PODCAST - DITADURA ROTEIRO EPISÓDIO 5 V. 05 - 10/04/24 Atualizado em 22/04 (pedidos Gaspari) Escrito por Ana Maria Straube Texto final Ana Maria Straube BLOCO 1: CONSEQUÊNCIAS DA DERROTA ELEITORAL: A DITADURA DIVIDIDA CENA 01: ÁUDIO DE ARQUIVO - GEISEL CONVERSA COM GASPARI ÁUDIO 01 - [00:20] Aí o grande complicador que se manifestou nessa história foi o Frota. O Frota que continuava a ser um revolucionário mais radical, ele achava que a Revolução devia continuar de certa forma. [00:49] E aí veio o meu problema. Eu tinha que trabalhar o Exército nos comandos, etc, para que no momento em que eu resolvesse atuar contra o Frota, eu teria a maioria comigo. ÁUDIO 02 - [01:31] Então veio o negócio da abertura, eu digo: "tenham paciência, a abertura vai sair, mas nós temos que esperar, nós temos que tirar o Frota, depois de tirar o Frota nós vamos caminhar para a abertura". CENA 02: NARRAÇÃO NADEDJA Os áudios que acabamos de ouvir são de Ernesto Geisel, em conversas com o jornalista Elio Gaspari. Esses áudios fazem parte de longas entrevistas que Gaspari conduziu com Geisel entre os anos de 1984 e 1996. Elas foram uma das fontes para a coleção de livros sobre a ditadura militar, nos quais baseamos essa série. Esses áudios nunca tinham se tornado públicos e vão nos ajudar a revelar alguns dos momentos mais importantes do governo de Ernesto Geisel. O general foi o quarto presidente da ditadura militar e governou entre março de 74 e março de 79. O “Frota” a quem Geisel se refere na gravação é o general Sylvio Frota, ministro do Exército de Geisel e representante da anarquia militar. Frota se tornou ministro do Exército de Geisel após a morte do general Vicente de Paulo Dale Coutinho. Dale Coutinho apareceu bastante no quarto episódio dessa série. Dale Coutinho assumiu o Ministério em março e morreu do coração em maio de 1974, só dois meses depois, sendo substituído por Sylvio Frota. Ainda vamos falar bastante sobre o Frota, porque ele esteve no centro da maior crise que Geisel enfrentou. Como ouvimos no episódio passado, Geisel tinha ideias bem concretas do que gostaria de fazer na Presidência da República. Desmontar o regime do qual tinha sido um dos criadores era a mais importante delas. Longe de ser ingênuo, Geisel sabia que encontraria as Forças Armadas divididas, e que as ideias dele de abertura e distensão políticas não seriam bem recebidas pelos militares que patrocinavam a indisciplina. A perda das eleições parlamentares de 74 aprofundou a crise vivida pela ditadura, que completava dez anos no poder. Geisel reconheceu a derrota na televisão. ÁUDIO 03 - https://youtu.be/nsa51pZCI4w?feature=shared Do min 6min27s até 7min17s ("Ressentimento....sirva isso de alerta!") O pessoal dos porões, onde reinava a indisciplina militar, não estava nem um pouco satisfeito. Ao longo do governo, Ernesto Geisel equilibrou, ou tentou equilibrar, as pressões de quem queria intensificar a chamada “revolução”, e os anseios da sociedade civil por mudanças que caminhassem no sentido do restabelecimento da democracia. Teve de tomar decisões difíceis como o abrandamento da censura à imprensa, decidir o que fazer quanto à oposição organizada por setores da Igreja Católica e como reagir a dois cadáveres emblemáticos: o do jornalista Vladimir Herzog e o do operário Manoel Fiel Filho, ambos mortos no DOI-Codi de São Paulo. Essa é a história que vamos contar agora. Eu sou Nadedja Calado e este é o quinto episódio da série "A ditadura recontada: as vozes do Golpe", um Podcast Original Globoplay, produzido pela CBN. [tons da trilha surgem. A gente vai dando mais volume aos poucos] CENA 03: NARRAÇÃO NADEDJA Ouvimos no episódio anterior que a derrota eleitoral da ditadura nas eleições parlamentares de 74 atrasou o projeto de distensão do regime que Geisel pretendia levar adiante. Qualquer menção à abertura política alvoroçava a tigrada que atuava nos porões da ditadura. Uma das convicções era de que a vitória do Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, nas eleições de 1974 tinha sido impulsionada pelo Partidão, como o PCB era conhecido. Em março de 75, o CIE produziu uma lista de 54 parlamentares que estavam contaminados por contatos com os comunistas do Partidão. Tinha de tudo nessa lista, que ia dos conservadores Tancredo Neves e Ulysses Guimarães a Alberto Goldman - esse sim um militante comunista - chegando a arenistas moderados, como José Sarney. Em paralelo, começavam a pipocar pelos quartéis panfletos críticos ao governo, que tinham como principal alvo o general Golbery do Couto e Silva, chefe do Gabinete Civil de Geisel. Um desses panfletos anônimos se desdobrou numa série chamada de “A novela da traição”, e citava textualmente a “tal abertura ou distensão” como pano de fundo dos atos de traição aos ideais da revolução de 1964. O panfleto dizia ainda que as forças militares tinham sido afastadas do combate à subversão e à corrupção. O resultado? Comunistas e corruptos estavam de volta a mandar no país. Golbery foi citado no terceiro capítulo da “Novela da Traição”, acusado de ser responsável pela derrota eleitoral de 74. Outro panfleto, o “Manifesto dos Voluntários da Pátria”, chamava os militares que estavam no governo de “gorilas de rabo branco” e, Golbery, de advogado dos comunistas-terroristas e dos comunistas de batina. Esse Manifesto trazia também uma ameaça: ÁUDIO 04 - [LOCUTOR: “Se persistirem as traições, não restará aos soldados da Revolução outra alternativa que não seja fazer sentir aos traidores e comunistas o peso de suas armas”]. O próprio Golbery, por outro lado, não discordava da leitura que a linha dura fazia das intenções que tinha. Numa conversa com Heitor Ferreira, disse: ÁUDIO 05 - [LOCUTOR “Se eles querem continuar com a Revolução, vão ter de ir para a ditadura”.] CENA 04: NARRAÇÃO NADEDJA Enquanto articulavam manifestos contra os tais gorilas de rabo branco, os representantes da tigrada, muitos deles aninhados no CIE, também se empenhavam numa caçada aos membros do Partido Comunista do Brasil, o PCB, que atuava na clandestinidade, mas nunca fez parte da luta armada. As denúncias de tortura continuavam chegando ao gabinete de Ernesto Geisel. Em 17 de março de 1975, o presidente recebeu a carta de uma pessoa ameaçada e explodiu. A fala dele, registrada no diário de Heitor Ferreira, é reproduzida aqui pelo locutor Thiago Barbosa: ÁUDIO 06 - [LOCUÇÃO: Têm que acabar esses DOIs, esses CODIs. São organizações espúrias. Se querem continuar, venham sentar aqui. O Exército usa farda para um monte de sujeiras e é uma instituição de honra? Vão à merda Frota, generais, coronéis e o diabo. Um monte de covardes. Me derrubem. Tão fácil. Uma das soluções para mim é ir embora daqui, mas é uma solução covarde. E me mentem.] No desabafo de Geisel chama a atenção o nome a quem ele atribui responsabilidade. Frota, novamente, é Sylvio Frota, ministro do Exército de Geisel. O presidente já sabia que Frota estava metido com as conspirações da anarquia militar, como ouvimos no trecho que abriu esse episódio. Mas ele não estava disposto, ou não tinha condições, de demitir Frota naquele momento. Então centrou as queixas contra o general Ednardo d’Avila Mello, comandante do SEGUNDO Exército. Nesse desabafo, disse a Heitor Ferreira que estava convencido de que teria de tirar Ednardo de lá, só não sabia quem colocar no lugar. Para entender melhor quem era Ednardo, outro personagem importante dessa história, contamos com a pesquisadora Helena Dias. CENA 05: COMENTÁRIO HELENA Ednardo d’Avila Mello era um general velho conhecido de Geisel e Golbery. Os três foram colegas no Estado Maior do Exército. Ele tinha fama de ser um bom sujeito e jogava bem basquete. Chegou a ser general de quatro estrelas mesmo com os votos contrários de quatro dos dez generais do Alto-Comando. E no fim do governo Médici assumiu o SEGUNDO Exército. Geisel achou a escolha difícil, e numa conversa com Golbery, Moraes Rego e Heitor Ferreira, disse que tinha receio do que poderia acontecer ao mandar um “banana” pro viveiro de cobras que era São Paulo. Também comentou que Ednardo não era mau, e sim um fracote. Golbery achava Ednardo “um moleza” e ele tampouco era simpático a Golbery. Ednardo tinha certeza que a culpa dele ter sido mandado pra Paraíba era do colega que preferiu ir pra reserva do que aceitar comandar o DÉCIMO QUINTO Regimento. Em 74, seus posicionamentos foram se tornando ainda mais claros e endurecidos. Numa conferência, atacou os frustrados, pessoas que segundo ele não tomavam posição e acendiam uma vela pra Deus e outra pro Diabo. CENA 06: NARRAÇÃO NADEDJA E se as coisas não estavam fáceis para Geisel na área militar, a economia brasileira também não ia lá essas coisas. No fim de 74, a inflação bateu os 35%, frustrando as previsões do presidente e do ministro da Fazenda, Mario Henrique Simonsen. O déficit comercial do primeiro ano do governo Geisel chegou a 4,5 bilhões de dólares. Essa conta foi paga com a perda de 18% das reservas internacionais e com o crescimento de 37% da dívida externa. Ainda assim, o crescimento do PIB ficou em 9,6%, próximo dos números mágicos do Milagre. Para Geisel, era isso que importava, embora, em conversa com Elio Gaspari anos depois, ele tenha assumido o exagero de euforia em torno do Milagre Brasileiro. ÁUDIO 09 - [03:02] GEISEL: Eu achava que era bom, que o país tinha progredido. Mas achava que era um exagero. Não era milagre nenhum, inclusive havia coisas que eu era contrário e hoje em dia me criticam achando que não fui leal ao Médici, etc. O que realmente preocupava Geisel era não acabar com o otimismo dos anos de Delfim Netto como ministro. Para isso, ele tirou as decisões cruciais das mãos de Simonsen e passou a tomá-las por ele mesmo. Ernesto Geisel tinha se convencido de que a iniciativa privada não tava interessada no desenvolvimento do país. Por isso, a direção da economia devia ficar com o Estado. Planejou construir uma grande siderúrgica em Minas Gerais, falida sete anos depois, e negociou acordos nucleares com a Alemanha, numa ação ousada que preocupou o mundo. A política de concentração de poder nas mãos do governo federal elevou os gastos fiscais e a taxa de investimento nas estatais. A visão estatizante de Geisel se chocava com as ideias da plutocracia que havia apoiado a chegada dos militares ao poder. CENA 07: NARRAÇÃO NADEDJA A bomba do milagre econômico acabaria por explodir mais adiante, já no governo do general João Baptista Figueiredo. Nesse momento, Geisel estava mais preocupado com seus embates com a anarquia militar que comandava os porões da ditadura. Muitas das denúncias de torturas contra presos políticos vinham a público encaminhadas para a imprensa pela ala progressista da Igreja Católica. E foi então que a tigrada viu ruir um dos pilares mais importantes para sua própria existência: a censura. BLOCO 2: A IGREJA E A CENSURA CENA 08: ÁUDIO DE ARQUIVO - GEISEL CONVERSA COM GASPARI ÁUDIO 10 - [03:27] Geisel - Bom, a censura foi uma herança que eu tive, né? (...) Eu praticamente não participava do esquema. Mas eu sei que havia agentes, etc, credenciados possivelmente pelo Ministério da Justiça e outros pelo DOI-Codi, etc, nas redações dos jornais, fiscalizando... ÁUDIO 11 - [01:32] Mas a esquerda não deu importância a nós acabarmos com a censura. [01:45] Os jornais gostaram, mas os militantes da esquerda não gostaram. Não gostaram por quê? Porque nós acabamos com uma das coisas que era contra nós. CENA 09: NARRAÇÃO NADEDJA Em 2 de janeiro de 1975, o jornal O Estado de S. Paulo teve a derradeira notícia censurada. Era um longo texto que falava sobre uma sessão da Academia Brasileira de Letras em homenagem ao centenário do jornal. Como de costume, o trecho cortado foi substituído por um pedaço do poema “Os Lusíadas”, de autoria do poeta português Luís de Camões. Com ele, acabava a censura ao Estadão. Em conversa com Elio Gaspari, Geisel comentou a impressão que esse tipo de subterfúgio causava na opinião pública. ÁUDIO 12 - GEISEL: Um assunto censurado, às vezes na primeira página vinha uma besteira, uma receita de um doce, uma receita de como fazia um frango, uma besteira dessa. Quer dizer, todo mundo via, logo dizia "ih, ali devia ser uma coisa".. Que coisa devia haver, de importante, de grave, ali, pra tirarem aquilo? Quer dizer, uma notícia de primeira página. GEISEL: Quer dizer, o povo ficava trabalhando no escuro. Mas admitindo uma coisa muito pior do que realmente era. Não é? Censura você pode fazer com gente muito inteligente, muito capaz, mas de pouca duração. Pouco tempo, poucos dias. No caso do Estadão, enquanto os censores estavam nas redações, foram suprimidas 223 notícias sobre prisões, torturas, mortes e desaparecimentos. Mas a saída dos censores da redação do Estadão não significou o fim imediato de toda a censura à imprensa. Naquele ponto, a revista Veja e os jornais de oposição Opinião e Pasquim continuavam com censores trabalhando em cima dos textos. O jornal diário A Tribuna da Imprensa também. Os demais veículos de comunicação deveriam respeitar as ordens que constavam de pequenas notas da Polícia Federal, mas mesmo assim aconteceram mudanças. No primeiro mês do mandato de Geisel, foram expedidas onze novas proibições específicas. Em janeiro de 1975, o governo fechou o mês com apenas uma. Já era alguma coisa, embora não fosse algo tão significativo. Afinal, todas as outras restrições genéricas permaneciam. Nenhum órgão de imprensa estava autorizado a falar sobre os porões ou citar a existência de Dom Hélder Câmara, arcebispo emérito de Recife e Olinda e um dos grandes desafetos de batina da ditadura. Essa fala de Geisel explica sua decisão de acabar com a censura, respaldada por Golbery e outras figuras próximas do presidente. ÁUDIO 13 - GEISEL: A censura à imprensa em certas fases é necessária. Mas ela também se prolongou demais, uma das primeiras coisas que eu fiz, depois de poucos meses, foi acabar com a censura à imprensa. Às vezes censurava esse Pasquim aí do Helio Fernandes, às vezes tinha algumas coisas do Estadão, mas era muito raro. Acabar com a censura era parte do plano de abertura política de Geisel. Pela primeira vez desde 1968, a ditadura estava abrindo mão de um instrumento público de arbítrio. Mas como vamos ver ao longo desse episódio, a cada passo dado era necessário um recuo. Por mais que desejasse abrir o regime, e fosse constantemente provocado por Golbery a tomar atitudes nesse sentido, Geisel precisava ser cauteloso porque não tinha o apoio necessário das Forças Armadas. A tigrada, que mandava e desmandava nos porões, estava atenta a qualquer movimentação nesse sentido. O fim gradual da censura à imprensa era um dos pilares que, na visão dos indisciplinados, fazia de Geisel um traidor da Revolução. CENA 10: NARRAÇÃO NADEDJA Além da censura, outro ponto de conflito era a Igreja. Como já contamos, alguns dos panfletos anônimos que circulavam nos quartéis chamavam Golbery de amigo dos comunistas de batina. Mas não era só a anarquia que tinha as questões com a Igreja Católica. Geisel não suportava Dom Paulo Evaristo Arns, que qualificava de bispo ruim, entre outros adjetivos menos abonadores. Como ouvimos no episódio anterior dessa série, Dom Paulo tava há tempos trabalhando para levar a público - e também ao governo - as denúncias de tortura e maus tratos que saíam dos porões. Também foi o primeiro a tornar pública a questão dos desaparecidos, incomodando a ditadura. Geisel era agnóstico e anticlerical. Numa das conversas com Gaspari, falou sobre como encarava a religião. ÁUDIO 15 - GEISEL: Não, não rezo, não participo nem das cantorias nem nada, fico ali assistindo aquele espetáculo. Eu vou às missas aqui na igreja católica, missa de amigos meus que falecem e me convidam, eu vou lá por uma questão social. Questão de solidariedade com as pessoas, parentes do morto né. Mas eu não rezo. Não rezo, não faço o sinal da cruz, não faço nada disso. A participação de membros da Igreja em questões políticas também aborrecia Geisel. Para ele, padres, bispos e afins deveriam cuidar somente da vida espiritual dos fiéis. ÁUDIO 16 - GEISEL: Não, não é só com a igreja católica não, eu acho que a igreja luterana, metodista e tal, também tão pelo mesmo caminho. Mas um problema da igreja católica que eu considero é que, nesse episódio que o Brasil passou, ela se imiscuiu e se meteu em uma série de lugares que não são próprios da igreja. A começar pela confederação nacional dos bispos. Se você for ler o estatuto da Confederação Nacional dos Bispos, e for ver as resoluções que a confederação em plenário adota, você vai ver que não tem nada que estar, tá completamente fora do que o estatuto prescreve. Quer dizer, ela foi feita para dar unidade à religião católica. GEISEL: A igreja se imiscuiu em uma série de coisas. Ela entra em coisas do governo. A antipatia de Geisel era tanta que ele chegou a desconsiderar o apoio de boa parte da Igreja Católica ao golpe militar, inclusive engrossando as fileiras das Marchas da Família com Deus pela Liberdade. E lembre que já contamos no primeiro episódio que as passeatas, organizadas pouco antes do golpe de 1964, deram sustentação popular às movimentações pela derrubada de João Goulart. ÁUDIO 17 - GEISEL: Não, a igreja nunca trabalhou a favor. E citou também o episódio da posse, quando recebeu uma comitiva da Igreja. ÁUDIO 18 - GEISEL: Foram lá na minha posse. Na esperança de que eu normalizasse a vida do país. Pois é, eu os recebi. Mas nem sei se eles tinham o direito de ir lá, tratar desse assunto dessa forma. Mas não é só a normalização da vida no país, tem uma série de outras coisinhas que essa Conferência dos Bispos incide e resolve. Hoje em dia talvez não tanto, mas na época do Dom Lorscheider, aqueles dois Dom Lorscheider, um que estava no Ceará e outro que estava em Santa Maria. Sobretudo esse que estava sem Santa Maria, a igreja extravasou firmemente a sua atribuição. Aqui Geisel faz referência a dois bispos progressistas, o arcebispo de Fortaleza dom Aloísio Lorscheider, e o primo dom Ivo Lorscheider, bispo de Santa Maria. Já dom Eugênio Salles, cardeal do Rio de Janeiro, era bem visto por Geisel, que no dia da posse o chamou de “bom pastor”. Dom Eugênio chegou a se reunir com o presidente e, segundo Geisel, fez solicitações que apontavam para a abertura do regime, conforme ele contou a Elio Gaspari. ÁUDIO 19 - GEISEL: (...) eu tive várias conversas com o Dom Eugênio. Eu já disse uma vez aqui, eu conhecia Dom Eugênio desde o tempo que ele era arcebispo. (...) Depois ele veio ser cardeal aqui no Rio de Janeiro. Mas ele é um homem muito equilibrado, muito sereno… GEISEL: E eu mostrei a ele inclusive a posição em que eu estava, que eu não podia fazer o que queria. Quer dizer, a minha posição era uma posição que tinha uma orientação, um objetivo. Era um objetivo a longo prazo. GEISEL: Então, isso me obrigava, sem perder de vista o meu objetivo a longo prazo, que era de praticamente liquidar com a revolução. Eu não podia hoje adotar medidas que pudessem amanhã prejudicar a obtenção daquele objetivo. Mas, se era impossível ao presidente seguir as demandas de Dom Eugênio, considerado por Geisel um bom cardeal, o que dizer das demandas de Dom Paulo Evaristo Arns? Ainda no ano de 75, o cardeal arcebispo de São Paulo seria um dos atores de um acontecimento que colocou lenha na fogueira que havia entre Geisel e a indisciplina militar. BLOCO 3: HERZOG E FIEL CENA 11: ÁUDIO DE ARQUIVO: CONVERSA DE GEISEL COM ELIO GASPARI ÁUDIO 20 - GEISEL: Foi uma noite que eu não dormi. Virava pra um lado, virava pro outro, safado, bravo. Bravo com o Paulo Egydio, bravo com todo mundo. GEISEL: Eu dizia pro Paulo Egídio " mas pra que que você vai pegar num domingo à noite com essa...?" "Ah não, é que.." GEISEL: "Eu não queria que o senhor soubesse disso por outros". E tava certo. Mas dez horas da noite, quando eu tava querendo ir dormir? CENA 12: NARRAÇÃO NADEDJA O fato que tirou o sono de Ernesto Geisel foi um telefonema de Paulo Egydio Martins, governador de São Paulo. Ele aconteceu na noite de domingo, 18 de janeiro de 1976, para informar ao presidente a morte do operário Manoel Fiel Filho, no DOI-Codi. Fiel tinha morrido no dia anterior, sábado, 17 de janeiro. Mas para entender o impacto dessa morte para Geisel, e por que ela tirou o sono do presidente, vamos voltar alguns meses no tempo para contar a história de outra morte, também no DOI de São Paulo, e que entrou para o imaginário brasileiro como um dos acontecimentos mais marcantes dos 21 anos de ditadura: o assassinato do jornalista Vladimir Herzog. CENA 13: NARRAÇÃO NADEDJA Vlado, como era conhecido, chegou sozinho ao DOI-Codi na manhã de um sábado, 25 de outubro de 1975. Segundo os militares de plantão, ele cometeu suicídio na própria cela por volta das três horas da tarde, se enforcando com o cinto do macacão de presidiário que usava. Acontece que não havia um vão livre para que Vlado se pendurasse na cela para se matar, e o macacão que usava nem tinha cinto. Para explicar a morte de Vlado, precisamos falar sobre a ofensiva da tigrada sobre o PCB, o Partido Comunista do Brasil, também conhecido como Partidão. A essa altura do campeonato, não havia mais organizações da luta armada para combater. O alvo dos porões virou o Partidão. Desde janeiro de 1975, a caçada ao PCB já tinha prendido mais de 200 pessoas. Algumas delas foram levadas para aparelhos clandestinos da ditadura e assassinadas. Em julho de 1975, numa inesperada base do PCB dentro da polícia militar paulista. Foram presos 63 policiais, entre eles nove oficiais da ativa e doze da reserva. Um deles, o tenente reformado José Ferreira de Almeida, conhecido como Piracaia, foi morto sob tortura no dia 7 de agosto. No dia seguinte, o SEGUNDO Exército informou a causa da morte: suicídio. Oficialmente, Piracaia era o TRIGÉSIMO SEXTO preso a se suicidar numa prisão da ditadura, o DÉCIMO SEXTO enforcado e o SÉTIMO a cometer o ato sem que houvesse um vão livre para tal. A morte dele reabriu o conflito entre o governador Paulo Egydio e o general Ednardo d’Avila Mello. O que aconteceu é que os relatos de tortura contra os PMs presos e a morte mais do que suspeita de Piracaia tinham chocado os oficiais da polícia militar. Em outubro de 1975, começou uma nova leva de prisões, focada nas bases universitárias do Partidão em São Paulo. Em seguida, foi a vez dos jornalistas. Vladimir Herzog ocupava o cargo de diretor de jornalismo da TV Cultura desde primeiro de setembro de 1975. O nome dele foi referendado pelo governador Paulo Egydio. Dois dias depois de ser contratado, a TV Cultura exibiu, sem que Vlado soubesse, um documentário sobre o líder comunista vietnamita Ho Chi Minh. A exibição causou uma certa reação na imprensa, mas para além disso, a militância de Vlado no PCB era conhecida. Isso pouco importava. Herzog não desenvolvia atividades clandestinas e não podia sequer ser considerado um quadro. Aos 38 anos, morava com a esposa Clarice e dois filhos pequenos. O negócio dele era mais cinema, música e teatro do que política. A questão é que a prisão de Vlado servia a três crises que se desenrolavam em paralelo. A primeira era o choque da comunidade de informações com Geisel, a segunda era a caçada do CIE ao Partidão. E a terceira era o conflito entre o governador Paulo Egydio Martins e o general Ednardo d’Ávila Mello. CENA 14: NARRAÇÃO NADEDJA Na noite de 24 de outubro de 1975, agentes da repressão foram prender Vladimir Herzog na redação da TV Cultura. Vlado explicou que estava fechando um telejornal e se prontificou a ir ao DOI-Codi na manhã seguinte. Essa proposta, surpreendentemente aceita, mostrava que Vlado não queria fugir. Às 8h da manhã de sábado, Vlado chegou ao DOI, localizado na Rua Tutóia, no bairro do Paraíso, em São Paulo. Trocou as roupas e vestiu um macacão de preso. Ainda pela manhã, foi acareado com dois colegas e depois ficou a sós com o interrogador. Do corredor, esses dois colegas ouviram os gritos de Vlado e a ordem para que fosse trazida a máquina de choques. Um dos presos ainda conseguiu ver Vlado com vida, encapuzado, com as mãos trêmulas e dificuldade para falar. Nesse meio tempo, Vlado escreveu uma confissão em que reconhecia três ou quatro anos de militância, o pagamento de mensalidades de cem cruzeiros ao partido e a realização de algumas reuniões clandestinas em casa. Das sete horas em que ficou no DOI, só se sabe o que aconteceu numa faixa de tempo que vai de uma a duas horas. À tarde, a carceragem do DOI mergulhou num grande silêncio. Às 22h08, a Agência Central do SNI recebeu uma nova mensagem do DOI de SP, que informava sobre o suicídio de Herzog. Era o TRIGÉSIMO OITAVO suicida da ditadura, o DÉCIMO OITAVO a se enforcar, o OITAVO num espaço sem vão livre. CENA 15: COMENTÁRIO HELENA A foto de Vlado morto, pendurado na primeira barra da grade da cela do DOI por uma tira de pano, ficou muito conhecida. Ela foi tirada por Silvaldo Vieira, um jovem que estava começando a carreira na fotografia e fazia um curso no Instituto de Criminalística. Na época, Silvado tinha 22 anos. A reportagem da rádio CBN feita na ocasião dos 38 anos da morte de Vlado, trouxe o relato de Silvaldo sobre o que viu no DOI-Codi. TRECHO DA REPORTAGEM ÁUDIO 21 - SILVALDO: Normalmente você vai em um local, você encontra PMs, carros de cadáveres, você circula no local, você procura coisas no chão. Aquela blindagem me causou quase certeza que aquele caso era um caso especial. SILVALDO: Se você observar a foto, você vai ver que os dois pés estão no chão. Eu achei estranho aquilo, porque é difícil você cometer... normalmente, você se pendura em algum lugar e alguém chuta a cadeira e você... não você está de pé. Silvaldo ficou apenas cinco minutos no local e fez a foto da parte de fora da cela. Em 1979, resolveu deixar o Brasil e desde então vive em Los Angeles, nos Estados Unidos. CENA 16: NARRAÇÃO NADEDJA Golbery soube da morte de Vlado por d. Paulo e reagiu descontrolado: “Essa gente desgraçada está trabalhando contra nós para destruir o governo”. Em seguida, o general recomendou ao jornalista Mino Carta, diretor da revista Veja, que falasse com Paulo Egydio. Para Mino Carta, Golbery disse que aquilo era uma tentativa de golpe contra Geisel. Em 2014, Paulo Egydio relembrou aquele momento. ÁUDIO 22 - ÁUDIO Ex-governador de SP revela tentativa de golpe contra Geisel. 1min41s até 2min09s (Não foi um…comunistas)] Geisel soube da morte de Herzog no domingo, dia 26 de outubro. Numa reunião no Rio, Geisel se pronunciou atacando o ódio e a violência que marcam “a história de nossos dias”. Petrônio Portella, líder do governo no Senado, saiu em defesa de Geisel e sustentou a versão do suicídio. Disse ainda que “todas as providências seriam tomadas para elucidar o fato e as razões do ato de desespero”. Quem saiu do tom foi o senador Leite Chaves, do MDB do Paraná. Num discurso no fim da sessão parlamentar de terça-feira, 28 de outubro, disse o seguinte: ÁUDIO 23 - LOCUÇÃO: “É muito grave colocar-se o Exército, uma organização muito séria, que deveria ser intocável, em meio a tanto abuso. Hitler, quando desejava praticar atos tão ignominiosos como os que estamos presenciando, não se utilizava do Exército, mas das forças da SS”. Aqui vale um paralelo entre o discurso de Leite Chaves e o do deputado Márcio Moreira Alves, em 1968. Falamos bastante sobre ele no episódio 2 dessa série. Assim como a fala de Márcio, a de Leite Chaves passou despercebida num primeiro momento. No dia seguinte, o general Sylvio Frota recebeu uma nota com o discurso de Leite Chaves. Em 1968, a reação ao discurso de Marcito foi um dos estopins para o AI-5. Em 1975, também seria usada pela anarquia militar. CENA 17: NARRAÇÃO NADEDJA Mas enquanto a crise voava para Brasília, as movimentações em São Paulo eram intensas. O velório de Herzog tinha sido realizado na segunda-feira, dia 27 de outubro, por insistência da viúva Clarice, que se recusou a obedecer a ordem do porão para que acontecesse no domingo. Na mesma segunda-feira, a sede do Sindicato dos Jornalistas em São Paulo estava lotada de jornalistas e estudantes indignados com a morte de Vlado. Nessa reunião, alguém sugeriu que o Sindicato convocasse a população para um ato ecumênico em memória do jornalista assassinado. A cerimônia foi marcada para sexta-feira, 31 de outubro, e Dom Paulo ofereceu a Catedral da Sé. Nos dias que seguiram, a Arquidiocese informava que haveria um culto ecumênico. Já os estudantes espalharam cartazes pela cidade convocando para um, ABRE ASPAS, “ato público em repúdio ao assassinato de Vladimir Herzog'. Paulo Egydio ainda tentou dissuadir Dom Paulo de realizar a celebração. Dois secretários de Estado disseram ao Cardeal que, se houvesse mortes, ele seria o responsável. Ouviram como resposta que d. Paulo estaria lá exatamente para evitar mortes. Contrariando as expectativas, o ato transcorreu em paz. Oito mil pessoas chegaram em silêncio à Praça da Sé, se espalhando pelas escadarias da Catedral. Lá dentro, estavam o cardeal Dom Paulo, o rabino Henry Sobel e mais vinte sacerdotes, entre eles Dom Hélder Câmara. Vale ouvir agora um trecho do áudio original do ato ecumênico: ÁUDIO DO ATO ECUMÊNICO: ÁUDIO 24 - (está ruim, precisamos ver se dá para melhorar e usar. A fala do Sobel está melhor, mas acho que podemos usar como incidental) A fala de Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas, foi contundente e orientou a todos que saíssem da Catedral em silêncio no fim do ato. ÁUDIO: Fala de Audálio Dantas, presidente do sindicato dos jornalistas em 1975, durante ato ecumênico pela morte de Herzog ÁUDIO 25 - “Eu quero fazer um apelo, uma última homenagem, neste momento de dor para todos nós. Ao nosso irmão morto, ao homem morto, ao deus homem morto, ao deus que está em todos os homens, silêncio. Saiamos daqui deste templo sob o qual se reúnem todas as crenças, saiamos em silêncio, saiamos e aguardemos o caminho da paz” A polícia de São Paulo se armou para impedir as passeatas que não aconteceram. Montou 385 barreiras que só serviram para atrapalhar o trânsito. No fim da celebração, o jogo parecia ter virado. A oposição à ditadura, caminhando silenciosa, encarnou a ordem e a decência, enquanto a tigrada e o aparato repressivo representavam a anarquia e a violência. CENA 18: NARRAÇÃO NADEDJA Enquanto isso, o discurso de Leite Chaves continuava a dar pano pra manga. O general Sylvio Frota estava disposto a fazer a história render a favor da linha dura. Numa reunião de rotina do Alto-Comando do Exército, foi sugerida a cassação do senador de oposição LEITE CHAVES, considerado um inimigo do Exército pelo discurso em que culpou as Forças Armadas pela morte de Vlado. Geisel foi avisado do que estava sendo discutido com o Alto-Comando. E quando o general Sylvio Frota foi comunicar o resultado da reunião, encontrou Geisel destemperado. Ele batia na mesa e gritava: ÁUDIO 26 - [LOCUTOR: “Merda! Merda! Eu não quero ser ditador. A ser ditador, que seja um de vocês!”] Geisel decidiu que não usaria o AI-5 contra Leite Chaves e também não aceitaria que os generais fizessem uma representação no Judiciário. Ainda ameaçou Frota com uma ordem pela qual a tigrada só poderia realizar prisões com a autorização do presidente. Por fim, vetou que Armando Falcão, ministro da Justiça, se metesse no enrosco. Afinal, ele não era Costa e Silva. Frota ensaiou pedir demissão, mas ficou no cargo. Geisel tinha perdido a oportunidade de demiti-lo. No fim, o embate teve um perdedor, Frota, mas não teve vencedores. Mas os problemas causados pela morte de Vlado ainda estavam longe de terminar. Geisel aproveitou uma viagem a São Paulo para saber de Ednardo a quantas andava o Inquérito Policial Militar para investigar a morte de Herzog. Mas não havia IPM porque Frota não tinha determinado que fosse feito. Geisel insistiu. E mais: o encarregado do IPM deveria ser um general. O IPM foi instaurado, mas não para averiguar como aconteceu a morte do preso, mas para “apurar as circunstâncias do suicídio de Herzog”. O resultado da investigação foi ridículo, para não dizer desrespeitoso. Concluiu que sim, Vlado se suicidou exatamente como dizia o CIE. Ednardo festejou a resposta que seria dada aos “nazistas vermelhos”. No fim, Geisel passou um pano para a indisciplina do porão usando a mesma estratégia de 65, quando foi mandado ao Nordeste por Castello Branco para apurar denúncias de tortura. Nada seria feito, desde que não acontecesse de novo. Mas aconteceu. E a pesquisadora Helena Dias conta essa história. CENA 19: COMENTÁRIO HELENA A morte de Vladimir Herzog não freou a caçada ao PCB. Entre o fim de 1975 e o início de 1976, não havia mais dirigentes do Partidão para prender. Eles estavam presos, exilados ou escondidos. O DOI então caçava o que podia, de simples militantes a operários com emprego fixo e endereço certo. Em uma dessas caçadas a tigrada chegou a um vendedor de bilhetes de loteria, que fazia ponto em frente a uma fábrica de autopeças chamada Metal Arte. Estava recolhendo doações pro PCB e distribuía três exemplares do jornal A Voz Operária. O vendedor foi torturado e contou que Manoel Fiel Filho, do setor de prensas metálicas da Metal Arte, tinha recebido os jornais. Em 16 de janeiro de 1976, uma sexta-feira, Manoel foi retirado da fábrica e apareceu inesperadamente em casa, escoltado por dois homens com metralhadoras embrulhadas em papel de jornal. Revistaram o local e não encontraram nada. Manoel vivia com a esposa, Tereza, e duas filhas. Foi levado pro DOI-Codi e ninguém sabe o que aconteceu com ele. No sábado de manhã, ele e o vendedor de bilhetes foram confrontados. Admitiu ter recebido os três exemplares do jornal e provavelmente não tinha mais nada a dizer além do nome das pessoas para quem tinha entregado os dois exemplares restantes. Um pouco depois do meio-dia de sábado, outro preso do PCB ouviu um agente dizer: “Chefe, o omelete está feito”. Às 10h20 da noite, um carro parou em frente à casa de Fiel, na Vila Guarani, zona sul de São Paulo. Um homem desceu e disse a Teresa Fiel que o marido tinha se suicidado. Entregou pra viúva um saco de lixo com as roupas de Manoel, mas faltavam as meias azuis de nylon que ele usava. Fiel foi o TRIGÉSIMO NONO suicida do regime e o DÉCIMO NONO a se enforcar, supostamente usando as meias. FOI O NONO a se enforcar sem vão livre, assim como Herzog. O corpo de Fiel foi entregue à esposa no próprio sábado. O velório não poderia durar mais de duas horas e só os familiares poderiam participar. O SEGUNDO Exército não emitiu nota comunicando a morte de Fiel e o chefe do CIE, o general Confúcio Danton, não avisou ao ministro do Exército, Sylvio Frota. O general João Baptista Figueiredo, chefe do SNI, ficou sabendo, mas também não contou ao presidente da República. CENA 20: NARRAÇÃO NADEDJA Quem deu a notícia a Geisel foi o governador de São Paulo, Paulo Egydio Martins. Entre nove e dez horas da noite do domingo, 18 de janeiro de 1976, o telefone da granja do Riacho Fundo, onde Geisel estava, tocou. “Presidente, morreu outro preso no DOI, outro enforcamento”, disse Paulo Egydio. Naquela madrugada, o presidente tomou a decisão de tirar o general Ednardo do comando do SEGUNDO Exército e aproveitou para tomar outras decisões que estavam relacionadas à primeira. A mais surpreendente delas foi deixar Golbery de fora dessa crise. Na manhã de segunda, Geisel mandou chamar ao Palácio da Alvorada, de onde despachava nas manhãs das segundas-feiras durante o verão, os generais Figueiredo, Hugo Abreu e Sylvio Frota. Ao evitar fazer a reunião no Palácio do Planalto, evitava também a presença de Golbery na reunião. O general Figueiredo foi à reunião acompanhado do ajudante de ordens, o capitão Dias Dourado. Às nove da manhã, Dourado anotou um recado vindo do SNI. Nele estava escrito que uma perícia do DOPS concluiu que Fiel tinha cometido autossuicídio por estrangulamento usando uma meia de nylon. Na conversa com Frota, Geisel deu o caso Ednardo por encerrado. Frota deveria demitir Ednardo, que seria substituído pelo general Dilermando Gomes Monteiro. E mais: o ministro do Exército deveria exonerar também o chefe do CIE, o general Confúcio Danton. A reação de Frota à ordem do presidente foi exemplar: expediu um radiograma urgentíssimo para o SEGUNDO Exército lamentando a morte de Fiel e em seguida telefonou para Ednardo para consumar a demissão. Às 11h45, Dias Dourado recebeu um segundo recado, que dizia que Fiel tinha sido encontrado estrangulado com uma meia de nylon de homem e que não estava caracterizado o suicídio. Entre 9h e 11h45, o suicídio de Fiel foi estrangulado. Elio Gaspari explica porque a reação de Geisel ao telefonema de Paulo Egydio e sua decisão de demitir Ednardo são tão emblemáticas da personalidade dele. ÁUDIO GASPARI: Essa noite de domingo, aconteceu quase que uma síntese da pessoa do Geisel. Você imagina um sujeito que tá em casa com a mulher, toca o telefone domingo à noite, é o Paulo Egydio avisando que morreu mais um. Ele manda o Paulo Egydio ficar quieto, vai pra cama. Não consegue dormir. Perguntado por que que ele não conseguiu dormir, ele explica - ele decidiu demitir o Ednardo logo do comando do Segundo Exército. Ele perdeu o sono porque ficou pensando nas consequências. Esse é um aspecto. O segundo é que ele nunca perdoou o Paulo Egydio por ter ligado no domingo à noite. O terceiro é que o Geisel não demitiu o General Ednardo apenas porque morreu o Manuel Fiel Filho. É porque ele tinha mandado não morrer mais ninguém, e aí morreu mais um. Isso, na cabeça dele, era indisciplina. CENA 21: NARRAÇÃO NADEDJA A demissão de Ednardo marca a primeira vez em que o presidente se lançou num choque público e frontal com um chefe militar, neste caso com Sylvio Frota. Não havia espaço para negociação. O objetivo de Geisel era restabelecer a autoridade da Presidência. Apesar dos cerca de trezentos mortos e das mais de 6 mil denúncias de tortura que a ditaduta acumulou até então, em janeiro de 1976, Geisel estava mais preocupado com a disciplina militar do que com os direitos humanos. Seria ingênuo dizer que ele não aceitava a tortura ou os assassinatos, pois via neles um recurso lógico para a defesa do Estado. Isso ficou claro com os áudios que escutamos no quarto episódio dessa série. O limite de Geisel era a anarquia militar. Não foi possível provar que o assassinato de Fiel tenha sido premeditado, mas o aparecimento de outro suicida, nas mesmas condições de Herzog e na mesma carceragem, cheirava a provocação. BLOCO 4: O PACOTE DE ABRIL CENA 22: ÁUDIO DE ARQUIVO - GEISEL CONVERSA COM GASPARI ÁUDIO 27 - Então veio o negócio da abertura, eu digo "Tenham paciência, a abertura vai sair, mas nós temos que esperar, nós temos que tirar o Frota, depois que tirar o Frota nós vamos caminhar para a abertura". CENA 23: NARRAÇÃO NADEDJA A saída do general Ednardo do comando do SEGUNDO Exército parecia ter restabelecido a autoridade de Geisel, mas, como vamos ver agora, a coisa não era bem assim. Ao mesmo tempo em que o presidente reafirmou o poder, criou também novos empecilhos para que ele pudesse exercer esse poder. De um lado, a oposição queria mais, mas Geisel não queria dar. E do outro lado havia a indisciplina e os porões. E eles não dariam trégua, como conta Helena Dias. CENA 24: COMENTÁRIO HELENA Em 19 de agosto de 1976 duas bombas foram colocadas no Rio de Janeiro. Uma delas na sede da Ordem dos Advogados do Brasil, a OAB, e a outra na Associação Brasileira de Imprensa, a ABI. O CIE atribuía uma série de atentados terroristas à esquerda mas as duas bombas vieram acompanhadas de manifestos assinados pela Aliança Anticomunista Brasileira e os textos saíram da mesma máquina de escrever. O manifesto que veio junto com a bomba da ABI e que explodiu o banheiro danificando todo o sétimo andar do prédio, informava: ÁUDIO 28 - LOCUTOR: “A Associação Brasileira de Imprensa, totalmente dominada pelos comunistas, foi escolhida para essa primeira advertência. De agora em diante, tomem cuidado, seus lacaios de Moscou. Não daremos trégua. Já que as autoridades recolhem-se covardemente, nós passaremos a agir”.] Em 26 de setembro, a vítima do terror de direita foi o bispo de Nova Iguaçu, d. Adriano Hypólito. Três carros encurralaram o fusca que ele dirigia ao sair do prédio da Cúria de Nova Iguaçu. D Adriano foi encapuzado e algemado. Depois de vagarem por 45 minutos, os sequestradores do bispo pararam num descampado onde tiraram a roupa dele e borrifaram um líquido gelado. D. Adriano foi abandonado nu e amarrado em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro. Mais tarde, o autor do atentado, o coronel Luiz Helvecio da Silveira Leite comentou: ÁUDIO 29 -LOCUTOR: “Pegamos ele e pintamos de vermelho. Ficou todo vermelhinho”. Silveira Leite era sócio fundador do CIE. Como já comentamos no segundo episódio desta série, em 68 espalhou terror pelos teatros do Rio e de São Paulo. Enquanto d. Adriano prestava depoimento numa delegacia, houve outras duas explosões. Uma delas, que detonou o carro do bispo, aconteceu na Glória, em frente à CNBB. A outra foi no Cosme Velho, no pátio interno da casa de Roberto Marinho, o dono das organizações Globo. Um detetive particular contratado por Marinho para descobrir a autoria do atentado levou três meses para concluir que os explosivos usados no carro do bispo e na casa do Cosme Velho eram do mesmo tipo. Um relatório do CIE reconhecia que os atentados não tinham saído da esquerda. Afirmava que os atos pretendiam levar o atual governo a “refrear os mecanismos de distensão”. De qualquer forma, o CIE achava que d. Adriano não valia muita coisa e o SNI concordou dizendo que o bispo usava em seu brasão “uma foice e uma cruz”. Os atentados da direita em 1976 foram praticados pelo núcleo que, em 1968, fazia o mesmo se beneficiando da anarquia de Costa e Silva. Sabiam quem explodia as bombas mas não havia interesse em denunciar publicamente os responsáveis por elas. A indisciplina fingia que existia uma ameaça terrorista de esquerda, e os órgãos de informação faziam de conta que o terror de direita era um mistério. A diferença é que em 68 havia um confronto que tanto os generais como Marighella chamavam de “guerra revolucionária”. Oito anos depois só havia um terrorismo no Brasil e ele era de direita, promovido por militares indisciplinados. Mas muita gente acreditava, ou fingia acreditar, no perigo subversivo. Entre essas pessoas estava o ministro do Exército, Sylvio Frota. CENA 25: NARRAÇÃO NADEDJA Em Brasília, o ano de 1976 estava longe de acabar. Desde a derrota eleitoral de 1974, Geisel se preocupava com as eleições municipais de 1976. A ditadura temia uma nova derrota e Geisel se jogou na campanha, subindo, literalmente, no palanque e soltando frases como “Povo e Governo caminham juntos, são uma coisa só”. Chegou a ser chamado de “camelô da Arena”. Tanto engajamento tinha justificativa: o presidente acreditava que perder nas urnas poderia significar uma virada de mesa da anarquia militar. Mesmo saindo vencedora das eleições de 1976, as perspectivas para a Arena não eram boas nas eleições gerais de 1978, quando estavam previstas eleições diretas para governador. E Geisel não estava disposto a abrir mão das eleições indiretas e correr o risco de ter de lidar com 22 governadores eleitos pelo povo. Isso sem falar na possibilidade da perda da maioria no Senado. O caldo entornou de vez em março de 1977. O governo tinha um projeto de emenda constitucional que tratava da reforma do Judiciário em tramitação no Congresso. A emenda mudava a estrutura da Justiça, mas preservava dois dispositivos de força: negava o habeas corpus a acusados de crimes contra a segurança nacional e mantinha o poder do Executivo para remover e aposentar juízes. Geisel precisava de 39 votos para aprovar a emenda e sabia que teria, desde que o MDB liberasse o voto de seus parlamentares. A decisão sobre a posição da bancada do MDB seria tomada numa reunião do Diretório Nacional do partido na manhã de 25 de março. Na noite anterior, uma parte da cúpula do MDB se reuniu no apartamento de Ulysses para debater a questão. Tancredo Neves, uma espécie de oráculo da ala moderada do MDB defendeu a conveniência de permitir a reforma. Às cinco da manhã, quando a conversa terminou, Ulysses apoiou a tática de Tancredo, que deveria encaminhar a proposta de liberação da bancada. Franco Montoro falaria em seguida, para endossar essa posição. Mas na hora H, quando Tancredo terminou de falar, alguns colegas pediram ao senador Paulo Brossard que se manifestasse .Saindo do trato, Ulysses, que estava presidindo a sessão, chamou Brossard e não Montoro ao plenário. A fala de Brossard desarticulou a construção dos moderados. Antes que ele terminasse, Tancredo comentou com o deputado Thales Ramalho: “vamos votar pelo fechamento da questão, senão vamos sair daqui apedrejados”. Por unanimidade, a bancada do MDB estava obrigada a derrubar a reforma do Judiciário, derrotada em dois turnos. Poucos minutos depois da proclamação do resultado, um jornalista telefonou para Golbery e perguntou o que iria acontecer. O general respondeu: o Congresso será fechado. No dia primeiro de abril de 1977 Geisel reuniu o Conselho de Segurança Nacional e, se valendo dos poderes do AI-5, fechou o Congresso. Helena Dias fala sobre o que aconteceu a seguir. CENA 26: COMENTÁRIO HELENA Os poderes legislativos foram transferidos para um núcleo de seis pessoas, chamadas ironicamente de “Constituinte do Alvorada”. Depois de 14 dias, produziram o texto da Emenda Constitucional n. 8, que entrou para a história com o apelido de Pacote de Abril. Se a intenção de Geisel com o fechamento do Congresso fosse apenas a aprovação da reforma do Judiciário, bastaria que fizesse a sanção ali mesmo. Mas esse não era o foco. O Congresso não foi fechado para reformar o Judiciário, mas sim para dar ao governo a liberdade de emendar dispositivos político-eleitorais da Constituição como o Pacote. Anunciado no dia 14 de Abril, determinava que os governadores fossem eleitos por voto indireto, ou seja, cada assembleia legislativa escolhia seu governador, sem a participação dos eleitores; e alterava também a composição do colégio eleitoral. Essa manobra foi definida pra que o MDB não pudesse ser eleito por voto indireto nos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul. O Pacote assegurou também a maioria governista no Senado, criando o chamado senador biônico, escolhido de forma indireta, por um colégio eleitoral. O Pacote de Abril ainda estendeu para seis anos o mandato dos próximos presidentes e alterou a composição do Colégio Eleitoral que escolheria o sucessor de Geisel, assegurando o controle da situação. Essas foram as mudanças esperadas. Entre as inesperadas, Geisel abrandou a essência da lei da “denúncia vazia”, que permitia a expulsão de inquilinos de imóveis alugados e estendeu as férias dos trabalhadores de vinte para trinta dias. Dá para imaginar o quanto essas medidas deram ao Pacote de Abril uma popularidade inédita. Por último, foi baixado o quórum das reformas constitucionais de dois terços para maioria absoluta do Congresso. Na reunião do Conselho de Segurança, seis ministros defenderam esse dispositivo. Com o novo quórum, o governo recuperava a capacidade de impor à oposição um projeto autônomo de reformas constitucionais. Mas quem viu ali uma porta entreaberta foi Raymundo Faoro, eleito para presidir a Ordem dos Advogados do Brasil no mesmo dia em que o Pacote de Abril foi anunciado. Autor do clássico “Os donos do poder”, a observação de Faoro surpreendeu os colegas. AUDIO - Raymundo Faoro - 31s Para onde essa porta entreaberta poderia levar, ninguém sabia, mas Geisel, em conversa com o Elio Gaspari, deixou uma pista. ÁUDIO 30 - O pacote de Abril, exato. O Golbery queria, naquela ocasião, acabar com o AI-5. CENA 27: NARRAÇÃO NADEDJA Depois do Pacote de Abril, os estudantes voltaram às ruas. Na USP, uma greve paralisou as aulas de 60 mil estudantes. Uma passeata pela cidade foi saudada pela população com chuva de papel picado. A movimentação se espalhou para outras cidades, como Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Salvador e Porto Alegre. As mobilizações estudantis serviram aos propósitos de Sylvio Frota que, numa reunião do Alto-Comando tratou dos problemas estudantis e agradeceu ao CIE, que seguia tentando colecionar denúncias de infiltração comunista no governo de Geisel. Há tempos, Frota estava se movimentando pela própria candidatura à sucessão de Geisel. Segundo o SNI, o general estava se aproximando da comunidade de informações e dos políticos, tentando passar uma imagem de bom administrador. Para se tornar o próximo presidente, Frota precisaria contar com algumas condições: o nome do candidato passar pelo Alto-Comando do Exército ou ser beneficiado por um surto de desordem. Frota buscava as duas. Era ele ou Geisel. BLOCO 5: A DEMISSÃO DE FROTA CENA 28: ÁUDIO DE ARQUIVO - GEISEL CONVERSA COM GASPARI ÁUDIO 31 - [00:00:20] O problema é que o Golbery, o Golbery sempre queria, queria andar mais depressa. E eu estava preso há muito tempo ao problema do Frota. É que eu sabia que eu tinha que tirar o Frota. Aliás, vinham… O Heitor vinha me falar, me encher os ouvidos, em relação ao Frota. Golbery também. Eu dizia, digo, vocês tenham paciência. Eu sei que eu tenho que tirar o Frota. O problema… Eu tenho que tirar o Frota no momento oportuno. É preciso que eu tenha nessa ocasião o exército do meu lado. É preciso que o Frota faça umas besteiras que me assegure a minha, a minha autoridade em cima do Exército. Não vou tirar o Frota a sangue frio sem que ele dê um motivo claro, que todo mundo possa fazer o julgamento a meu favor. Porque é preciso que o Exército fique do meu lado. Não vou tirar o ministro pro exército se virar contra mim. Isso é uma burrice. Então é uma questão de oportunidade. Então veio o negócio, a abertura. Eu digo, tenha paciência. A abertura vai sair. Mas nós temos que esperar, nós temos que tirar o Frota. Depois de tirar o Frota, nós vamos caminhar para a abertura. [00:01:54][94.0] CENA 29: NARRAÇÃO NADEDJA A tensão entre Ernesto Geisel e o ministro do Exército, general Sylvio Frota, chegou a níveis explosivos. Dois dias antes das comemorações do Dia do Soldado, em 25 de agosto de 1977, Geisel determinou a Frota que mandasse para ele, com antecedência, a Ordem do Dia que seria lida para a tropa. Frota respondeu: ÁUDIO 32 - [LOCUTOR: "Se o senhor não tem confiança em mim, exonere-me”.] Frota achou que Geisel já não tinha força suficiente para demiti-lo, tanto que não mandou o texto e nada aconteceu. Geisel recebeu o texto, mas de Hugo Abreu, ministro-chefe da Casa Civil. O discurso havia sido contrabandeado pelo chefe de gabinete de Frota. Tanto Geisel como Frota achavam que o outro tinha cedido. Geisel havia recebido o discurso; Frota não havia enviado nada. Ambos tinham sido apenas enganados. Nas contas de Heitor Ferreira, esse foi o DÉCIMO SÉTIMO momento de desgaste entre os dois. A crise tinha se tornado insustentável. CENA 30: NARRAÇÃO NADEDJA Tudo indica que Geisel decidiu demitir Frota no dia 7 de outubro. Precisamos lembrar aqui que Geisel já tinha visto vários golpes de perto. Participou de quatro vitoriosos e perdeu outros três. Em conversas com Elio Gaspari, ele chegou a comentar. “ ÁUDIO 33 - LOCUTOR: “esse negócio de golpe é muito difícil. Vi sete, posso falar”. Para que não fosse obrigado a presenciar o oitavo golpe da carreira, Geisel montou três esquemas paralelos para garantir a segurança do plano. Um dispositivo não sabia da existência dos outros dois. No dia seguinte, sábado, 8 de outubro, Geisel chamou o chefe do Gabinete Civil, Hugo Abreu, ao Palácio da Alvorada e comunicou a decisão. Abreu sabia que tinha sido derrotado. Tinha feito o possível para preservar o cargo do Ministro do Exército. Abreu também não era partidário da candidatura de Frota, mas via nela uma chance de barrar Figueiredo. Na mesma noite, numa festa de casamento, Geisel comunicou ao general Moraes Rego que demitiria Frota na quarta-feira, 12 de outubro, feriado de Nossa Senhora Aparecida. Moraes Rego deveria voltar para São Paulo no dia seguinte e avisar Dilermando Gomes Monteiro, comandante do SEGUNDO Exército. Moraes Rego também tinha a responsabilidade de contar que Dilermando não seria o próximo ministro do Exército. O cargo seria assumido por Fernando Bethlem, que era comandante do TERCEIRO Exército. Na segunda-feira, dia 10, Geisel viajou para o Rio de Janeiro. Na cidade, encontrou o general José Pinto de Araujo Rabello, comandante do PRIMEIRO Exército, e disse: “Vou tirar o Frota”. Ouviu de volta: “Já vai tarde. Isso aqui está garantido, é área minha”. Com essas costuras, Geisel estava protegido pelo PRIMEIRO, PELO SEGUNDO E PELO TERCEIRO Exércitos. Na terça-feira, o ministro Hugo Abreu mostrou ao presidente o plano de ação. Frota seria chamado às 9h ao Gabinete de Geisel. Na mesma hora, emissários levariam a notícia a José Pinto, Dilermando e Bethlem - que já sabiam. Os três deveriam ser encaminhados imediatamente para Brasília. Além disso, Abreu alertou o comandante da TERCEIRA Brigada de Infantaria Motorizada, general França Domingues, que era casado com a filha de Orlando Geisel. França colocou duas companhias de infantaria nas proximidades da casa de Frota. França Domingues estaria no posto de comando. Por último, Golbery avisou ao pessoal de serviço na Imprensa Nacional que no dia seguinte, mesmo sendo feriado, seria rodada uma edição do Diário Oficial. A própria escolha da data foi proposital. O feriado do dia 12 de outubro era uma exclusividade dos moradores de Brasília. Enquanto todas as guarnições militares estavam trabalhando normalmente, a da capital, onde o ministro do Exército tinha oficiais de confiança, estava praticamente vazia. CENA 31: NARRAÇÃO NADEDJA Às 8h30 do feriado de 12 de outubro de 1977, logo depois de chegar ao Palácio do Planalto, Geisel mandou comunicar ao ministro do Exército, general Sylvio Frota, que precisava vê-lo ainda naquela manhã. Pouco tempo depois, Geisel e Frota se sentaram frente a frente na mesa de reunião do salão de despachos do presidente. A conversa foi breve. Geisel disse: ÁUDIO 34- LOCUÇÃO: “Frota, nós não estamos mais nos entendendo. A sua administração no ministério não está seguindo o que combinamos. Além disso, você é candidato a presidente e está em campanha. Eu não acho isso certo. Por isso preciso que você peça demissão”. Como Frota disse que não pediria demissão, Geisel continuou: ÁUDIO 35 - LOCUÇÃO: “Bem, então vou demiti-lo. O cargo de ministro é meu, e não deposito mais em você a confiança necessária para mantê-lo. Se você não vai pedir demissão, vou exonera-lo”. A conversa não durou mais do que cinco minutos. Frota levantou, ficou em posição de sentido e saiu da sala. Estava encerrada a partida que Geisel e Frota encenaram sem que o resto do país percebesse o tamanho das manobras de cada um. A partir dali, o jogo se tornaria público. Frota batalhou para levar os planos adiante. Até o começo da noite, quando passou o cargo para o general Fernando Bethlem, tentou acionar os dispositivos de um golpe de Estado. Para isso, gabaritou o bingo das quarteladas latino-americanas: soltou um manifesto divulgando a infiltração comunista e convocou uma reunião do Alto-Comando que deveria trazer à Brasília os comandantes dos quatro Exércitos. Sim, os mesmos que já tinham sido avisados dos planos de Geisel. Frota estava preso numa armadilha. Os generais dele acordaram tarde e os de Geisel estavam despertos desde a véspera. Além do aval dos comandantes dos Exércitos, o presidente contava também com a guarda reforçada pelo chefe da segurança, o tenente-coronel Germano Pedrozo, que já apareceu nessa série. Pedrozo também colocou na laje do teto do Planalto observadores capazes de controlar os arredores. Geisel estava tão seguro do esquema que declarou: ÁUDIO 36 - LOCUÇÃO: “Se eu tivesse qualquer receio, não teria deixado minha mulher e minha filha no Alvorada” Ao longo da tarde, os generais comandantes de exércitos começaram a chegar a Brasília. Mas, apesar de terem sido convocados também por Frota, passaram primeiro no Planalto. Nesse intervalo de tempo, o aeroporto de Brasília foi palco de uma cena curiosa, contada pela pesquisadora Helena Dias. CENA 32: COMENTÁRIO HELENA No dia em que foi demitido, Sylvio Frota deu apenas uma missão. E envolveria uma figura que é velha conhecida dos ouvintes dessa série, o tenente-coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Na tarde de 12 de outubro de 1977 Ustra teria que movimentar a tropa. Sua missão era ir ao aeroporto de Brasília para garantir a segurança dos generais de quatro-estrelas que estavam voando para a capital. Sabia que as coisas entre Geisel e Frota não andavam bem, mas achava que a decisão final daquela situação seria do Alto-Comando do Exército. No CIE, contaram a ele que a Polícia do Exército já tinha tomado o aeroporto. A equipe de Ustra era formada por doze homens e um deles era o major Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió do Araguaia, símbolo da tropa que em menos de dois anos exterminou cerca de 60 guerrilheiros nas matas do sul do Pará. A caravana do CIE deveria esperar os generais na pista e informar que estavam ali para levá-los à reunião do Alto-Comando. Chegando lá, Ustra se surpreendeu ao ver que a Polícia do Exército não tinha tomado o local. O general Dilermando Gomes Monteiro foi o primeiro a chegar. Ustra encontrou com ele e disse que estava ali para levá-lo até Frota. Enquanto caminhavam, um major do Gabinete Militar abordou Dilermando. Uns minutos depois, ele avisou: “Ustra, você diga ao Frota que vou atender a um chamado do presidente e depois telefono”. Na sequência, abordou o general Arnaldo Calderari, amigo de Frota e diretor do Material Bélico. Depois de andar a pista toda em silêncio, quase chegando ao portão do aeroporto, ouviu do genro de Calderari a frase: “Ustra, ele vai falar com o presidente”. Outro que passou batido pelos mensageiros de Frota foi José Pinto, comandante do PRIMEIRO Exército. Argus Lima, comandante da tropa do Nordeste, recebeu um telefonema de Frota do Recife e outro de Geisel no avião. E foi pro Planalto. Sentados lado a lado num dos bancos do aeroporto, Curió reclamou que Ustra tinha deixado barato para os generais e ouviu dele: “Se você quiser, se revolte e arque com as consequências”. CENA 33: NARRAÇÃO NADEDJA Frota, por sua vez, não incentivou nem permitiu que ninguém se revoltasse. E realmente ninguém se revoltou. Mais tarde, ele soltou um manifesto que denunciava a complacência criminosa com a infiltração comunista, listando provas sem qualquer importância. À noite, Frota participou da cerimônia em que transmitiu o cargo a Bethlem. Entre o momento da passagem e a audiência em que foi demitido por Geisel, dez horas se passaram. Nesse período, Frota ficou esperando que a anarquia desse um golpe hierárquico. O general Sylvio Frota concebia o presidente como um mero delegado da Revolução. Para ele, quem mandava era o Alto Comando do Exército, sendo que Geisel deveria desempenhar apenas uma função, obedecendo às ordens da cúpula militar. Mas Geisel nunca assumiu a posição de delegado. Ele sempre soube que, ao aceitar assumir o cargo, estaria no comando. Demitir Frota se tornou uma condição para que Geisel permanecesse no poder. E também era uma medida fundamental para mostrar que era o presidente que mandava no Exército. Somente assim seria possível restabelecer não só a autoridade constitucional do presidente da República sobre as Forças Armadas mas também a ordem nos quartéis, indispensável para seguir com o projeto de lenta, gradativa e segura distensão. CENA 34: NARRAÇÃO NADEDJA - No próximo episódio [INCIDENTAL] ENTRA ÁUDIO DE ARQUIVO - DISCURSO DE FIM DE ANO DE GEISEL SOBRE O FIM DO AI-5 (1978) Link: https://drive.google.com/file/d/1VtMpvFR9uchVfxNaWa9NI2SxPLlULh1I/view ÁUDIO 37 - [12:34] GEISEL: Na área política, o governo promoveu através de emenda constitucional aprovada pelo congresso, entre outras medidas para o restabelecimento de prerrogativas dos legisladores, a revogação dos atos institucionais que vigoravam desde dezembro de 1968. [GEISEL] A emenda terá aplicação efetiva a partir de 1º de Janeiro. E constitui mais um importante avanço no sentido de institucionalização do regime e aprimoramento de nossa democracia. Em consequência, foram também abolidas as penas de morte, de prisão perpétua e o banimento. Outras penalidades estabelecidas na lei de segurança nacional consideradas excessivas foram substancialmente reduzidas. (...) [14:29][GEISEL] A 15 de Março próximo, inaugurar-se-á novo governo presidido por João Batista de Oliveira Figueiredo. [NADEDJA] O trecho que acabamos de ouvir é parte do discurso de fim de ano de Ernesto Geisel, em 1978. Ele está se despedindo da presidência da República, que entregará ao general João Baptista Figueiredo em 15 de março de 1979. Geisel deixava o governo com o processo de abertura em curso, mas isso não significava que ele seria tranquilo. No próximo e último episódio de “A Ditadura Recontada”, vamos trazer os últimos momentos do general Ernesto Geisel no poder e os bastidores da transição para o governo de Figueiredo, o homem que chefiou por anos o SNI e dizia preferir o cheirinho dos cavalos ao do povo. A história que vamos contar a seguir vai do momento em que Geisel restabeleceu a autoridade de presidente da República diante das Forças Armadas até o fim da ditadura, em 1985. E muita coisa aconteceu nesse período. Além da revogação dos Atos Institucionais, tivemos a Campanha pela Anistia, a volta dos exilados, o atentado à bomba no Riocentro e a Campanha pelas Diretas, uma das maiores mobilizações populares que o Brasil já viu. ÁUDIO 38 - ÁUDIO DIRETAS JÁ. HINO NACIONAL NA PRAÇA DA SÉ. SÃO PAULO/SP . 25/01/1984 a partir de 2min43s até 3min41s CENA 35: CRÉDITOS O podcast “A Ditadura Recontada: as vozes do Golpe” teve pesquisa de Helena Dias, que narra essa série comigo. Ela contou com a colaboração de Daniel Reis, Bárbara Falcão e dos Centros de Documentação e Pesquisa da TV Globo, e do Sistema Globo de Rádio. Contamos neste episódio não só com áudios dos nossos arquivos e de Elio Gaspari, mas também da Rádio Senado, da TV Cultura, do Arquivo Nacional e da Comissão da Verdade. [Trilha] A trilha original foi composta por Pedro Leal. O desenho de som e a mixagem são de Marianna Romano. A produção é de Thiago Barbosa, que também foi o locutor de muitas falas sem registro em áudio, e de Bárbara Falcão. As gravações foram feitas nos estúdios da CBN em São Paulo por Débora Gonçalves. A edição e a montagem dos episódios desta série são de Bárbara Falcão e Laura Capelhuchnik. O roteiro deste episódio foi escrito pela Ana Maria Straube. [Trilha] A coordenação e desenvolvimento são de Alexandre Maron, da Ampere Mídia, e de Thiago Barbosa, gerente de produtos digitais da CBN. A supervisão de roteiro, pesquisa e edição são de Plínio Fraga, e a direção executiva, de Pedro Dias Leite. A série A Ditadura Recontada teve concepção de Pedro Dias Leite e Plínio Fraga, e décadas de apuração, profundo trabalho de reportagem e históricas entrevistas de Élio Gaspari. Pela Globo, direção geral de produtos digitais e canais pagos de Manuel Belmar. 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