Nas reportagens da série Investidor entrevista Startup, o head de um fundo (de Venture Capital, Corporate Venture Capital ou Private Equity) escolhe uma startup e entrevista seu founder ou CEO. Neste episódio, Época NEGÓCIOS convidou Guilherme Lima, venture capital investor da Astella, gestora de capital de risco criada em 2010 que investe em startups em estágio inicial, principalmente de SaaS (Software como Serviço), marketplaces e serviços B2C.
Para essa reportagem, Lima escolheu bater um papo com a startup Vendah, que promove uma versão digitalizada da tradicional venda direta, com foco em mulheres das classes C, D e E. Fundada em 2021 por quatro colegas, a startup tem um e-commerce de utensílios domésticos, de decoração e de produtos para bebês para revenda. Quem representou a startup na conversa foi o cofundador e CEO Luis Franco.
Formado em Engenharia Mecânica pela USP São Carlos e pós-graduado em Administração pela FGV, Luis teve sua primeira empresa fundada em 2010, no ramo de engenharia. Depois, atuou na Endeavor, onde criou e escalou o Scale-up Endeavor, e na startup de cosméticos Sallve. A inspiração para sua segunda jornada no empreendedorismo veio de um negócio na Índia.
Confira a seguir os principais trechos dessa conversa.
[Guilherme] Pode contar um pouco da história da Vendah?
[Luis] Em outubro de 2020, eu comecei a mergulhar no mercado da venda direta, esse mercado onde atuam empresas de cosméticos como Natura, Avon, Boticário. É um mercado de R$ 40 bilhões no Brasil, US$ 20 bilhões na América Latina. Naquele momento, estava na Sallve, trabalhando com um público muito feminino, e vendo muitas clientes perderem o emprego por causa da pandemia.
Foi uma convergência: de um lado, esseum, esse mercado da venda porta a porta; do outro, a necessidade de geração de renda de uma população classe B, C e D. Naquele momento, acabei me inspirando em um negócio da Índia [a startup Meesho], que estava indo muito bem, e fundei a Vendah com três outros sócios.
Com o aplicativo, que é gratuito, o usuário tem acesso a 700 produtos de casa, cozinha, decoração. Essas pessoas podem vender umas às outras via WhatsApp e ganhar uma renda extra. Já passaram pela plataforma mais de 50 mil revendedoras. E é muito legal a gente ver o impacto que a gente consegue ter na ponta.
[Guilherme] A gente enquadra vocês aqui como um perfil mais ‘máfia tech’, de time que já andava nas ‘máfias’ de empreendedores, no início da história de empresas que depois se tornaram grandes. O que você já sabia antes de começar a empreender e o que você teve que descobrir, ralar, bater a cabeça nesse início como empreendedor?
[Luis] É um mundo onde crescimento acelerado é uma coisa muito importante, mostra que você tem potencial para se transformar num negócio de peso. Só que esse crescimento não tem um playbook exato... Tem muitos momentos em que você não sabe bem para onde está indo. É como navegar numa estrada à noite toda com neblina, usando com farol baixo. Você não sabe o que vai ter dali a um, dois, três quilômetros, mas você tem que se fundamentar ao máximo para tomar as melhores decisões. É preciso ter uma estrutura que une muitos dados, um perfil analítico de time que consegue ir a fundo e uma conexão profunda com o seu cliente.
[Guilherme] No começo, como foi essa validação? Porque vocês atuam geralmente com mulheres de comunidades, que estão mais afastadas do centro. Como foram as conversas?
[Luis] No ano passado, entramos na [aceleradora de startups] Y Combinator, e o curioso é que eles sempre falam: ‘Talk to the customer’, converse com seu cliente, entregue o produto e faça esse ciclo o mais rápido possível. Mas nós sempre fomos partidários dessa metodologia.
Nossas revendedoras são majoritariamente das classe B e C, às vezes até D. No primeiro momento, eu conversei com muitas revendedoras por WhatsApp. Consegui falar com 30, 40, mas precisava alcançar mais gente. O que eu fiz? Coloquei no ar uma plataforma no Shopify, criei o nome Vendah, puxei produtos de outros marketplaces, cadastrei na minha plataforma, fiz um Google Ads, um Facebook Ads, e o call-to-action quando a pessoa clicava em ‘Quero me tornar uma revendedora’ era vir para o meu WhatsApp pessoal, e daí eu conversava com elas. Quando a pandemia deu uma abrandada, a gente foi lá para Capão Redondo, Taboão da Serra, panfletar e conversar com essas pessoas na rua. Fui me aproximando muito do público, entendendo onde estavam os principais pontos de dor e onde a gente tinha que focar.
[Guilherme] E nesse começo você já tinha os sócios, os cofundadores? Onde vocês se conheceram? [Luis] Eu tinha saído da Sallve, meu filho tinha meses na época, e não era trivial empreender naquele momento. Eu combinei em casa que eu tinha seis meses de deadline para colocar um negócio em pé. O primeiro passo foi juntar um grupo de pessoas complementares. Liguei para a Ilana [Nasser, ex-Endeavor], fiz o pitch, ela adorou na hora. Um terceiro cofounder, que é o Marcelo Canovas, um dos cofounders da Liv Up, queria muito atacar o problema de geração de renda, e curtiu muito. E o quarto founder é o Pedro Pedruzzi, um dos primeiros funcionários da Amazon Brasil. Ele é um engenheiro de software, formado na USP, tecnicamente muito acima da média. Hoje, três anos depois, eu posso dizer com certeza que a gente tem uma excelente complementariedade, um nível de respeito muito grande e, mais do que isso, a gente sabe a hora de ter as conversas difíceis.
[Guilherme] Quais foram os grandes marcos até chegar onde estão agora?
[Luis] Esse grupo se juntou lá no começo de 2021, quando o mercado de venture capital estava no seu moomento de maior hype no Brasil e na América Latina. Muitos fundos começaram a nos procurar. Acabamos fechando nossa rodada pré-seed [de R$ 8,5 milhões]. A Maya Capital liderou, a americana Village Global entrou com um cheque representativo, e também tivemos investimentos de vários anjos - incluindo o CEO da Avon na China e empreendedores Endeavor que construíram indústrias da venda direta aqui no Brasil. Havia pessoas que estavam desenvolvendo unicórnios, como Ariel [Lambrecht] e Renato [Freitas], da 99, Robson [Privado], da MadeiraMadeira, a própria Marcia [Netto], da Sallve. Acho que este é um primeiro milestone, em que a gente tinha dinheiro, um time de cofounders, mas zero produto.
Daí a gente foi mais para um caminho pé no chão, tentando validar primeiro no Capão Redondo. Naquele momento, de 2021 a 2022, a gente via que quem entrava como revendedora vendia, a proposta de valor para elas era muito bacana, só que a gente estava com muita dificuldade de escalar o volume de revendedoras.
Então gente falou: não faz sentido nenhum a gente pisar no acelerador sendo que o CAC [Custo de Aquisição de Clientes] está aqui em R$ 300, retorno de investimento está muito baixo. E aí a gente começou a tentar entender por que não estava havendo uma divulgação boca a boca, como a gente esperava.
Foi em maio de 2022 que a gente descobriu o que estava acontecendo. Como a gente estava geolocalizado em um único bairro da cidade, essas revendedoras não queriam indicar outras no mesmo bairro, para não criar competição para ela. Ela falava assim: ‘Eu posso indicar uma pessoa lá na Zona Leste, uma pessoa lá em Campinas’. E aí a gente fez um movimento de sair do Capão Redondo e fazer uma expansão um pouco maior. Na hora, o CAC, que estava lá em R$ 300, caiu para R$ 30. E aí o ‘member get member’, esse canal proprietário, começou a escalar, e hoje representa 50% da aquisição.
Naquele momento entramos numa fase de crescimento mais sustentável. Crescemos muito bem até o ano passado. Só que aí mudou o cenário: o mercado virou, não tinha mais dinheiro disponível. Daí a gente falou: vamos precisar criar um negócio mais sustentável. E aí a gente entrou na Y Combinator, fizemos o programa deles de janeiro a março de 2023. Em abril, a gente captou um seed [de R$ 12 milhões]. E aí começou um novo ciclo de crescimento, só que garantindo os fundamento econômicos do negócio.
Quais são os estágios, as trilhas de validação que você vê nos negócios aí na Astella?
[Guilherme] Acho que faz muito sentido a sua trilha, bem alinhada. Acho que o product market fit tem dois caminhos. Um é mais o Eric Ries, do Lean Startup, Startup Enxuta, que é testar o mínimo possível, com o menor custo possível, já colocar no mercado logo para coletar feedback. E aí você tem um outro mais estilo Steve Jobs, que constrói um produto muito parrudo e depois joga para tentar comprovar aquela visão no mercado. Precisa de mais recursos para isso. Mas acho que, dado o nosso mercado aqui, o ideal é o meio termo, mas sempre com eficiência.
Primeiro é importante conhecer um pouco o perfil ideal do cliente para construir a primeira fase do produto. Então, definir o ICP [Ideal Customer Profile]. Acho que vocês entenderam bem essa coisa do canal, do member get member. Você precisa ter um insight do produto e um insight de distribuição, e assim conclui o Product Market Fit. E aí, fechando com essa coisa da sustentabilidade do negócio, garantir que o modelo de negócio pare em pé, que exite um caminho para uma empresa rentável e escalável.
[Luis] Eu ouvi uma frase esses dias que eu achei muito boa: empreendedores de primeira viagem focam muito em produto; empreendedores de segunda viagem focam muito em distribuição. Não que produto não seja importante, mas não adianta nada você ter um baita de um produto incrível se você não tem uma estratégia de distribuição eficiente por trás também. E eu senti muito isso na pele.
[Guilherme] A gente aqui também fala muito em distribuição. Se a gente olhar nossos principais cases da Astella, como a Omie e a RD Station, eles pensaram muito cedo sobre isso.
Eu tenho curiosidade de como foi o Y Combinator. O que é realmente muito bom de lá? O que você mais usufruiu dessa experiência?
[Luis] Eu sou fã de carteirinha. Eles têm uma estrutura de group partners, que são os seus mentores. São sócios da YC e são ex-fundadores. Os nossos dois group partners eram um cofundador da plataforma de streaming Twitch, o Michael Seibel, e o outro era o Tom Blomfield, fundador da Monzo, que é o Nubank do Reino Unido. Lógico que não tínhamos o tempo infinito deles, mas esles provocavam, dizendo: ‘Aqui é um lugar onde vamos falar a verdade para você’. Então, todas as conversas com eles eram muito duras. Mas é muito legal você ter pessoas que te falam a real mesmo. Essa parte dos mentores para mim é o suprassumo.
Quando você vê o grupo de empreendedores, o sarrafo é extremamente alto. Acho que foi o lugar onde eu mais me senti burro na minha vida. Era só a galera muito nata, formados em Stanford, Yale. ‘Ah, já fiz uma startup de robótica e agora estou fazendo uma de satélite’. Daí um outro estava trabalhando na vacina contra o câncer. Você estar no meio de gente muito boa te deixa desconfortável, mas para o bem. Teve até um talk em que eles falaram que uma startup média não dá certo, ela morre, porque as estatísticas vão contra. Eles te provocam muito a ser o número 1. As mentorias em si, o conteúdo... a maioria deles estão abertos no site da YC. Então, não é pelo conteúdo, é muito mais por você estar num ambiente que te faz subir a barra no geral.
[Guilherme] Fala um pouco da visão de propósito da Vendah, onde vocês querem chegar. Vocês têm um elemento de impacto social, mas também estão na trilha de VC mais tradicionais. Como é que vocês alinham os dois?
[Luis] Nós estamos democratizando o e-comerce, levando para lugares onde ele antes não penetrava. Quando você olha a penetração do e-commerce na América Latina, no geral, ela está na casa dos 12%, 13%. Quando você olha classes mais baixas, classe C, D e E, esse número cai para 4%. Essa força de vendas que a gente está espalhando hoje no estado de São Paulo afora permite que essas pessoas comprem online. E essa pessoa revendedora que está lá na ponta é quase que um gateway de pagamento para o cliente final dela. Muitas vezes, ela recebe em cash e paga a gente através de pix. Muitas vezes ela vende fiado, ela é o crédito do cliente final. Na nossa visão, no futuro, queremos oferecer crédito para essa revendedora, e eventualmente para o cliente final também, porque a gente sabe que essas pessoas precisam disso.
No fim do dia, se essa pessoa ela está vendendo, levando produtos para o seu bairro, ela está ganhando com isso. A gente quer remunerar essa força de vendas, essas revendedoras. Então, é muito fácil para a gente conectar lucro e propósito. Além de geramos renda para essas pessoas, de ser uma alternativa para essas mulheres - 90%, 95% são mulheres - também tem outro lado que é uma sensação de empoderamento. Tem pessoas que vão no Linkedin dizer que são da Vendah, revendedoras que têm orgulho disso. Elas realmente vestem a camisa.