aviso de que andamos com medo. De tudo e em qualquer lugar. Cannes tem a segurança mais leve que já vi em grandes eventos. Por isso que você vê os artistas dando pinta na rua, num café. E já hoje, uma hora após a brincadeira do paspalho, não houve qualquer mudança de rotina na segurança, e a essa hora, duas da manhã aqui, os bares estão lotados e as pessoas andando nas ruas, voltando bêbadas cambaleantes em seus vestidos de gala, sozinhas e seguras.

MAS, na hora em que cair a ficha de um grupo radical neste continente com tensões tão reprimidas, Cannes vai mudar. É uma questão de tempo. Pode ser amanhã, pode ser em 2018. A questão não é onde.

 

Fusuet

sex, 17/05/13
por Dodô Azevedo |

Cannes, maio 2013.

 

A Croisette 2013

 

O Festival de Cannes acabou de fazer 66 anos. É, ele, o casal desta foto, é o casal do filme premiado pela Palma de Ouro no ano passado, um teimosia em fazer par com um cinema que ainda se faz, mas que o mercado acha um tipo de cinema idoso.  Nas fachadas dos grandes hotéis, propagandas de dimensões impossíveis, cartazes de 20 mil metros de altura, de “O Grande Gatsby” ou do novo filme de zumbi com o Brad Pitt. O Festival de Cannes luta para não ser atropelado pelos novos tempos.

É um casal chique, clássico, esse da foto. E não há hispters na cidade, o que deixa, na minha opinião, o festival ainda mais chique. Li no Hollywood Reporter que Cannes está decadente, cheia de italianos bregas novos-ricos ostentando seus iates gigantes, seus carros e roupas de grife, de mulheres de sicone, de garotas de programa, todos com um bronzeado esquisitíssimo, cor de laranja. Pois eu sou apaixonado por descer a Rua Antibes justamente por causa disso. Cannes não é o festival de Coachella. Cannes não é Tribeca. Por ser uma cidade muito cara, ainda mais nessa época, a garotada não vem. Mentira. Vem sim. Mas vem contando dinheiro e dando uma lição de cinefilia nos meus tão amados decadentes frequentadores.

 

Os estudantes franceses, se pedirem, ganham um crachá que dá direito a ver todos os filmes do festival, de todas as amostras, em qualquer uma das centenas de salas, algumas improvisadas em salões de conferência de hotéis espalhadas pela cidade. Quase ninguém sabe, mas não há só o Grand Palais, o cinema onde você vê as pessoas no tapete vermelho e tal. Nada disso: durante o festival há uma sala em cada esquina e os ingressos são todos de graça. Basta você ter o famoso crachá. E para ter um crachá você tem que ser do mercado, ou estudante francês de cinema. Logo, aquela turma todas de italianos e italianas maravilhosamente decadentes que ficam ali dando pinta está ali só pra isso, dar pinta, atrapalhar o trânsito. São 5/4 do público nas ruas. Não fazem ideia de que filmes estão passando.

Por isso é tranquilo abordar um diretor, ou um ator ou atriz famosos no meio da rua. Salvo gente como Tom Cruise e Steven Spielberg, todos podem andar anonimamente pelas ruas de Cannes. Porque nas ruas de Cannes você não encontra gente vestida de Chaplin, ou de Marlyn Monroe. Não. O papo aqui é assim, ó:

 

Porque Cannes, vamos chamar o nome pela coisa, não fica na França. Fica é na Itália. Tal como quem vai a Flip (Festa Literária de Paraty, RJ) se espanta com a quantidade de paulistas, o que acontece aqui em Cannes dá-se por conta da proximidade geográfica de uma cidade a outro país. Entre Paris e Cannes vai a distância Rio-Salvador. Enquanto de carro, em duas horinhas você está em Monte Carlo, por exemplo. Logo, Itália é logo ali. Aliás, o GP de Fórmula 1 de Monte Carlo começa exatamente quando termina Cannes. Não é à toa. Procura no Google “That’s the price of love”, clipe do New Order, que imagens valem mais que mil palavras.

Nesse contexto, não poderia ser mais apropriada a estreia e a badalação do “The Bling Ring”, novo filme da Sofia Coppola que venda a delicinha da Emma Watson como estrela principal do filme. Não é. É quase personagem secundária. Mas só dá ela nas capas dos magazines aqui. Ontem teve a tão esperada festa do filme. Em festas aqui, exclusivíssimas mas não tanto (se a portaria sentir falta de “gente bonita” não tem o menor pudor de importar penetras do lado de fora), todo mundo fica louco. Minto de novo. Você não vê ninguém famoso louco. As estagiárias e os penetras, no entanto, piram na micareta. Antes do baile de Sofia Coppola, houve o do Francois Ozon, que terminou cedo. Era coisa mais chique, mais vogue. Logo após, no terraço do Hotel não-vou-dizer-o-nome, a festa de Sofia era Hype. O tipo de gente? Pode catar no Google outro clipe: “Deeper and Deeper”, da Madonna, com a própria Sofia Coppola novinha, fazendo figuração. Enquanto na festa do filme de Ozon tocava-se eletro, na de Sofia o couro comia ao som de Jackson 5, Stevie Wonder, Elvis Presley, enfim, tudo o que é clássico.

Não há nada mais contemporâneo do que o clássico.

Em toda Flip há uma discussão sobre as festas que vinham acontecendo nos últimos anos. Cada editora dava uma festa. Começaram a reclamar. A dizer que as festas tiravam o foco da discussão literária. E, de fato, não dá para beber uísque até 5 da manhã e às 11 estar pronto para assistir uma palestra sobre Euclides da Cunha. Mas esse fuzuê (gosto tanto dessa palavra, parece francesa inclusive), esse bafafá do público “nada a ver”, o que quer ver e ser visto, é pra mim o que garante o clima fundamental para qualquer festival de arte: um “não vamos nos levar a sério” no ar. Foi por isso que rimos muito, Nicole Kidman e eu, quando nos revimos rapidamente num dos acessos da sala Bunuel, na tarde de sexta: ela reconheceu na hora o sujeito que havia ficado em cima do rabo dela em 2012. Até o fim do festival eu conto. Agora é hora de colocar o smoking e ir para mais uma gala, a do filme “Tian Zhu Ding”, do Jia Zhangke, encarar o tapete vermelho, a gravata borboleta, os rituais, todas essas coisas que nos deixam mais clássicos, mais contemporâneos.

Fotos: Dodô Azevedo

 

Vida de Cannes

qui, 16/05/13
por Dodô Azevedo |

Cannes, maio de 2012.

Estou em Cannes para exibir meu curta-metragem, “Eva no Verão”. Fernanda Paes Leme, a protagonista, chega na segunda-feira. Mas não estou nem estarei aqui para falar de cinema, não. Essa foto foi escolhida para ilustrar o que vou fazer. Ao invés de olhar para a tela, vou olhar para o público. Estamos muito bem servidos de repórteres e críticos de cinema aqui, inclusive o incansável Rodrigo Fonseca, repórter de O Globo, que não dorme durante os 11 dias de festival para informar você sobre o que está ocorrendo nas telas.

Aqui, não. Vamos falar de Cannes por dentro, de quem frequenta, que tipo de gente, e o que fazem, onde comem, onde dormem, onde ficam bêbados. Vamos falar das festas por um viés que jornalista algum pode responsabilizar-se. Meu crachá é de autor, e é como autor, e para novos autores principalmente, que vou escrever. Tentar desmistificar Cannes um pouco, mitificando-a, aproximando-a de você, que sempre pensou em participar do festival mas sempre pensou que precisa ser uma pessoa extraordinária, especial, cheia de dinheiro e com bons contatos para estar aqui.

Não precisa nada disso.

Tanto que eu estou aqui.

Não é?

E daqui de Cannes vamos falar, por exemplo, das cinco, seis praias privativas, privatizadas, com boate e champanhe, dessas sim só pra gente com bala na agulha, dessas nos moldes do clube privado que fizeram em Copacaba no último verão e criou tanta polêmica, lembra? Vamos falar dos mendigos na rua, das tentativas frustradas de uma comida decente nesta cidade, do formato do biquíni que elas estão usando na praia, do sorvete de soja, do dia em que fiquei quinze minutos em cima do rabo da Nicole Kidman. Sim, ela própria, em pessoa.

Juro.

Nada aqui de falar da irrelevância da cinematografia de Francois Ozon, da expectativa pelo filme da Claire Denis, do fato que não saio daqui sem bater um papo com Jim Jarmush, ou com Tsai Ming-Liang, perguntar como ele consegue fazer esse cinema todo que penso que ele faz, do quanto quero passar longe do Alexander Payne, e do quanto quero ficar perto dos realizadores brasileiros, em sua maioria de fora do eixo Rio-SP que estão na área, cavucando seu espaço. Nada disso. Eu não entendo de cinema. Vamos falar é do rabo da Nicole Kidman.


Crédito das fotos: Dodô Azevedo 

Carioco

qua, 15/05/13
por Dodô Azevedo |
categoria Sem categoria

Londres, maio de 2013.

Portobello Road, Londres, 2013. Foto por Dodô Azevedo

Queria te dizer, Caetano Veloso, que hoje estou triste aqui em Londres. Triste e com frio. Faz alguns meses vi você no documentário Tropicália, desmistificando o exílio em Londres. Revelando que, afinal, um exílio é um exílio e que você, baiano, não gostava dessa chuvinha imperiosa daqui, não gostava do frio insistente daqui, não gostava de viver pra dentro, como vivem as pessoas aqui. Também contava o alívio do dia em que Péricles Cavalcanti foi contigo até Portobelo Road e lá você descobriu o som do reggae. E descobriu o Electric Cinema, onde você se sentia vivo muito vivo e via filmes o dia inteiro pra ver se o tempo passava mais rápido. Aí você cantou que nove entre dez estrelas de cinema faziam você chorar. Pois é, baiano Caetano, estou triste, com frio, pra dentro, sou carioca, estou oco, carioco, e tenho notícias pra ti sobre Portobelo Road e do Electric Cinema.

Quando você frequentava Portobelo e fez o Transa com o Macalé, o Tutti, o Moacyr e o Áureo, ainda estava para entrar nos trinta anos, não é? Pois é: não há ninguém, hoje, com menos de 30 anos, que frequente a região. As lojinhas de Portobelo antiguidades estão meio mortas, meio com frio, escravizadas à demanda por produtos sem história, por uma xícara que pareça ser do século XVIII mas que tenha sido fabricada no máximo no ano passado. Sabe essas pessoas que tem nojo de comprar em brechó porque outra pessoa já vestiu a roupa? Pessoas limpinhas e comportadinhas, com os olhos opacos, que observam indiferente um artesanato ou um artista de rua se prestando a fazer o papel de um artista de rua qualquer pra não atrapalhar o raciocínio dos turistas? Sabe gente que acha que tá tudo bem? Pois é. É esse tipo de gente que frequenta Portobelo hoje. E não se toca mais reggae na rua.

No Electric Cinema está em cartaz um filme chamado “Star Trek – Into Darkness”. No Brasil, “Além da Escuridão – Star Trek”. Estou triste e com frio aqui hoje, Caetano, mesmo com tantos amigos em volta, mesmo hospedado em Brixton, o bairro negão onde hoje é a terra do reggae. Ou talvez por estar hospedado em Brixton. Por ter entrado num supermercado e comprado um cacho de bananas lindas por três reais. Por ter visto uma negona linda, batalhadora, de seus 40 anos, mãe de três filhos, voltando do trabalho pesado e passando no supermercado pra comprar, por dez reais, uma garrafa de um bom vinho e de um excelente queijo que no Brasil custa 100 reais – inviabilizando que uma brasileira negona, linda, batalhadora da zona norte possa chegar em casa e tomar um bom vinho. Ou talvez por perceber cada vez mais gente com medo dos brasileiros que não podiam comprar um bom vinho e hoje podem. Brasileiros com medo do reggae. Penso nisso, Caetano, e me vem à cabeça o subtítulo do filme “Star Trek”.

Estou hospedado na casa de uma linda e jovem cantora e compositora de ascendência italiana, nascida na Bahia como você, Caetano, e criada em Oxford, aqui na Inglaterra. O nome dela é Mariana Magnavita. Se você procurar por ela no Google vai estranhar como posso estar triste ao lado dessa criatura. Mas, no momento em que escrevo estas linhas tristes, ela pega o violão na sala e começa a cantar uma de suas composições: “♫ …Is a black void and is coming to stay a while… ♫” – Ouço daqui. Encaro como um diagnóstico. Ver esses ônibus de dois andares que chegam todos no horário, que prestam o exato mesmo serviço a toda a população da cidade, seja ela do bairro aristocrata ou da classe trabalhadora. E lembrar que no Rio as pessoas já há tempos se tratam com indiferença dentro do metrô, começando a se igualar aos ingleses justamente no que eles tem de pior. “♫ Words of sorry, words of sorrow, you’ve rehearsed all you lines ♫”, completa Mariana, sem ter ideia do meu estado.

Chove o tempo inteiro em Londres.  No dia seguinte, não há notícia de enchente, de desabamentos, de mortos, nada, Caetano. E, como diz a canção que vem da sala, os lamentos parecem todos ensaiados: esse aparecimento do Lobão, essas coisas que ele vem dizendo, e até o outro lado, na já esquecida treta com o Mano Brown. Essa nova direita brasileira, que só nasceu porque a esquerda tomou o poder. E a esquerda de hoje é resultado dos anos em que a direita um dia esteve no poder. Aqui na Europa viu-se isso. Na virada dos anos 80 para os 90, França e Inglaterra tiveram governos de esquerda, o que criou uma nova direita essa que hoje é capaz de fazer corar o mais Feliciano dos presidentes de CDHMs, o mais bolsonaro dos bolsonaros. No Brasil, vive-se ainda um ensaio de uma nova direita. Tempos mais agudos estão pela frente. Que farão surgir uma nova esquerda, mais madura, menos autodestrutiva do que a que temos. “♫ They don’t ease, me. They don’t please, me. Or melt my icy eyes ♫”. A voz de Mariana é tão bonita, Caetano, você tem que ouvir.

Talvez eu esteja sentido falta de suar. Eu adoro suar. Talvez eu esteja sentido falta da Lapa, essa Portobelo Road que não esfria com as décadas. Talvez eu esteja sendo assombrado pelo fantasma do Ivan Lessa, que deve estar rindo de mim, morrendo de frio em maio. Não me animei ainda com o novo álbum do Daft Punk, ele também parece um um ensaio. É o tipo de disco que agrada o tipo de pessoa que enjoou do Transa só porque ele virou o favorito da garotada. O tipo de pessoa que fala “O Transa tá batido”.  Tô tomando um vinho de mel feito na Eritréia, Caetano. O álcool só me faz chorar. Eu posso ir embora dessa cidade a hora que quiser. E ainda levar Mariana comigo. Pararmos de sentir frio. Você, não. Teve que ficar. E todo mundo achando que você estava, baiano Caetano, arrasando em Londres. Enquanto isso eu, aqui, carioco arrasado em Londres. Talvez seja a hora de voltar a botar o pé na estrada.

Se me perco, não me encontro mais.

Caetano, você tem 70 anos. E eu fico imaginando o teu funeral. Até quem não gostava de ti vai reconhecer tua importância. E fico com um medo danado: morrendo aqui a (só) trinta aos Chico Buarque, Gil, João Gilberto. Eu deveria escrever uma coluna com o título “Quando Caetano morrer”.

70 anos. E a gar0tada aí: você senta, espera alguma coisa, e nada.

Morre não, Caetano, pelo menos não até a garotada envelhecer.

Em troca, prometo cair fora de Londres com Mariana.

Escrevo a próxima coluna de Cannes, França, baiano.

Eu, menos oco, carioca, na cote d’ázur. Você, corte de azul, tome essa canção como um beijo.

Atenciosamente, Dodô Azevedo

Crédito da foto: Dodô Azevedo

 

Uma estátua para ela

seg, 13/05/13
por Dodô Azevedo |
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Londres, maio de 2013.

Foi um domingo feliz  no pub Hawley Arms, coração de Camden Town, Londres. Comemorava-se uma questão que arrastava-se há meses: fazer ou não fazer uma estátua para Amy Winehouse? A cantora nasceu e foi criada no bairro. O Hawley Arms era sua segunda casa. O que no Rio chamamos de o boteco da esquina. Neste domingo, foi divulgada a decisão final do Conselho de Camden, numa espécie de reunião de condomínio: vão sim construir uma estátua para a cantora.

Fizemos um pequeno vídeo para dividir com vocês a vibe do local. E alguns dos recados pós-morte escrito por fãs nas paredes do banheiro feminino, este lugar íntimo e sagrado, este último refúgio da mulher nesse mundo masculista (gosto de chamar de masculista, palavra inventada, porque machista e masculino todo mundo é um pouco. Masculista reúne o pior de um e de outro). O melhor recado, para Amy Winehouse, você vai ver no filminho se prestar bastante atenção, foi justamente escrito por uma brasileira, porque mais direto, sincero, preciso e humorado. Assista ao vídeo, te espero aqui.

Pronto, voltamos. Entendeste a idolatria, certo? É, mas acontece que tenho um ponto:  que artista merece receber uma estátua? O que fez Amy Winehouse para merecê-la? A artista é um exemplo a ser seguido?

Ela mesma dizia que não, no que o Dapieve chamou, numa de suas colunas em O Globo, de O Hino Nacional de Amy Winehouse: “You Know, I Am No Good.” – Lennon ganhou um memorial em Liverpool, mas por seus serviços prestados à questões de comunidade: militância pela paz no mundo, pelo o fim das guerras, pelo fim do preconceito. Amy não ligava para política. Nunca pensou no coletivo. Cantava o próprio umbigo. Mas, exatamente por isso, fazia uma arte tão íntegra e tanta gente se identificar com ela.

É o suficiente para merecer uma estátua? Tecnicamente, até este domigo, não. A liberação de uma estátua para Amy trata-se, então, de um precedente fascinante, ainda mais que será erguida em Londres, que quando ainda se chamava Londinium, no século V depois de Cristo, foi queimada por Boadicéia, ou Boudica, rainha Celta, revoltada, irada, com as atrocidades cometidas pelo Império Romano, que invadira a Bretanha dois séculos antes. Pagã, flor que não se cheirasse, Boadicéia e seu exército derramaram tanto sangue nas ruas de Londres que até hoje no subsolo da cidade inteira há uma faixa de de sangue coagulado – que pode ser vista ao vivo hoje numa amostra de solo exibida na seção de geologia do Museum of London.

Ter feito de Londres uma cidade para sempre sobre uma poça de sangue foi o último ato de fúria feminina contra as ambições masculinas na história da humanidade. Foi, também, o último triunfo de uma religião pagã sobre o cristianismo. Para a religião Celta, o sangue coagulado no subsolo nutre a cidade de força feminina. Força que incita as mulheres como uma lua cheia, que as faz procurar uma independência radical, a cantar “Eu não valho nada”, a beber como se fosse homem, fazer o que quiser com seu próprio corpo, inclusive o que existe de mais feminino, depois da capacidade de dar à luz a outro ser humano: autodestruir-se. Amy Winehouse se encaixa nesse perfil.

Abre parênteses: para aprofundar-se neste assunto tão importante, vale a leitura das 640 páginas de Beyond Power: On WomenMen and Morals, de Marilyn French. Fecha parênteses.

Uma de minhas ex-mulheres mora aqui, no Reino Unido. Durante um almoço agradabilíssimo com ela no restaurante do National Portrait Gallery, percebi que ela fez mais uma tatuagem. Toda vez que algo importante acontece na vida dela, tatua-se, sem pensar muito, esplendorosamente entregue às suas intuições. Amy Winehouse era famosa por suas tatuagens, que apareciam também quando algo grande acontecia em sua vida. Mulheres assim fazem de seu corpo um diário, um  inventário de si que só existe enquanto houver no corpo vida, pois para esse tipo de mulher, a vida, essa coisa incrível, essa coisa terrível, vem antes de tudo. Um desafio às nossas intenções arrogantes quando escrevemos (tatuamos as páginas de?) um livro, nossas tolas intenções de imortalidade.

Maio é o mês de Amy Winehouse. Além da estátua, será ser tema aqui na cidade de uma exposição de arte. Semana que vem, em Cannes, será exibido o primeiro documentário independente sobre sua vida. Ela merece sim uma estátua aqui em Londres. Ela merece dar o troco por ter sido feminina demais e o mundo não suportar isso, e ser imortalizada, como Boadicéia, que ganhou uma pomposa estátua ao lado do Big Ben – Amy Winehouse merece dar o troco e ser ela mesma uma tatuagem nesta cidade de sangue e pedra.

Isto posto, pensei comigo e resolvi estender um assunto a vocês:

Que cantora brasileira mereceria ser, hoje, homenageada com uma estátua? Onde? E porque?

Os comentários estão à disposição de vocês. Aguardo sugestões.

Tatuem esta coluna.



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