Rio Acre, em Rio Branco, dá indícios de seca poucos meses após vivenciar segunda maior enchente desde 1971. Imagem de 24/04/24. — Foto: Melícia Moura/Rede Amazônica
Pouco mais de dois meses após o Rio Acre, em Rio Branco (AC), alcançar a segunda maior cota histórica e atingir mais de 70 mil pessoas com uma enchente devastadora, o manancial chegou a 2,52 metros em maio, menor marca para o mês nos últimos cinco anos. A situação alerta para a possibilidade de um período de seca que, segundo especialistas, pode se antecipar e se tornar cada vez mais frequente em um menor espaço de tempo.
👉 Contexto: Desde o início deste mês, o principal afluente do estado está abaixo de 4 metros e preocupa autoridades pela possibilidade de uma seca severa em 2024. Nesta quinta-feira (30), a Defesa Civil Municipal marcou 2,52 metros, mais de 15 metros abaixo do que foi registrado em 6 de março deste ano, quando o manancial alcançou 17,89 metros e se configurou como a maior enchente desde 2015 em Rio Branco.
Para entender o processo de mudança climática que afeta o principal rio do Acre, é preciso compreender os seguintes fatores:
- Influência de sistemas climáticos, como o El Niño;
- baixo índice de chuvas na região;
- mudança no ciclo hidrológico, causado pela emissão de gases de efeito estufa.
Estes tópicos contribuem para o baixo índice de chuvas na região. A situação contrasta com a vivenciada no início do ano, quando o manancial transbordou, e o total de chuvas chegou a 438 milímetros. (Veja no gráfico abaixo como o nível do rio esteve em situações extremas diferentes em períodos próximos nos últimos 3 anos)
Como projeções deste fenômeno de seca, é possível que haja alto risco de desabastecimento na capital e até mesmo possibilidade de o Rio Acre "morrer". Em setembro de 2023, foi decretada emergência em áreas que sofriam com a falta d'água, situação esta reconhecida pelo governo federal nos 22 municípios.
Nesta mesma época, cerca de 40% da produção da zona rural foi afetada e o estado recebeu ajuda de mais de R$ 8 milhões para amenizar os impactos da seca.
Rio Acre marcou 2,79 metros em maio de 2024 — Foto: João Cardoso/Rede Amazônica Acre
Sistemas climáticos
Em todo o mês de abril, o Rio Acre ficou abaixo dos sete metros na capital — o maior índice foi marcado no dia 14, quando atingiu 6,42 metros. Já em maio, o manancial começou medindo 4,89 metros e não ficou acima desta marca até então — a média histórica para o mês é de 5,63 metros. Além disto, houve chuvas significativas em apenas dois dias, em 4 e 5 de maio.
O coordenador da Defesa Civil Estadual, coronel Carlos Batista, afirmou em entrevista ao g1 que o nível do Rio Acre está abaixo do mesmo período em 2023, o que pode ser indicativo de seca intensa em 2024. Segundo ele, o estado se prepara com planos de contingência para amenizar os impactos de uma possível estiagem prolongada.
Rio Acre registrou menor nível em maio de 2024 se comparado com os últimos 5 anos — Foto: Melícia Moura/Rede Amazônica
"Este ano, já solicitamos de todas as coordenadorias municipais os seus planos de contingência voltados para os incêndios florestais, voltados para essa seca mais prolongada se ocorrer, para que a gente entenda quais são as ações que os municípios estão fazendo e vão fazer durante esse período", explicou.
Esta projeção de seca é prevista também pelo professor Foster Brown, pesquisador da Universidade Federal do Acre (Ufac) e doutor em Ciências Ambientais. Ele apontou que a seca extrema que assolou o Acre em 2023 estava sob a influência do atual ciclo do El Niño.
Tradicionalmente, o fenômeno El Niño ocorre entre períodos de dois a sete anos, causa secas no Norte e Nordeste do país — e chuvas abaixo da média — principalmente nas regiões mais equatoriais; além de provocar chuvas excessivas no Sudeste e Sul do país, como as que estão ocorrendo no Rio Grande do Sul.
Brown também diz haver envolvimento do aumento de emissão de gases de efeito estufa, que causam o aumento da temperatura na Terra e aceleram o aquecimento global. Como consequências deste problema ambiental, têm-se os extremos climáticos de cheias e secas.
"Nós temos o El Niño que está terminando, mas também o aumento dos gases de efeito estufa, que já fazem a temperatura aumentar. A atmosfera fica com mais energia, seja para cair chuva, como no Rio Grande do Sul, seja para evaporar a água, que está acontecendo em nossa região. Então, estamos em uma situação preocupante, porque o rio é um indicador da água que nós temos na bacia inteira", disse.
Baixo índice de chuvas
É preciso entender ainda que as chuvas na região precisam estar dentro da normalidade para o rio poder correr normalmente, o que não está sendo o caso do Rio Acre. Somente este mês, até o dia 24 de maio, choveu apenas 54,1 milímetros na capital, sendo que o esperado é de 108 milímetros.
Saulo Aires de Souza, especialista em regulação de recursos hídricos e saneamento básico da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), explicou que a atmosfera funciona como um reservatório.
Por conta do aquecimento global, que eleva a temperatura na Terra, esses "reservatórios" aumentam a capacidade de armazenar vapor d'água. Quando enchem, ocorre o fenômeno da chuva que, nesse caso, costuma ser mais intensa na forma de tempestades.
Contudo, Souza frisa que em períodos com baixo índice de chuvas, o solo não consegue filtrar esta água e então ocorre o escoamento superficial, que podem ocasionar enxurradas em áreas urbanas. Sem o armazenamento desta água nos lençóis freáticos, que funcionam como reservatório no solo, não há como 'recarregar' o Rio Acre em épocas de estiagem.
"Por outro lado, a água não infiltra e, em um determinado momento, começa a diminuir a alimentação do lençol freático, e o rio vai ficar mais vulnerável quando ficar submetido a períodos mais secos, porque a parcela da água que deveria infiltrar e, nos períodos secos, alimentar os rios, não infiltra, vai embora escoando", destaca.
Esta irregularidade na quantidade de chuvas faz com que aumente a frequência de secas e de cheias. Os sistemas de larga escala, como o El Niño, acabam servindo como 'catalisadores', acelerando estes fenômenos climáticos e influenciando nas mudanças do clima.
Em Rio Branco, a Defesa Civil municipal confirmou que por conta desta possibilidade de seca "antecipada", um plano de contingência de escassez hídrica está pronto para ser colocado em prática. Contudo, detalhes sobre quais medidas fazem parte do plano ainda não foram divulgados.
O ano em que o manancial apresentou a menor marca histórica foi em setembro de 2022, quando marcou 1,25 metro. Naquele ano, o rio já estava abaixo dos quatro metros no mês de maio.
Rio Acre marcou 1,25 metro em Rio Branco em outubro de 2022, menor cota histórica — Foto: Iryá Rodrigues/g1/Arquivo
O mesmo quadro foi observado em 2016, ano com a segunda pior seca. Em maio daquele ano, o nível do rio estava em 3,75 metros e em 17 de setembro atingiu a menor cota histórica da época: 1,30 metro.
"Este ano estamos [com o nível] muito mais baixo ainda para a época. A previsão é de que se não houver chuvas nos próximos dias, vamos ter um colapso de água. O nível do rio está baixo porque choveu pouco esse mês", explicou o coordenador do órgão, tenente-coronel José Glácio Marques de Souza.
O diretor-presidente do Serviço de Água e Esgoto de Rio Branco (Saerb), Enoque Pereira, disse que apesar de o Rio Acre ter previsão de registrar uma cota menor que de 2022, a autarquia trabalha para que a vazão de água seja de 1,5 mil litros por segundo, para não comprometer o abastecimento da cidade.
"Para o ano de 2024, mesmo com todas as previsões de ser uma das secas mais severas dos últimos anos, o Saerb garante que manterá o abastecimento de Rio Branco, salvo em caso de colapso total do Rio Acre", complementou.
Ciclo hidrológico
Esta falta de regularidade nas chuvas faz com que o processo de evaporação e precipitação da água também seja afetado. O pesquisador da ANA disse que estudos feitos pela agência mostram que, em um cenário estimado para 2040, foi identificada uma diminuição média de 40% da disponibilidade de água, principalmente na bacia Amazônica, e que a quantidade de dias secos iria mais que dobrar.
"Isso implica situações que, além da quantidade normal que temos de água, que irá diminuir, uma parte desta diminuição será decorrente dessas secas, que é quando tem situações de precipitações muito abaixo da média. E o que a gente estima é que isto vá ficar cada vez mais frequente", complementou.
A 'morte' do Rio Acre?
Conforme Souza, é necessário um estudo para avaliar o grau de intermitência do manancial, já que o que determina a "morte" de um rio é a mudança de regime perene (rios que "correm" durante o ano) para intermitente (rios que secam completamente durante algum período).
No caso do Rio Acre, dependendo da perspectiva, há uma chance de aumento desses graus de intermitência. Ou seja, a quantidade de vezes as quais o rio pode passar por situações de seca, pode ser maior.
"Não há evidências de cenários que possam ocorrer, mas isso não implica que não venha a ter. Eu diria que é muito cedo para entrar nesse grau de intermitência, o que não significa que a gente não vá ter problemas gravíssimos como essa seca que está passando", frisou.
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O pensamento é compartilhado pelo pesquisador em Ciências Ambientais da Ufac. Brown comenta também que o desmatamento é fator preponderante, já que afeta o solo, a qualidade do ar e também o transporte de água.
"A previsão que temos do Instituto de Pesquisa Internacional é que para os próximos meses, teremos chuvas abaixo do normal. Isso significa que se a previsão estiver certa, teremos menos água e isso é exatamente quando entramos na época seca. Estamos no caminho de um verão antecipado", diz.
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