Primer amor
Barcelona, maio de 2013.
A moça mais sorridente que já conheci se chama Maria, tem 29 anos, e é geminiana. Trabalha como garçonete num restaurante da rua Dr. Trueta, no bairro de Poblenou, e me presenteou, quando nos despedimos um do outro em meu último dia na cidade, com um pequeno envelope azul, com um cartão azul dentro, onde se lia a seguinte frase, diz ela, de autoria do filósofo espanhol José Ortega y Gasset:
“A vida é um naufrágio constante.”
Maria é muito famosa no Pobleneu. Pode-se dizer que é a musa do bairro. É uma mocinha de pernas finas, seios pequenos e baixinha. Mas, quando passa na rua, não tem pra ninguém. Embora se dê muito bem com mulheres, a maioria de seus amigos são homens, e se não fosse por uma feminilidade franca, sem frescura, sem nove horas, um instinto maternal equivalente a oito vezes o seu tamanho e uma voz rouquinha de quem está desde anteontem debaixo do edredom com o namorado, você juraria que ela é um menino.
Após o expediente, Maria costuma ir para o boteco da esquina. Com homens, todos amigos, loucos para levá-la para debaixo do edredom – apesar da espontaneadade dela ao comunicar que “amizade é mais importante que isso”. Maria fuma. Fica ela então fumando, rodeada de homens, conversando assunto de homem a noite inteira até que ela resolve ir embora. Nesse momento, todos os homens se entreolham e comentam que está na hora de ir pra casa também. Eles não percebem, mas Maria é o macho alfa do grupo.
Quando Maria está afim de beijar alguém, ela beija. Quando quer dormir com alguém, ela dorme. Quando quer namorar com alguém, ela namora. Não é que Maria pode tudo. É que ela simplifica as coisas. Quando ela está com raiva, fica com raiva. Quando dá uma gargalhada, é daquelas de salvar o teu dia. Não é que Maria pode tudo. É que ela faz o que ela pode. Tanta gente prefere tentar fazer o que não pode e desdenha do fazer-o-que-pode, o que é permitido, que esse caso simples que Maria é, na verdade, desconcerta e encanta a todos.
Mas Maria não é simples. Ela ri, sorri, trabalha o dia inteiro, vive maquiada. À noite, tira a maquiagem e bebe com os amigos; vai para ali, vem pra cá, não para. Maria corre por um motivo: ela não quer ser pega. Não ela, Maria musa do Poblenou; mas uma outra Maria, uma que se esconde, uma que ninguém conhece. Ninguém, não; ela mesma conhece um pouquinho essa Maria escondida. E o pouco que conhece, odeia. A Maria escondida é uma menina frágil, mulherzinha, que ao invés de dar colo quer colo, que odeia o que faz, gostaria de encontrar o cara certo, ter três filhos e viver para a família, odeia o tempo que perdeu se tornando independente, odeia até a burrice de seus amigos (Maria é muito inteligente, mas esconde isso – uma estratégia muito inteligente).
Maria, a musa do Pobleneu, se esconde porque tem medo de que ninguém mais goste dela se a Maria escondida vier à tona. Ela não se dá o direito de inteira ser.
E quem não se dá o direito de inteiro ser, fica com essa sensação de que precisa, minuto a minuto, gritar “Oba!” para abafar os gritos de “Socorro!” que vem do fundo de si.
O sonho de Maria – confidenciado numa noite em que voltei ao restaurante no qual ela trabalha para bater um longo papo – é morar no Rio de Janeiro.
Me pediu para, como carioca, resumir a cidade.
Eu disse que o Rio de Janeiro era muito parecido com ela: uma cidade que precisa gritar “viva!”, “oba!” o tempo inteiro para abafar os gritos de socorro.
E que talvez ele, o Rio de Janeiro, seja mais bacana que Barcelona justamente por isso. Que esta tensão torna a cidade mais viva, menos fácil de se viver, mas mais viva.
O Rio de Janeiro e Maria estão, no fundo, esperando o dia em que alguém pegue pela mão e diga: “Vem comigo ser tudo o que você é. Só assim, pode-se resolver os problemas que faz-se esta questão toda de mante-los escondidos.”
Maria precisa do que as mulheres desde criança aprenderam a chamar de príncipe encantado.
Já o Rio precisa de um povo encantado.
Por povo entende-se eu, você, o sujeito que xingou o prefeito e o próprio prefeito.
O príncipe encantado de Maria apareceu no meio de nosso papo. Era um garoto, Pedro, sete anos de idade, que brincava com os amigos na praça ao lado. De cinco em cinco minutos, o moleque batia no vidro e gritava: “Maria, acuda! Os outros meninos estão arrancando as flores do jardim do restaurante!” – Maria saía e nada. Os meninos jogavam futebol. As flores estavam intactas. Pedro voltava e fazia tudo de novo. Maria, divertida, dava atenção ao garoto. Comentei: ele está apaixonado por você, Maria. Você é, provavelmente, o primeiro amor da vida dele.
Fiz uma foto de Pedro finalmente convidando Maria para “uma taça de vinho mais tarde” – palavras do moleque. Maria riu, deu uma palmada na bundinha do garoto e disse: “Você não sabe o que está falando!”
Pedro tem a manha.
Maria comentou: “Pena que vocês começem assim, tão homens aos sete anos e, na medida que vão envelhecendo, vão se tornando moleques por dentro. Viram uns gillipollas. Fazer o quê? Me cago en la hostia. Me cago en la virgen santa.”
Eu, moleque, carioca, saí pela tangente: “Bom, essa é, na verdade, uma conversa de despedida. Amanhã tenho um voo para Paris.”
Ela foi até o escritório do restaurante, voltou com o bilhete azul, me entregou, se despediu e voltou a trabalhar com aquele sorriso que engana a todo mundo, menos aos príncipes encantados.
Maria é geminiana. Seu aniversário está perto. Ela vai fazer 30 anos. Aquela época, para elas, em que tudo o que foi escondido de si, aparece às três da madrugada, sem avisar, com quatro malas de 32 quilos, avisando que veio pra ficar.
Se um dia eu revê-la, ainda mais no Rio de Janeiro, cidade que também pratica aquele sorriso que engana todo mundo, prometo que pego na mão, mostro que escrevi este texto para confessar que o quanto me apaixonei por ela é o quanto sou apaixonado pela minha cidade. Convido para uma taça de vinho, não aceito sorrisos, não aceito maquiagem.
Maria e o Rio de Janeiro são mais bonitos, muito mais bonitos, sem maquiagem.
Crédito da foto: Dodô Azevedo