O legado africano nas letras brasileiras

É profundamente inquietante ver que, em um país com tão forte substrato cultural negro-africano, persista a mentira de que as culturas negro-africanas não têm legados civilizacionais próprios.

Os poemários e se alguém o pano e O poço das marianas talvez circulem entre restritos círculos de leitores de poesia, mas o romance Louças de família já logrou levar o nome da autora dos três — Eliane Marques — para todos os cantos do Brasil e além, com a sua presença em feiras literárias internacionais e nacionais. Foi a obra que recebeu o cobiçado Prêmio São Paulo de Literatura de 2024 para romance de estreia. Recebeu também o troféu Alcides Maya para narrativa longa da Academia Rio-Grandense de Letras, ocasião em que o presidente da instituição, Airton Ortiz, comemorou o pioneirismo do Rio Grande do Sul na fundação de uma academia de letras, atribuído por ele à ação civilizatória da imigração alemã e italiana, que não agraciou o resto do País, “colonizado por escravos” (sic).

A observação foi respondida com um vigoroso discurso da escritora premiada em que ela denunciou o racismo da fala ao mesmo tempo que lembrou ter sido Machado de Assis o fundador da Academia Brasileira de Letras e que citou nomes importantes na edificação da literatura do Rio Grande do Sul — Ronald Augusto, Luiz Maurício de Azevedo, Fernanda Bastos e, com destaque, o pioneiro Oliveira Silveira — todos autores negros. A fala de Marques foi gravada e, em pouquíssimo tempo, percorria redes sociais e veículos de comunicação, gerando veementes manifestações de apoio à escritora e reações indignadas à declaração do presidente. Conta-se que, no mesmo dia, houve desfiliações da academia.

As reações são justas e bem-vindas, mas há algo no episódio que me toca como particularmente perturbador. A atribuição de um efeito civilizatório aos imigrantes italianos e alemães e, por contraposição, retrógrado e atrasado a descendentes de africanos está incrustada em nosso imaginário e, volta e meia, vem à luz do dia, causando indignação em muitos e aprovação, muitas vezes silenciosa, em outros. A rejeição a essa ideia parece se manter no âmbito moral, raramente no factual, garantindo a ela local privilegiado na galeria das verdades inconvenientes.

Detalhe da capa do livro “Louças de Família”, de Eliane Marques, publicado pela Autêntica

Desde o início de minhas contribuições neste espaço, tenho me esforçado por divulgar algumas das muitas facetas da produção cultural — particularmente literária — da África negra e combater, dentro de minhas possibilidades, as mentiras de que o continente não tem literatura; se tem, é de pouca relevância para o cenário literário universal; se há literatura relevante, surgiu após a colonização, quando africanos começaram a escrever em inglês, francês e português. Todas essas percepções são falsas, mas parecem resistir, de forma que nunca é inoportuno voltar ao tema, mas antes gostaria de fazer um breve experimento de pensamento para tornar mais nítido meu objetivo com este artigo.

Imaginemos que eu, revoltado com a observação do presidente da academia, resolvesse “devolver na mesma moeda” e acusasse os imigrantes italianos e alemães de descenderem de povos sem tradições literárias dignas de nota. Os nomes de Dante Alighieri, Leopardi, Goethe, Hölderlin, Novalis, George, Rilke, entre tantos outros, minariam a validade de minha observação, tornando qualquer indignação moral perfeitamente desnecessária. É profundamente inquietante ver que, em um país com tão forte substrato cultural negro-africano, persista a mentira de que as culturas negro-africanas não têm legados civilizacionais próprios que possam ombrear com as já bem conhecidas contribuições europeias. No final do dia, uma escritora como Eliane Marques, quando se destaca por seus méritos literários, se mantém no local da exceção, e parece existir um aceite — mesmo que silencioso — que tal mérito se deveu exclusivamente ao sucesso em assimilar uma bagagem literária inteiramente europeia. A escritora pode ser negra, mas a literatura da qual se nutre só pode ser europeia. Silêncio se faça, e durmamos todos.

Que autorias negras de destaque existem no País, não só os nomes citados por Marques, e o dela própria, mas também os de Luciany Aparecida, Conceição Evaristo, Ricardo Aleixo, Edimilson de Almeida Pereira e tantos outros o atestam para além de qualquer dúvida. As questões a abordar parecem ser as seguintes: 1) há produção literária de importância na história da África subsaariana e, se sim, como ela se caracteriza?; 2) a resposta da primeira pergunta sendo sim, que impacto essa produção tem sobre as obras de autoria negra no Brasil? Ou seja, há um legado literário africano influente no Brasil ou uma escritora negra brasileira irremediavelmente precisa ancorar sua literatura em modelos europeus, independente dos temas sobre os quais escreva?

À primeira pergunta tenho buscado responder ao longo de todos os textos que publiquei neste espaço, mas não custa voltar a ela. É um erro pensar que a literatura escrita só surge na África negra com a colonização europeia, já que muitos povos, como etíopes, suaílis e hauçás, vêm produzindo há séculos textos escritos em alfabetos de diversas origens; sobre isso, falei mais longamente neste artigo. É fato que grande parte dos povos africanos (incluindo alguns de grande influência na cultura brasileira) vieram a conhecer a escrita alfabética com a chegada das línguas europeias. Já não é mais aceitável, no entanto, crer que a produção de textos literários — poéticos, dramáticos ou narrativos — está subordinada à existência do código escrito. A riqueza das diversas literaturas orais e a própria origem oral de tradições literárias que hoje amontoam textos escritos já foi discutida, provada e comprovada à exaustão. A oralitura — para usarmos o termo de Leda Maria Martins — iorubana é rica em gêneros poéticos como o oriki, o ijala, o ewi e os textos oraculares, cada um com princípios de construção formal complexos e diferenciados. Os estudos que li sobre as tradições orais zulu, xosa e igbo mostram uma realidade semelhante. Para além disso, o uso do provérbio como gênero poético é bastante expandido nas sociedades africanas bem como as narrativas orais que muitas vezes chamamos de mitos.

Como sabemos, a chegada de línguas europeias e de suas tradições literárias em muitas sociedades africanas fez surgir uma rica cena literária em língua inglesa, francesa e portuguesa, que, se não rechaça as tradições literárias europeias, não se resume a elas, estabelecendo relações com as já referidas tradições orais; mais sobre esse ponto neste artigo. Muitos dos autores africanos escrevendo em língua inglesa, francesa e portuguesa transpõem elementos estilísticos, retóricos e temáticos das tradições orais de que provêm para seus textos em línguas europeias. As tradições orais de que se originam são diferentes, mas convivem entre si nos textos em línguas ocidentais. A oralidade iorubana se evidencia no inglês de Soyinka tal como a zulu, no inglês de Kunene, ou a serer e a wolof, no francês de Senghor. Lendo-se uns aos outros, tais autores têm acesso — mesmo que indireto — a distintas tradições africanas. Se estudamos essa moderna literatura africana em línguas ocidentais — não só suas obras imaginativas, mas também crítica —, encontramos coerência e continuidade entre essas oralidades.

Temos, então, o cenário de uma moderna literatura africana que mantém diálogo com as tradições orais do continente. Surge a segunda pergunta: até que ponto a influência dessa literatura africana — moderna e tradicional e suas articulações — se faz presente nas obras de autoria negra no Brasil? Uma primeira resposta, bastante óbvia, é a de que hoje contamos com um número razoável de obras de autoria africana em português ou traduções de obras escritas em inglês e francês no mercado brasileiro, oferecendo um referencial africano cada vez mais vasto para quem queira dialogar com esse universo. E é fato que os autores brasileiros citados aqui recorrem extensamente a essas obras, mas há outra dimensão para essa resposta.

Devemos lembrar aqui o crítico nigeriano Abiola Irele, que estabelece a oralidade africana em suas diversas manifestações como o próprio fundamento da moderna literatura africana e afro-diaspórica. Já vimos acima como essa oralidade se manifesta na moderna literatura africana. Fica a dúvida de como tal manifestação se dá nas afro-diaspóricas, pois os modernos escritores africanos, em geral, conhecem, além da língua europeia com que trabalham, ao menos uma língua africana, tendo acesso à sua literatura oral. No entanto, os autores negros brasileiros, caribenhos e norte-americanos, em sua maioria, não têm acesso a esses universos linguísticos, o ensino de línguas africanas sendo um desenvolvimento recente no Brasil e, até onde saiba, mesmo no Caribe e nos Estados Unidos.

Eliane Marques. Foto: Reprodução/@elianemarques.escritora via Instagram.

É nesse ponto que Irele oferece um entendimento da oralidade africana que vai além das artes verbais propriamente ditas. Tais artes são dimensão importante de rituais e festivais, onde a dança, a música, o vestuário e outros elementos falam tanto quanto as palavras. No Brasil, os rituais de matriz africana, as congadas, os maçambiques e outros festivais se carregam de elementos sonoros, cinéticos e visuais com poderosos efeitos poéticos; nos terreiros afro-brasileiros, circulam narrativas míticas. A cultura afro-brasileira, em suas diversas manifestações, fornece um complexo de elementos simbólicos e estéticos muito mais organizado e dinâmico que com frequência imaginamos. Na poesia e na narrativa de Eliane Marques, de Luciany Aparecida, de Conceição Evaristo e de tantas outras, vemos partes desse complexo transpostas e convivendo com os referenciais literários africanos já aludidos acima. Para além da literatura imaginativa, a estética e a simbologia de tais festivais vêm sendo estudada em obras teóricas como Afrografias da memória, de Leda Maria Martins, e A saliva da fala, de Edimilson de Almeida Pereira.

O universo simbólico e poético de origem africana se faz presente no Brasil — e, em particular, na literatura brasileira — por meio tanto de textos de autoria africana quanto das instituições, religiões e festivais, de origem africana, que fornecem um referencial espiritual e civilizatório para porções significativas da população brasileira. A literatura dos autores e das autoras aqui mencionados articula essas obras literárias e esses universos vividos de forma consistente e variada, formando, sem dúvida, uma tradição literária dentro da já rica literatura brasileira, uma tradição que reivindica referenciais críticos próprios e aponta caminhos imaginativos diferenciados.

Sei que meu artigo tocou brevemente em uma quantidade muito grande de pontos, obras, autorias e assuntos. Muitos já discuti em artigos publicados anteriormente neste espaço; outros, pretendo desenvolver em textos futuros. Espero, no entanto, ter deixado evidente que a atribuição da realidade literária e civilizacional brasileira à face europeia de nossa história e o concomitante atraso cultural à sua face africana só pode se sustentar se nos forçamos a nãover o legado cultural tanto das sociedades africanas tradicionais quanto de seus descendentes na diáspora. O conhecimento cada vez maior desse legado nos levará a tirar comentários como o do presidente da Academia Rio-Grandense de Letras de seu indevido local de verdade inconveniente para colocá-los no lugar, esse devido, de falsidade (para muitos, conveniente) pura e simples.


Adriano Moraes Migliavacca é doutor em Letras pela UFRGS, tradutor e poeta.

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