Falar de periferia em época de eleição é fácil, mas conhecê-la é mais difícil – Entrevista com Tiaraju Pablo D’Andrea
Tiaraju Pablo D’Andrea, professor da Unifesp, coordenador do Centro de Estudos Periféricos (CEP) e doutor em Sociologia da Cultura pela USP, fala sobre o espaço que as periferias têm na elaboração de políticas públicas para além de discursos e promessas. Além disso, o diálogo passou por pontos como reflexos da ausência do Estado, inclusive no que diz respeito ao seu descrédito.
“Quem diz que a favela venceu está mentindo e enganando as pessoas.” Tiaraju Pablo D’Andrea, professor do Campus Zona Leste da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenador do Centro de Estudos Periféricos (CEP), também da Unifesp, e doutor em Sociologia da Cultura pela Universidade de São Paulo (USP), é taxativo quando o assunto diz respeito à narrativa que coloca conquistas individuais de pessoas moradoras das periferias como símbolos de evolução territorial.
Por um lado, a perspectiva do esforço próprio tem mais incidência sobre a população das periferias, em conjunto com o incentivo ao empreendedorismo. Por outro, os índices de vulnerabilidade em territórios periféricos mostram que políticas públicas são cada vez mais necessárias nesses mesmos espaços. Segundo levantamento da Agência Mural, o termo periferia, assim como variáveis, apareceu 80 vezes nos planos de governo de sete candidatos à Prefeitura de São Paulo – em 2020, a recorrência foi de 208 vezes. No entanto, vale destacar que, se o total de páginas publicadas referentes a tais projetos foi 698 em 2020, em 2024 caiu para 323 páginas.
A entrevista com Tiaraju Pablo D’Andrea passou, então, pelo espaço que as periferias têm na elaboração de políticas públicas para além de discursos e promessas. Além disso, o diálogo passou por pontos como reflexos da ausência do Estado, inclusive no que diz respeito ao seu descrédito. Idem por maneiras para reaproximá-lo da população desses mesmos espaços e por que mais políticas públicas são importantes para fortalecer o tecido democrático.
Confira o diálogo a seguir.
É correto pensar em uma espécie de cansaço com o tempo para implementação de políticas públicas e, consequentemente, urgência para resolver esses mesmos problemas?
Tiaraju Pablo D’Andrea: Para responder a esta pergunta, é necessário o neoliberalismo. Esse sistema político-econômico aprofunda o liberalismo, que sempre prevaleceu no Brasil, com momentos de maior ou menor presença de governos que tiveram maior preocupação com o social. O liberalismo brasileiro sempre pregou a competição, o mérito e a economia de mercado. Ainda, ele aprofundou sua presença na sociedade a partir do neoliberalismo, que é um fenômeno mundial. No Brasil, ganhou contornos específicos por causa da história do nosso país. O legado de um país escravocrata e de uma ditadura que deixou muitas marcas nas estruturas sociais deu espaço para o neoliberalismo se implementar com características próprias.
Uma característica do neoliberalismo diz respeito a ataques a direitos sociais da classe trabalhadora. Fragilizou-se o que se chamou de sociedade salarial, na qual as pessoas tinham emprego fixo, aposentadoria e direito social. Pode-se pontuar também todas as mudanças jurídicas que houve no Brasil: leis das privatizações, terceirizações e uma série de reformas trabalhistas, que fizeram a população trabalhadora perder direitos e ter mais dificuldade de se organizar. Houve também tendência histórica de aumento do desemprego: ainda que hoje esteja baixo, a tendência histórica é de que ele aumente com o passar do tempo. Além disso, as condições de trabalho pioraram: quem está empregado ganha pouco e trabalha muito. Quem está desempregado precisa se virar em arranjos de trabalho informais, como autônomo ou empreendedor, ou buscar pela sobrevivência. É o caso de grande parcela da população.
Houve também, concomitantemente, grande ataque às políticas públicas. De fato, o Estado brasileiro não funciona bem – ou não funcionou bem por muito tempo. Mas ele permitiu, com políticas públicas, uma parcela da população, principalmente a mais pobre, acessar direitos sociais. É importante salientar que todos os direitos garantidos pelo Estado foram consequência de mobilizações políticas. O Estado nunca deu nada de graça: foram mulheres, trabalhadores e a população das periferias que se organizaram com o passar do tempo e pressionaram pela implementação de políticas públicas fundamentalmente nos bairros populares.
Tiaraju Pablo D’Andrea fala de maneiras como o Estado pode recuperar a confiança das periferias
Como o Estado pode atuar para dialogar com a população, incluindo jovens, para demonstrar a importância da universalização do acesso a serviços de modo geral e, ao mesmo tempo, entender o papel do empreendedorismo, mas fugindo da perspectiva da individualização ou do esforço próprio?
Tiaraju Pablo D’Andrea: A maioria da juventude moradora das periferias hoje está sem perspectiva, pois tem pouca possibilidade de acesso ao mercado de trabalho formal. Parcelas da juventude mais empobrecida têm de trabalhar em empresas de entregas em condições muito precárias comprando a própria moto parcelada, perdendo a moto, sendo roubado. Se sofrer um acidente, não tem nenhum tipo de seguridade social e, por muitas vezes, a família tem que ajudar.
Segundo uma pesquisa da Central Única dos Trabalhadores (CUT), com um grande número de motoboys, a média de trabalho é de 14 horas por dia, para ganhar R$ 1.325. Quem é mais velho e tem um carro, ou a possibilidade de parcelar um, está tentando dirigir e levar pessoas para lá e para cá. Trata-se de modalidade do chamado capitalismo de plataforma. Empresas com esse perfil fazem sentido em uma cidade como São Paulo, pois o transporte público é muito ruim.
As lacunas do Estado dão espaço para iniciativas privadas e privatizantes. É importante salientar: muitas figuras que entram no poder público têm intenção de destruí-lo para que as coisas sejam privatizadas. As duas facetas do neoliberalismo – desmonte do Estado e da política pública – afetam direta e principalmente a população das periferias. Ela observa a precarização de suas vidas e a dificuldade de projeção para o futuro. O desdobramento cruel disso é a descrença no sistema eleitoral e na democracia. É muito curioso, pois o nosso país passou em vários períodos por ditaduras e em outros, por democracia. Mas a democracia brasileira nunca foi de fato popular. Por mais que as pessoas votassem, sempre houve crivos e impedimentos para as pessoas mais pobres e a população negra alcançarem espaços de poder.
Apesar de haver candidaturas reivindicando ter trajetória periférica, a ocorrência do termo ‘periferia’ foi menor em comparação com as eleições de 2020, por exemplo. O que pode explicar a dissonância entre a perspectiva narrativa e a factual?
Tiaraju Pablo D’Andrea: A figura do candidato antissistema cresce junto com o avanço dos votos nulos, brancos e abstenções. Esse crescimento aconteceu, porque é uma população que não acredita nas eleições. Então, uns vão para o “antissistêmico” e outros não votam, pois não acreditam.
Vê-se, na eleição de 2024 em São Paulo, uma demonstração de oportunismo de candidatos que quase nunca pisaram em uma periferia, mas reivindicam a condição periférica nas suas campanhas. A reivindicação torna-se ainda mais oportunista quando se percebe que a periferia não é prioridade nos planos de governo – aparece cada vez menos e é utilizada como ativo político e reivindicação identitária. Mas, quando se vê friamente qual é o projeto para as periferias, não há projeto nenhum – de distribuição equânime dos recursos pelas cidades ou das condições de vida nas periferias. É um ou outro que coloca isso em pauta, mas no geral elas estão cada vez mais invisibilizadas.
Falar de periferia em época de eleição é fácil, agora conhecer e morar na periferia, com as suas contradições, é mais difícil.
Pode-se entender que a narrativa individualizante segundo a qual “a favela venceu” não se sustenta em pé diante da realidade?
Tiaraju Pablo D’Andrea: A favela não venceu. Isso é um discurso ideológico. A favela perdeu e continua perdendo, pois continua mais empobrecida. Segundo a pesquisa I Inquérito Sobre a Situação Alimentar na Cidade de São Paulo, a maior parte da zona leste de São Paulo tem 18% da sua população em grau severo de insegurança alimentar. Isso significa que uma em cada cinco pessoas está passando fome. Este é o dado mais expressivo disso.
Quem diz que a favela venceu está mentindo e enganando as pessoas, principalmente a população pobre. Lamento, pois há algumas figuras da indústria cultural, de vários gêneros musicais, ou influencers, ou pessoas oriundas das periferias que conseguiram vencer na vida – e reconhecemos o esforço delas – são minorias. Além disso, não se pode dizer que a ostentação e a ascensão social estão para todas as pessoas: é um jogo no qual somente algumas ganharão. E a maioria ficará iludida achando que ganhará.
Quais pontes de diálogos e lições o campo progressista precisa criar e assimilar para voltar a ter conexão e pontos de contato com as populações das periferias e, assim, voltar para a base?
Tiaraju Pablo D’Andrea: O pensamento progressista nunca saiu da base. Passa-se a impressão de que as pessoas progressistas moram em Perdizes ou estão na USP, PUC, Vila Madalena ou Santa Cecília. Isso não é verdade. Na história da cidade, a verdadeira força progressista sempre foi nas periferias: são os movimentos sociais e de moradia, por exemplo. Esse é o pensamento progressista: essas pessoas que lutaram pelos movimentos de saúde e educação estão na base e continuam fazendo suas ações em Cidade Tiradentes, São Miguel Paulista, Itaquera, Arthur Alvim, Brasilândia. Vejo um monte de gente progressista nas quebradas.
O pensamento conservador avançou no todo da sociedade – também nas periferias -, mas tem muita gente nas periferias que sempre se comprometeu e continua a se comprometer. Precisamos avançar em um projeto de sociedade que pregue a solidariedade, direitos e oportunidades iguais para todas as pessoas. Esse é um pacto social, que, no momento atual, precisa da política pública.
Neste trecho, Tiaraju fala da importância de uma sociedade pautada por valores coletivos e pela solidariedade
Entrevista: Amauri Eugênio Jr.