Prólogo - NADEDJA Antes de começar, um aviso. Como a gente falou no episódio anterior, a base das histórias desse episódio são os áudios exclusivos de Elio Gaspari. Esses áudios estavam em fitas magnéticas de rolo por décadas, depois copiadas para fitas cassete, que novamente foram copiadas em CDS, e mais recentemente digitalizadas. Nós ouvimos os áudios originais e conseguimos acompanhar todo o conteúdo com as transcrições. Mas em muitas destas gravações é difícil entender exatamente o que está sendo dito sem a ajuda da transcrição. Por isso, decidimos usar sistemas que reconstroem o áudio original, usando inteligência artificial. Nas conversas mais difíceis de entender, como essa que vai abrir o episódio, você vai ouvir o início dos áudios originais e, em seguida, uma versão que reproduzimos com a ajuda da I.A. O conteúdo da fala é o mesmo e as vozes que você vai ouvir tomam como base as vozes originais para reconstruir com fidelidade as falas dos nossos personagens principais: Ernesto Geisel e Dale Coutinho. BLOCO 1: FIM DO GOVERNO MÉDICI E ESCOLHA DE GEISEL PARA A PRESIDÊNCIA CENA 01: GEISEL: Admitindo que eu consiga governar cinco anos, o que vai ser em cinco anos, a quem eu vou passar e como é que eu vou passar. Eu muitas vezes dizia ao Castello que não adianta fazer leis sem saber o que vem depois (...) O que vai ser o Brasil daqui a cinco anos? Será que nós vamos eternizar esse quadro que está aí? Não pode. COUTINHO: É, se continuar sem uma abertura aí, isso vai ter que acabar numa ditadura mesmo. GEISEL: Eu sei, mas e aonde é que vai parar a ditadura? COUTINHO: Aí não pára mais. CENA 02: NARRAÇÃO NADEDJA A gravação que acabamos de ouvir nunca tinha vindo a público. Ela foi feita em 1974, meio século atrás. Como a gente explicou, isso que você ouviu com clareza é uma reconstituição feita por inteligência artificial, a partir do diálogo e das vozes originais do Geisel e do Dale Coutinho. Ernesto Geisel teve o nome confirmado por Emílio Garrastazu Médici como o próximo presidente da ditadura sete meses antes da posse. E já começou a trabalhar na transição de governo. Pra isso, Geisel ganhou um gabinete no terceiro andar do pavilhão americano na Exposição do Centenário, no largo da Misericórdia, a poucos passos da praça XV, no centro do Rio de Janeiro. Esse pavilhão foi demolido alguns anos mais tarde. Depois de eleito presidente pelo colégio eleitoral, em janeiro de 74, Geisel mudou pra a residência oficial do ministro da Agricultura, nos fundos do Jardim Botânico, na zona sul do Rio. Aquela em que o CIE registrava, contra a vontade dele, todo mundo que entrava e saía, lembra? Nesse período, ele estava sempre acompanhado pelos seus escudeiros mais fiéis, o general Golbery do Couto e Silva, o secretário particular Heitor Ferreira, e o então coronel Gustavo Moraes Rego. Geisel mantinha conversas diárias com os três todos os fins de tarde. Essas conversas e muitas outras, incluindo aí ligações telefônicas, foram sistematicamente gravadas entre outubro de 73 e março de 74. Os principais assessores de Geisel e também a família dele sabiam da existência das gravações. Em 1985, Heitor Ferreira copiou parte desse acervo e cedeu o material a Elio Gaspari. Essas gravações, assim como uma série de conversas que Gaspari manteve com Geisel entre 1984 e 1996, são a base da coleção de livros sobre a ditadura e dessa série que você ouve agora. SOBE TRILHA - [tons do tema principal surgem. A gente vai dando mais volume aos poucos] Voltando aos trechos que escutamos, eles são parte de uma conversa entre Geisel e o general Vicente de Paulo Dale Coutinho, que seria o ministro do exército. Nessa conversa, Geisel expõe longamente a Dale Coutinho boa parte das intenções e projetos que ele tinha como presidente da República. As falas de Geisel ajudam a gente a entender o que ele pretendia para o governo, e as suas percepções sobre a luta armada, o AI-5, os problemas do Exército, a relação entre militares e políticos e a tão questionada abertura do regime. É possível que alguns trechos não estejam com a qualidade ideal, afinal são registros de mais de 50 anos, feitos originalmente em fitas cassete e depois copiados para CDs. Nesses casos, vamos reconstituir as conversas com outros narradores e explicar o contexto. Mas antes de qualquer coisa, precisamos contar como o general da reserva Ernesto Geisel, aos 65 anos, tornou-se o quarto presidente da ditadura militar. Eu sou Nadedja Calado e este é o quarto episódio da série "A ditadura Recontada: As Vozes do Golpe”, um podcast original Globoplay produzido pela CBN. CENA 03: NARRAÇÃO NADEDJA No episódio anterior, contamos sobre o governo de Emílio Garrastazu Médici, o general que tinha paixão pela força. Pouco afeito ao diálogo com o Congresso e implacável no combate aos opositores do regime, Médici governou de 69 a 74, e chegou ao incrível patamar de 82% de aprovação numa pesquisa realizada em 71, no auge da ditadura. Durante o governo dele, foram mortas pela máquina repressiva do regime 102 pessoas, quase o dobro do número de mortos nos governos dos dois antecessores, que somaram 59 assassinados. As denúncias de tortura pularam de 1.500 em oito anos para 2.500 em apenas três. A censura amordaçava a imprensa. Na outra face da moeda, em cinco anos consecutivos o Brasil cresceu acima de 9%, a renda per capita aumentou 50%, e não havia desemprego. Em dois anos, a porcentagem de brasileiros com automóvel foi de 9% para 12% da população e as casas com televisão passaram de 24% para 34%. Todo esse desempenho desencadeou um verdadeiro surto patriótico, inflado pela conquista da Copa do Mundo pela seleção brasileira em 1970. Médici até patrocinou a volta dos restos mortais de D. Pedro I ao Brasil. AUDIO - Cerimônia de Inumação dos restos mortais de D. Pedro I, nos 150 anos da Independência do Brasil. E talvez essa ideia tenha lembrado algo bem recente, que aconteceu em 2022. ÁUDIO - Veja como foi o traslado e a chegada do coração de Dom Pedro I CENA 04: NARRAÇÃO NADEDJA Contamos tudo isso para dar um contexto do país que Geisel herdou de Médici. O fato do governo de Médici de Milito ter alcançado ótimos resultados na área econômica e conquistado grande popularidade representava uma questão importante para o sucessor. Um dos debates nos meios militares nesse período é se efetivamente haveria um sucessor. Não foram poucos os que tentaram convencer Médici a permanecer na presidência ou esticar o mandato pelo menos até 75. Até Golbery chegou a considerar essa possibilidade. E a favor da continuidade de Médici estava o argumento de que, em abril de 74, as cassações feitas em 64 começariam a caducar. Juscelino Kubitschek, Jango e tantos outros poderiam voltar à vida pública. Além disso, em novembro de 74 estavam previstas eleições para a Câmara dos Deputados, um terço do Senado e todas as assembleias legislativas. Um presidente com tanta popularidade poderia ser muito útil em um momento como esse. Isso era algo que Medici poderia enfrentar. De cara, Geisel avisou que não faria qualquer oposição a Médici. Se ele quisesse ficar no governo, ficaria. A questão é que Médici não quis. CENA 05: NARRAÇÃO NADEDJA Segundo o general João Figueiredo, o quinto e último general-presidente, o nome de Geisel para a sucessão já estava na cabeça de Médici desde 71, quando ele tratou do assunto numa reunião com pessoas próximas. De lá até 73, quando Médici teve uma conversa definitiva com Geisel e bateu o martelo sobre a escolha, rolaram muitas articulações políticas, mas quase ninguém ficou sabendo. Ao contrário da sucessão de Castello Branco, que ocupou debates em vários círculos para além dos militares, a de Médici passou ao largo de qualquer discussão pública. Só Até mesmo as menções a possíveis candidatos pela imprensa foram sistematicamente barradas pela censura. Geisel, que nessa época presidia a Petrobras, mantinha uma posição peculiar. Quando alguém próximo dele perguntava sobre as intenções que tinha, ele costumava dizer: SONORA LOCUTOR - THIAGO - “Não movo uma palha por essa candidatura. Vão ter que vir me buscar. Aí eu vou e atendo”. Ele também tinha poucas ilusões sobre como poderiam ter chegado ao nome dele para suceder Médici. Heitor Ferreira mantinha um diário, onde registrou uma fala emblemática de Geisel, que você vai ouvir na voz do jornalista Thiago Barbosa: SONORA - THIAGO - “Como é que se chega ao meu nome? Ora, porque fulano é cretino, sicrano é burro, beltrano é safado! Isso é jeito?” Essa postura que une ceticismo a um senso de compromisso com o dever diz muito sobre a personalidade de Geisel, que pouco ou nada mudou quando o general chegou à Presidência. A vida dele foi marcada por uma grande tragédia e muita introspecção, como a pesquisadora Helena Dias vai contar. CENA 06: COMENTÁRIO HELENA Ernesto Geisel nasceu em 1907, na cidade de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul. Era o quarto filho de um alemão que abrasileirou seu nome para Augusto Guilherme. Ele chegou ao Brasil em 1883, aos dezesseis anos. Quando Ernesto nasceu, a família vivia no que Gaspari chamou de “pobreza europeia”, sem água encanada. Tudo era feito em casa, desde o pão à roupa das crianças. Augusto fiscalizava diretamente a rotina dos cinco filhos, quatro homens e uma mulher, e cada um deles cuidava de uma tarefa doméstica. Num Natal, já em condições financeiras um pouco melhores, deu aos filhos a obra completa de Júlio Verne. Ernesto foi muito impactado por essa leitura e aos oitenta anos ainda era capaz de citar trechos dos livros. A vida escolar do jovem Ernesto não foi nada fácil. Ele chegou a receber de um médico o diagnóstico de que não enxergava direito, e por isso nem valeria a pena mandá-lo estudar. Ele acabou inscrito como ouvinte na escola, mas fechou o curso elementar entre os melhores alunos. Vale lembrar aqui que o estrabismo de Geisel não provocava visão dupla. Os dois olhos enxergavam, mas o cérebro só registrava a visão de um. Por isso, ele nunca dirigiu carro e tinha um olhar inquietante. Mais adiante, ele resolveu seguir os passos dos irmãos mais velhos, Henrique e Orlando, e decidiu ir para o Exército. Ernesto se trancou no quarto por dois meses para estudar e foi um dos quatro admitidos no Colégio Militar de Porto Alegre. Pressionado pelo bom desempenho dos irmãos, terminou os anos de estudo como o primeiro da turma. Na Escola Militar de Realengo, para onde foi em seguida, repetiu as marcas e foi premiado duas vezes com uma viagem à Europa, para onde não pôde ir por não ter as roupas adequadas. Gaspari conta que Geisel vivia apenas com o que a Escola oferecia e era membro da Associação do Estudante Pobre. Quatro anos depois saiu da Escola Militar como tenente de artilharia de um exército pequeno, frágil e inepto. Geisel foi contemporâneo do movimento conhecido como tenentismo que se rebelou em 1922 em busca da moralidade pública e de um projeto renovador para governar o Brasil. ÁUDIO - Como foram os 100 anos da Independência do Brasil Geisel se identificava com os tenentes dissidentes mais por solidariedade, porque no fundo ele era mais inclinado em manter o poder na mão dos “casacas”, os civis. Nos anos seguintes, foi parar em São Paulo, na vanguarda das forças que apoiaram a chegada de Getúlio Vargas ao poder, foi transferido para o Rio de Janeiro e depois para a Paraíba, onde ficou por quatro anos e chegou a ser nomeado secretário estadual da Fazenda, Agricultura e Obras Públicas em 1934. Um tempo depois, Geisel foi mandado para o Rio de Janeiro, para o Grupo Escola de Artilharia. Foi lá que, em 1939, tinha começado a namorar a prima Luci Markus, gaúcha de Estrela. Em 40, nasceu Orlando Geisel Sobrinho, o primeiro filho do casal. Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 1942, Vargas começou a enviar um efetivo que chegou a 25 mil homens para lutar contra os países do Eixo, na Itália. ÁUDIO - Áudios da BBC com pracinhas brasileiros da Feb na Segunda Guerra Mundial “Nós havemos de lutar para acabar com essa desgraça. Para mostrar ao estrangeiro o valor da nossa raça. Caminha barco caminha, nas ondas azuis do…” Apesar de ter tirado o primeiro lugar na Escola de Armas e, em 43, ter concluído com louvor o curso de estado-maior, Geisel foi excluído das listas de oficiais mandados aos Estados Unidos. Lá, fariam um treinamento intensivo que formaria a base da Força Expedicionária Brasileira. O histórico de bom desempenho tornou a exclusão ainda mais dolorosa, até porque viu incluídos nas listas outros oficiais que, como ele, eram de ascendência alemã. Nesse ponto, Geisel tinha uma biografia marcada pelas desordens militares da primeira metade do século XX. Mas pra conhecer a personalidade dele, é mais importante entender que as inquietações tinham muito mais a ver com a qualidade do Exército – que era forte nos palácios e fraco nos quartéis – do que com os grandes problemas nacionais. Geisel atuou no golpe contra Getúlio Vargas em 1945, um movimento que, segundo ele, foi feito dentro da hierarquia. ÁUDIO 07 - No governo Dutra, depois da queda de Getúlio, Geisel ocupou uma das seções da secretaria geral do Conselho de Segurança Nacional. Chegou a ser enviado como adido militar ao Uruguai, onde permaneceu por dois anos e juntou dinheiro suficiente para comprar um apartamento no Leblon. Com Vargas de volta ao poder, dessa vez por meio do voto e levado pelos braços do povo, Geisel manteve-se no quartel. Do Estado Maior das Forças Armadas passou à Escola Superior de Guerra, que nem sede tinha. AUDIO 08 - Getúlio Vargas e a criação da Petrobrás Depois de uma passagem pela recém-criada Petrobras, e depois do golpe de 1955, que entrou para a história como “novembrada” -e que não teve seu apoio, é importante frisar - Geisel foi convidado pelo Marechal Lott para comandar a prestigiada AMAN, a Academia Militar das Agulhas Negras. Ele recusou e foi designado comandante do 2o Grupo de Canhões Antiaéreos em Quitaúna, na periferia de São Paulo. Foi lá, no dia 28 de março de 1957, que Geisel viveu uma grande tragédia pessoal. Nesse dia, ele completou um ano em Quitaúna e houve uma pequena comemoração. O filho Orlando Sobrinho ia participar de um jogo de basquete. A caminho do quartel, de bicicleta, foi atingido por uma composição e morreu ali mesmo, na linha do trem. A morte do filho Orlando impactou profundamente Ernesto Geisel. De volta ao Rio, poucos meses depois, seus cabelos louros estavam completamente brancos. Ele ficou dez anos sem pronunciar o nome do filho e pediu à esposa que retirasse uma foto de Orlandinho de um porta-retratos. Na presidência, passava a noite de Natal com a guarda, pois dizia que sua família não estava completa. A personalidade austera e retraída se intensificou. Ele chegou a declarar que, ao longo da vida, foi um homem infeliz. A vida social, que já era pouco movimentada, se tornou inexistente. Nem mesmo as pessoas mais próximas tinham coragem de falar com ele sobre Orlandinho. Geisel, o homem que não blefava no pôquer por medo da vergonha de ser apanhado, se ensimesmou ainda mais. Foi esse homem, recluso e sem prazeres, que chegou à Presidência. CENA 07: NARRAÇÃO NADEDJA Como já falamos aqui, Médici não estava disposto a prorrogar o próprio mandato ou a se reeleger. Alguns atores que também já apareceram nesse podcast seguiam conspirando, como Jayme Portella. Por ele, estava valendo até colocar um civil na presidência. O SNI tentou fustigar Geisel, vetando a matrícula de Leon Zeitel, chefe-adjunto do serviço de planejamento da Petrobras, no curso da Escola Superior de Guerra. O Serviço alegou que em 64 ele tinha sido denunciado por atividades comunistas, o que nunca ficou provado. Geisel agiu e Zeitel foi matriculado na Escola Superior de Guerra, com a benção do SNI. Mas, se tinha de lidar com esse tipo de conluio, Ernesto Geisel teve também apoios essenciais. O irmão Orlando Geisel foi um desses esteios. Guarde essa informação, mais adiante vamos voltar a falar de Orlando. Outra figura que trabalhou por Geisel foi o general João Baptista Figueiredo, costurando uma conversa entre Médici e Geisel que chegou a ser desmarcada porque Médici queria ver um jogo de futebol. Essa conversa foi muito debatida entre Figa, como os amigos chamavam Figueiredo, e Heitor Ferreira e também ensaiada por Geisel e pelo secretário. Quando aconteceu, o papo foi breve, mas eficaz. Dois anos depois, Médici diria o seguinte a Figueiredo, sobre Geisel: ÁUDIO 09 - LOCUTOR THIAGO: “Eu tenho pena dele. Aliás, nós sabíamos e comentávamos o rabo de foguete que ele ia pegar. O mundo é outro. Eu tive sorte”. Podemos dizer tranquilamente que Ernesto Geisel se tornou o quarto presidente da ditadura militar com apenas um voto, o de Emílio Garrastazu Médici. E ele estava disposto a governar. BLOCO 2: AS INTENÇÕES DE GEISEL CENA 08: ÁUDIO DE ARQUIVO - CONVERSA ENTRE O GENERAL ERNESTO GEISEL E O GENERAL VICENTE DE PAULO DALE COUTINHO GEISEL: Eu não abro mão do AI-5. É um cajado. Eu sou besta de abrir mão desse negócio. Eu sei lá o que é que vem? CENA 09: NARRAÇÃO NADEDJA Vamos voltar à conversa de Geisel com Dale Coutinho, aquela que a gente reconstituiu com a ajuda da inteligência artificial. Segundo o que Gaspari escreveu em “A ditadura derrotada”, de todas as conversas com os futuros ministros, essa foi a mais reveladora. Ela aconteceu um mês antes da posse, em 16 de fevereiro de 74. Nela, Geisel convidou Coutinho para o Ministério do Exército. Eles eram velhos conhecidos, mas sem intimidades, e começaram tratando de assuntos triviais, como o casamento recente dele e uma cirurgia de ponte de safena. Mas não só. Geisel começa falando sobre a visão que tinha da política e dos políticos, e sobre o que gostaria de fazer pela Arena, o partido político de sustentação do regime. GEISEL: “Na área política continuamos com a mesma droga. [...]'Todos nós, de uma maneira geral, temos uma repulsa aos políticos, mas os políticos são necessários. Nós não podemos ter políticos só para dar uma fantasia, para no dia tal votar no general Geisel e no general Médici. Eu quero fazer um esforço para melhorar esse partido. Não vou dar aos políticos o que eles querem, não vou me mancomunar com eles, mas vou viver com eles. Tenho que viver com eles, porque senão, como é? Temos outra alternativa que é ir para uma ditadura. Então vamos fechar esse troço, vamos fechar congresso, vamos fechar tudo, vamos para uma ditadura, o que é uma solução muito pior. esse é um dos quadros em que a meu ver até hoje a Revolução fracassou. Ora o sujeito conversa com os políticos, ora dá coice nos políticos, fecha o Congresso, abre o Congresso e vivemos nessa faina. Nós temos que conviver com eles e ver se a gente consegue melhorar esse partido da Arena. Onde você chega é um saco de gatos. (...) NADEDJA: Geisel também revela a preocupação com a continuidade do que os militares chamavam de Revolução: GEISEL: Eu tenho que pensar, Coutinho, admitindo que eu consiga governar cinco anos, o que vai ser em cinco anos, a quem eu vou passar e como é que eu vou passar. Eu muitas vezes dizia ao Castello que não adianta fazer leis sem saber o que vem depois (...) O que vai ser o Brasil daqui a cinco anos? Será que nós vamos eternizar esse quadro que está aí? Não pode. (...) Passaram-se 10 anos e nós continuamos a falar em Revolução, mas você pega essa nossa revolução e vê que ela foi uma coisa que se chama Arca de Noé. Entraram todos os bichos lá dentro. Como ela também não durou na sua parte operacional, não houve depuração. Você teve políticos como o seu Lacerda, o seu Magalhães Pinto, o seu Ademar de Barros. Na área militar você teve Justino Alves Bastos, teve Amaury Kruel e uma série de outras coisas. Acabou o Lacerda se juntando com o Juscelino e com o Jango. O Magalhães Pinto, que era um grande revolucionário, comia no cocho do Jango. (...) NADEDJA: Nessa hora, Dale Coutinho é incisivo: COUTINHO: Na área política só houve decepções para mim. NADEDJA: Tem duas coisas que chamam a atenção aqui: a análise de Geisel sobre a relação dos antecessores com os políticos, e a menção à abertura política, o que na visão de Geisel seria algo incontornável. GEISEL: Mas olha aqui, não houve de nossa parte a preocupação de melhorar. Não houve. Tanto o governo do Costa e Silva quanto o do Médici escorraçaram eles, como se fosse uma lepra. Eu posso escorraçar os políticos se eu resolver que não tem mais política. Mas isso não é mais possível. Se nós queremos ter um regime aberto, democrático no país algum dia, nós temos que construir com a política. Isso evidentemente é um trabalho perseverante de muitos e muitos anos. Não sou eu em cinco anos vou fazer, mas a gente tem que trabalhar para isso. É um trabalho difícil, persistente, tenaz. Temos que ser realistas. COUTINHO: É, se continuar sem uma abertura aí, isso vai ter que acabar numa ditadura mesmo. GEISEL: Eu sei, mas e aonde é que vai parar a ditadura? COUTINHO: Aí não pára mais. NADEDJA: Pode parecer estranho eles falarem em acabar numa ditadura, com o país já vivendo uma ditadura há dez anos. Mas a discussão ali era sobre o futuro do regime. E aí sobra até para o Exército. GEISEL: Inclusive Coutinho, vamos por a mão na consciência. O nosso Exército tem condição de durar numa ditadura? Com os nossos homens, porque no nosso Exército tem muita gente boa, mas tem muita gente que não presta. Você sabe muito bem disso. Tem de tudo. O Exército é uma representação do que é a Nação. Assim como tem gente boa lá fora, aqui dentro também tem. É claro que nós temos outra formação. Mas quantas vezes você chega lá em cima e tem uma surpresa, o sujeito é individualista, é personalista. O Exército pode manter uma ditadura? Eu acho que o Exército pode manter uma ditadura, mas não a longo prazo. Outro setor onde a Revolução não conseguiu fazer nada e continua a mesma porcaria é a Justiça. NADEDJA: Quando fala de Justiça aqui, Geisel está se referindo ao Ministério da Justiça. E dá para ver que a avaliação dele é bem negativa. GEISEL (cont.): Nós nunca tivemos ministro da Justiça. O Castello botou o Milton Campos, um homem de primeira ordem, liberal. Quem foi ministro da Justiça durante parte do governo Castello fui eu. Eu que aceitei os ônus de todas aquelas porcarias. E vai para o Acre, vai para o Amazonas, encrenca no Rio Grande do Sul, encrenca em Pernambuco. Quem movimentava essas áreas todas era eu. Eu tinha o ônus dessas coisas todas sem ter as prerrogativas, a legitimidade. Por quê? Porque o ministro da Justiça inclusive era contra. Depois o seu Mem de Sá, um sujeito muito bom mas que carrega fantasmas. Foi oposicionista a vida inteira. O Costa e Silva arranjou um ministro da Justiça que era revolucionário, mas era um louco, o seu Gaminha. Agora o Médici botou aí um ministro da Justiça que é um bom sujeito, mas é inoperante. NADEDJA: Gaminha era o Gama e Silva, o ministro da edição do AI-5. E esse bom sujeito a quem Geisel se refere aqui é o jurista Alfredo Buzaid. Geisel: Você tem problema de padre, que é um problema complicado. Você hoje em dia tem problema de entorpecente. Continua a ter o problema da subversão. Tem uma infinidade de problemas lá. NADEDJA: A conversa mostra que Geisel sabia bem os problemas que ele iria enfrentar. Além da questão da política, tinha a economia, com os melhores anos do Milagre ficando pra trás: GEISEL: No quadro interno nós temos hoje em dia, outro problema que é o problema da área econômica.[...] O Delfim, querendo fingir que não tem inflação, não deixa os preços seguir naturalmente. Então ele agora, não quer deixar subir o preço da gasolina, como deve subir e tá subvencionando, quer dizer, ele entrou, entrou na mentira, ele tá entrando no sistema do Jango, subsídio, subsídio [...] COUTINHO: “Isso..., está se voltando a época do Juscelino. ” GEISEL: 'Tudo isso foi para criar a imagem do Médici. Eu acho que o Médici não precisa disso. Ele foi o único sujeito capaz de levar a Revolução para o povo. Ele não precisa dessas coisas. É a entourage, o Delfim. Hoje em dia existe um dique represando a inflação que eu vou ter que romper. Então eu sou ruim. Mas eu estou aqui para isso, sou pago para isso. Eu não tenho razões personalistas. Não me queixo do Médici. (...) CENA 10: NARRAÇÃO NADEDJA O próximo ponto da pauta de Geisel com Dale Coutinho é o Ato Institucional número 5. Como ouvimos lá no começo, Geisel não estava disposto a abrir mão dos poderes que o AI-5 conferia pra ele. Embora já estivesse naquele momento pensando em como desmontar o regime que tinha ajudado a criar, tinha claro que isso só poderia ser feito com muita cautela. Para isso, as possibilidades que o Ato 5 oferecia eram fundamentais. GEISEL: Eu não abro mão do AI-5. É um cajado. Eu sou besta de abrir mão desse negócio. Eu sei lá o que é que vem? Como essa história de abertura e descompressão. Ah, eu sou um sujeito profundamente democrático. Toda a minha vida eu fui. Sempre fui um homem muito simples, despido de coisas, e minha mulher compra na feira. Não sou burro de amanhã fazer uma vasta abertura, fingir aí uma democracia e depois ter que recuar dois, três, quatro passos. Eu não vou recuar. Eu só vou caminhar para a frente, devagar, para não ter que recuar. Seria uma beleza eu chegar e dizer, não há mais censura, agora o troço é à vontade, a Câmara vota como quer e não sei o quê. E no dia seguinte está o estudante fazendo bagunça na rua, está o padre fazendo meeting, está não sei o quê. Não aconteceu isso com o Costa e Silva? O Castello fez uma Constituição, convencido de que aquilo era para valer, o Costa e Silva na sua boa intenção quis cumprir e dali a pouco estava a esculhambação aí. Os estudantes foram inclusive apedrejar e pintar o Tribunal Militar. Eu não vou caminhar para trás. COUTINHO: Naquele AI-5 eu estava vendo que o presidente ia cair. Ia cindir a Revolução. GEISEL: No AI-5 eu estava no Tribunal. Me perguntaram, o Alcides Carneiro: e agora? Agora vai sair um ato institucional. É evidente. Brincaram tanto com o fogo, mexeram tanto, tanto. Ou o governo faz um AI, ou vai virar bagunça. COUTINHO: Iam fazer com ele ou sem ele. GEISEL: Ele fez o AI-5 constrangido porque por tendência não faria. Agora, eu não quero ser obrigado. (...) E quando for o caso eu aplico. E se amanhã tiver um juiz desembargador salafrário, fazendo um mundo de bandalheiras por aí, e eu tiver as provas, aplico. Vou aplicar é racionalmente, com moderação e com decência e pronto. CENA 11: NARRAÇÃO NADEDJA A conversa foi de tema em tema, até chegar ao ponto que Dale Coutinho esperava: o problema do que era chamado naquela época de subversão. Aqui vale a pena a gente falar um pouco mais sobre a atuação de Dale Coutinho na caça aos opositores da ditadura. Ele chefiou com mão de ferro a repressão política no Nordeste. Um exemplo do modo de agir dele foi o assassinato do geólogo Ezequias Bezerra da Rocha, em 11 de março de 72. Ezequias tinha emprestado o carro a dois militantes do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Foi preso e torturado, e chegou a ser visto machucado pela própria mulher. Para encobrir a morte sob tortura, o IV (QUARTO) Exército montou uma farsa à semelhança de tantas outras, como a que tentou camuflar a morte do deputado Rubens Paiva no DOI-Codi do Rio de Janeiro. Dale Coutinho informou que Ezequias enganou os agentes que o levaram para reconhecer outros militantes num ponto e fugiu num carro desconhecido. A própria documentação da prisão de Ezequias desmentia essa versão, já que registrou a prisão três horas e meia mais tarde que a suposta fuga. O corpo dele, cheio de marcas de tortura, foi encontrado numa barragem no dia 13 de março, mas o IV (Quarto) Exército não permitiu o reconhecimento e ele foi enterrado com outro nome. Dale Coutinho entra nessa história para obstruir as investigações, mesmo sabendo que Ezequias tinha sido morto dentro do DOI sob o comando dele. Dale Coutinho era a favor desse “negócio de matar”. BLOCO 3: A GUERRILHA DO ARAGUAIA - ESSE NEGÓCIO DE MATAR CENA 12: ÁUDIO DE ARQUIVO - CONVERSA ENTRE O GENERAL ERNESTO GEISEL E O GENERAL VICENTE DE PAULO DALE COUTINHO Nadedja: Esse registro que a gente vai ouvir agora é um documento histórico importantíssimo. Ele é um momento único, em que um presidente da ditadura admite que os militares, a partir de um certo momento, começaram a executar os opositores do regime depois que eles eram capturados. Essa política de extermínio jamais foi admitida oficialmente. Em um momento anterior dessa conversa, Dale Coutinho já tinha tocado no assunto, mas Geisel fez que não ouviu, ou que não entendeu. Ou não entendeu mesmo, não dá para saber com certeza. Mas quando Dale Coutinho volta ao tema, é que acontece esse diálogo tão relevante: COUTINHO: Eu fui para São Paulo em 69, que o Lyra me mandou para lá ajudar o Carvalho Lisboa. O que eu vi naquela época para hoje, ah, o negócio melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a matar. Começamos a matar. GEISEL: Porque antigamente você prendia o sujeito e o sujeito ia lá para fora. Oh Coutinho, esse troço de matar é uma barbaridade, mas eu acho que tem que ser. CENA 13: NARRAÇÃO NADEDJA A gente já falou bastante nessa série sobre a repressão aos grupos clandestinos armados que atuaram contra a ditadura nas cidades, a guerrilha urbana. Você também já ouviu sobre a descoberta da Guerrilha do Araguaia, um movimento organizado pelo Partido Comunista do Brasil na floresta amazônica, mais precisamente na região conhecida como Bico do Papagaio. Um dos orgulhos do general Emílio Garrastazu Médici era a crença de ter exterminado a tal subversão, sobretudo nos centros urbanos. O que fica claro aqui é que a política de extermínio de Médici, que passou a matar e não mais prender, foi chancelada por Geisel. Antes de tomar posse, ele já estava decidido a seguir com ela. E Dale Coutinho, futuro ministro do Exército, estava de acordo. CENA 14: ÁUDIO DE ARQUIVO - CONVERSA ENTRE O GENERAL ERNESTO GEISEL E O GENERAL VICENTE DE PAULO DALE COUTINHO COUTINHO: 'Eu vi em São Paulo, e justiça se faça ao Humberto. Quando começou o comando do Humberto, começou a diminuir o terror, porque a ordem dele era matar. A ordem dele era matar. Lá no nordeste infelizmente o Bina não acreditava naquilo e eu fui obrigado a tratar esse problema lá e tive que matar, tive que matar. " NADEDJA: Tanto Geisel quanto Dale Coutinho concordavam que a questão da oposição armada não estava resolvida. GEISEL: Agora vamos ver o problema da subversão nossa. Eu acho que a subversão continua. Esse negócio não acabou. Isso é um vírus danado que não há antibiótico que liquide com facilidade. Está amainado. Está resolvido. Você vê de vez em quando uma articulação, morre gente, vai gente presa, mas ele continua a se movimentar. (...) NADEDJA: Outra preocupação dos dois eram as denúncias feitas no exterior pelos opositores da ditadura, exilados ou banidos. Com a imprensa censurada, muitos dos relatos sobre mortes e torturas nos porões se tornaram conhecidos por meio do que os generais chamaram de “propaganda externa contra o Brasil”. GEISEL: Fazem uma propaganda externa tremenda contra o Brasil. O que se faz na Europa hoje em dia em matéria de publicidade contra o Brasil não queira saber. Agora no mês de março eles vão reunir o tribunal Bertrand Russell para fazer o julgamento do Brasil. Então vão fazer um bruto farol. Na França, a campanha contra o Brasil é grande. Naquela Brasil Export, na Bélgica, fizeram horrores. COUTINHO: Repare o seguinte. Antes de 64 não havia propaganda praticamente nenhuma contra nós. E ninguém mais investia no nosso país. Hoje com toda essa propaganda que há, quem quer vir investir no Brasil, que é obrigado a fazer um estudo mais detalhado desse nosso país, ele não titubeia e vem. GEISEL: Tem que dar valor relativo a isso. COUTINHO: A resposta é o nosso progresso. Isso para mim é coisa de Dom Helder, dessa turma progressista por aí. Ninguém deixa de empregar dinheiro no Brasil por causa dessa propaganda lá fora. NADEDJA: Ou seja, eles se preocupavam com as críticas negativas. Mas avaliavam que isso não interferia no principal, que eram os investimentos estrangeiros no Brasil, que pareciam não ligar para as denúncias de violações de direitos humanos. Em seguida, Dale Coutinho retoma as reclamações contra o sistema de Justiça. Para os dois, isso só atrapalhava pra que os militares pudessem fazer o que precisava ser feito. COUTINHO: Aí é que entra a Justiça. Eu comandei o Exército e cumpri habeas corpus em cima de mim. É que os comandantes do Exército estão completamente sem cobertura legal. A gente assume a responsabilidade porque tem que assumir. Eu me lembro que eu perdi. Morreu lá no meu DOI um homem, foi justamente em cima daquele que veio o habeas corpus. O homem tinha morrido dentro do meu DOI. E eu tive que responder. Eu crente que já tinha acabado o negócio com o relator, um brigadeiro, passaram uns dois ou três meses e veio um outro. Agora pior, porque veio em cima de mim e do meu major chefe do meu DOI. Aí eu não deixei ele responder. (...)Isso varia de comandante para comandante. Isso cria uma solução de continuidade nessa luta. Vem um comandante e ataca outro acha melhor não atacar, cai outra vez a repressão. NADEDJA: Aqui, Coutinho se refere ao caso do Ezequias Bezerra da Rocha, esse que contamos agora há pouco, da farsa que tentou encobrir a morte dele sob tortura. GEISEL: Nós temos que estudar bem isso. Vamos ver se nós conseguimos uma certa uniformidade nisso. Eu não tenho... eu confesso a você que eu não estudei isso em minúcias. Eu vejo o problema da subversão que nós temos que enfrentar. Se nós amolecermos na ação, não tenha dúvida que isso cresce. Isso é um fogo, está meio apagado. Se você parar, daqui a pouco ele aumenta de novo. Nesse quadro todo, nós só conseguimos viver esses 10 anos porque nós conseguimos nos unir. As Forças Armadas, apesar de certos personalismos, essas coisas nesses 10 anos elas conseguiram se unir. A técnica da intriga do Juscelino e do Jango, dessa gente, era nos dividir. eram os generais do povo, era o Lott, era isso, era aquilo. NADEDJA: Logo depois, Geisel e Coutinho passam a falar sobre o Araguaia. Lembrando novamente o que contamos no episódio anterior: a partir de 73 todos os militantes foram assassinados, mesmo os capturados vivos. ÁUDIO 24 - 30:22 COUTINHO: E outro dia ainda tive uma satisfação que no relatório do CIE, a origem, o fio da meada dessa guerrilha lá de Xambioá começou num estouro que nós fizemos em 72 lá em Fortaleza. Foi dali que um falou que tinha guerrilheiros no Norte de Goiás, não sei o que. GEISEL: Sabe que agora pegaram o tal líder e liquidaram com ele. Não sei qual é o nome dele. COUTINHO: É. O Chicão. Luizão. Sei lá. NADEDJA: Aqui, Coutinho estava se referindo a Osvaldão, o guerrilheiro Osvaldo Orlando da Costa, morto semanas antes. ÁUDIO 25 - GEISEL: Bom, o que eu queria assinalar é isso. Nós vamos ter que continuar ano que vem. Nós não podemos largar essa guerra. Infelizmente nós vamos ter que continuar. É claro que vamos ter que estudar um novo processo, vamos ter que repensar. CENA 15: NARRAÇÃO NADEDJA Ainda sobre o extermínio da Guerrilha do Araguaia, vamos recuperar uma outra conversa que aconteceu antes da posse de Geisel, alguns dias depois da reunião com Dale Coutinho. Geisel falava com o tenente-coronel Germano Arnoldi Pedrozo, o chefe da segurança dele. Talvez você se lembre dele, que também apareceu no terceiro episódio dessa série. Pedrozo, que já tinha trabalhado no CIE, estava bem informado sobre as operações no Araguaia e transmitiu a Geisel o que sabia. CENA 16: ÁUDIO DE ARQUIVO - CONVERSA ENTRE O GENERAL ERNESTO GEISEL E O TENENTE CORONEL GERMANO PEDROSO https://docs.google.com/document/d/1S0n9WDMUS08NkW0bUZgPBtnf4_cBd75demundSffo9w/edit ÁUDIO 26 - 05:47 GEISEL: Vem cá, e como está aquela operação lá em Altamira? PEDROZO: Lá em Xambioá? Tenho a impressão de que se prosseguir como tem sido executada, mais uns dois ou três meses liquida-se aquilo lá. GEISEL: Mas eles já conseguiram alguma coisa? PEDROZO: Atualmente já pegaram quase que 30. GEISEL: Trinta? PEDROZO: Trinta. O efetivo mais sou menos estimado para lá é da ordem de 1.200 GEISEL: E esses trinta, o que eles fizeram, liquidaram? Também? PEDROZO: Também. GEISEL: Hein? PEDROZO: Alguns na própria ação. E outros presos depois. Não tem jeito não. GEISEL: E os outros, não liquida porque não adianta. PEDROZO: Não, porque não consegue apanhar. CENA 17: NARRAÇÃO NADEDJA Ao longo de 1974, os remanescentes da Guerrilha do Araguaia foram todos capturados e mortos. Naquele ano, chegava ao ápice a política de extermínio de presos políticos. A ditadura não se dava mais ao trabalho de forjar mortes em tiroteios, fugas ou suicídios e Geisel estava a par dessa política. Ainda na conversa com Pedrozo, Geisel soube de outros militantes que, vindos do Chile, tinham sido capturados no Paraná. “Não liquidaram, não?”, pergunta Geisel a Pedrozo, ao que ele responde: “Ah, já, há muito tempo”. Os corpos desses militantes, assim como os dos guerrilheiros mortos no Araguaia, nunca apareceram. Eles engrossam a lista dos chamados “desaparecidos”, uma palavra que seria um dos principais itens da agenda da primeira metade do governo de Geisel. A pesquisadora Helena Dias conta um pouco mais sobre o termo e como ele surgiu. CENA 18: COMENTÁRIO HELENA No final de 1973, Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal e arcebispo da cidade de São Paulo, começou a reunir nomes e informações para construir uma lista de desaparecidos políticos. Se encaixavam no termo “desaparecidos” as pessoas que tinham sido presas pelas forças de repressão e cujos corpos tinham sumido sem deixar vestígios. AUDIO 27 - ÁUDIO 14s ao 36s Dom Paulo Evaristo Arns e a ditadura militar (Cultura/2005) Os desaparecimentos de opositores do regime, fossem eles militantes de organizações clandestinas armadas ou não, eram o resultado da união entre a política de extermínio da ditadura e a clandestinidade dos porões. Aqui, Elio Gaspari reforça que Essa clandestinidade não tinha a ver com excesso de autonomia ou mesmo descontrole de alguns agentes que se excederam ao lutar contra a subversão. Mas sim porque esses atos estavam ocultos dentro da máquina do Estado e protegidos pela hierarquia. Os desaparecimentos, de certa forma, facilitavam o trabalho dos porões. Afinal, eles eliminavam a possibilidade de denúncias feitas a partir das autópsias que revelavam mortes sob tortura e também de testemunhos dos moradores dos locais onde os agentes dos DOIs montavam tiroteios falsos. Para dar uma ideia de volume, em 1964 a ditadura matou 19 pessoas, mas apenas duas desapareceram. Em 69, sumiu o cadáver de Virgílio Gomes da Silva, o comandante militar do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick. Já em 71, o número de desaparecidos cresceu. Foram 16 do total de 50 mortos. No levantamento feito por Gaspari, o número de desaparecidos em 73 passa para 28 de 59 mortos, mas esse número é impreciso. Os comandantes militares nunca reconheceram as datas das execuções praticadas no Araguaia. Em 74, são contabilizados 52 mortos, todos desaparecidos. Afinal, nesse ponto, no Araguaia não se faziam prisioneiros. Quando Geisel assumiu a presidência, não havia sequer um morto na contabilidade oficial do governo para o ano que começava, o que dá uma falsa impressão de brandura. Mas isso nada mais era do que um disfarce do extermínio. Nos 63 dias que antecederam a posse de Geisel, desapareceram pelo menos nove pessoas no Araguaia e nas cidades. Todas elas foram assassinadas. As conversas de Geisel com Dale Coutinho e Pedrozo não foram as únicas que trouxeram a realidade dos porões para o próximo presidente. Em 73, o porão bateu à porta, quando a estilista Zuzu Angel foi pessoalmente ao apartamento de Geisel para pedir a ajuda dele para localizar o filho, o militante Stuart Angel Jones. Geisel não a recebeu. CENA 19: NARRAÇÃO NADEDJA E já que a Helena falou em d. Paulo Evaristo Arns, vamos aproveitar para contar uma história sobre a relação do governo Geisel, mais especificamente do General Golbery do Couto e Silva, que se tornou ministro da Casa Civil, com representantes da Igreja Católica. Você deve ter notado que na conversa entre Geisel e Dale Coutinho, eles citam Dom Hélder Câmara, arcebispo emérito de Recife e Olinda, responsável por muitas denúncias de tortura, e falam até em padres fazendo meeting. Ou seja, essa era realmente uma questão para eles. Geisel tinha uma forma própria de classificar suas preferências entre os padres. Alguns cardeais eram bons e outros ruins. Entre os ruins estava d. Paulo. Ainda assim, ele e outros bispos foram convidados e estavam presentes na posse de Geisel. A romaria dos cardeais a Brasília tinha sido obra de Golbery. Dois meses antes da posse de Geisel ele já estava negociando encontros com representantes do clero. Um deles aconteceu no dia 19 de fevereiro de 1974, no apartamento do professor Candido Mendes de Almeida. O encontro era um almoço e o outro convidado era justamente d. Paulo Evaristo Arns. Na conversa que durou três horas falaram sobre tortura, e Golbery pediu a d. Paulo que levasse a ele diretamente as denúncias que recebesse. Ele propôs um método: as denúncias seriam triadas e encaminhadas sem escândalo. A solução seria responsabilidade do governo, e não deveria ser questionada. Levar o processo a público também não ajudaria, ainda que o caso já estivesse resolvido. Ou seja, a solução deveria partir da autoridade. O problema disso era que a autoridade era exatamente quem estava causando o problema. Golbery queria ter o controle sobre as informações que estavam chegando à Igreja, encaminhando de acordo com sua percepção política. O sucesso do método ia depender do tipo e da quantidade de soluções que Golbery oferecesse. Até ali, era apenas uma promessa. Até o dia 19 de fevereiro, todas as movimentações de Golbery para se aproximar dos cardeais tinham ficado em sigilo. Mas é aí que entra o mistério. Na saída do almoço, Golbery, que estava sem carro, pediu uma carona para o Largo da Misericórdia, onde estava funcionando o gabinete de transição de Geisel. D. Paulo também precisava de uma carona para o aeroporto Santos Dumont. Como eles saíam do bairro das Laranjeiras, o mais coerente seria deixar d. Paulo antes e Golbery depois, mas não foi isso que aconteceu. Pouco depois das três da tarde, o carro parou na porta dos fundos do prédio do Largo da Misericórdia, com d. Paulo e Golbery de passageiros. A porta estava ocupada por alguns repórteres, que viram tudo. A eles, Golbery disse apenas que tinha se encontrado com d. Paulo, mas que não falaria da conversa, pois era seu direito ter relações pessoais. Segundo d. Paulo, Golbery teria dito que se não houvesse jornalistas na porta eles poderiam subir e falar com Geisel, mas sempre havia jornalistas. Ou seja, a manobra de Golbery foi deliberada, ele queria ser visto com o arcebispo. Geisel soube da cena pelos jornais no dia seguinte e não gostou nada. Em conversas com Heitor Ferreira e Moraes Rego, disse que Golbery estava dando munição aos inimigos do SNI e do CIE. E ciente da correlação de forças que enfrentaria, completou: SONORA: tHIA “Daqui a pouco vem pressão do Exército (...). ‘Ah, porque estão fazendo a abertura com a Igreja, o Exército não aceita’. (...) E aí, que que eu vou fazer, não é? Eu não posso mandar o Exército à merda. Então eu vou embora. (...) O pessoal não se dá conta do que é o Exército. A maior excrescência”. Dias depois, o jornal O Estado de S. Paulo divulgou um boletim da Arquidiocese paulista informando que o “general Golbery mostrou-se sensível a todos os problemas levantados, externando grande apreço pela ação da Igreja”. Cada peça tinha se movido na direção que Golbery desejava: a conversa tinha vindo a público, mas seu conteúdo permanecia secreto. CENA 20: NARRAÇÃO NADEDJA Mas vamos voltar à conversa de Geisel com Dale Coutinho, que ainda tem assuntos importantes pra gente contar. BLOCO 4: DESMONTANDO A BAGUNÇA CENA 21: ÁUDIO DE ARQUIVO - CONVERSA ENTRE O GENERAL ERNESTO GEISEL E O GENERAL VICENTE DE PAULO DALE COUTINHO Fim de R47F01LA, início de R47F01LB. ÁUDIO 28 - (31:18 a 32:01 no CD) GEISEL: E esse problema foi mais longe na candidatura do Costa e Silva. (...) Eu fui para o tribunal naquela emergência para não ser um polo de oposição ao Costa e Silva. (...) A união das forças armadas no governo Médici foi muito grande e o principal fator foi o Orlando. (...) Pela relativa ascendência que o Orlando tinha. Ele foi instrutor de quase todos os que estão aí. E a maneira com que ele conduziu o problema deu uma tranquilidade extraordinária ao Médici. Não houve um só dia de prontidão. No levante comunista eu fiquei três meses ou quatro de prontidão no quartel. CENA 22: NARRAÇÃO NADEDJA Nesse trecho, Ernesto Geisel fala sobre Orlando Geisel, seu irmão mais velho e ministro do Exército do governo Médici. Geisel sempre admitiu que o irmão influiu, mas não acreditava que ele teria imposto seu nome como presidente. Orlando e Médici eram amigos, mas a relação estava subordinada à hierarquia militar. A relação com Orlando foi uma das grandes dificuldades no período que antecedeu a chegada de Ernesto Geisel à Presidência da República. Orlando foi uma peça chave na escolha de Ernesto como o próximo presidente da ditadura. E esperava seguir no cargo que ocupava no governo do irmão mais novo. Mas Ernesto tinha outros planos e a decisão não só impactou a formação do governo como o deixou amargurado até o fim da vida. A questão da permanência de Orlando no Ministério começou a aparecer em novembro de 73, quando chegou a informação de que o irmão queria ficar, insuflado por um grupo de generais. Pra Geisel, isso não fazia o menor sentido. Além de Orlando ter graves problemas de saúde, Ernesto pensava que a permanência do ministro do Exército de Médici, fosse quem fosse, representaria uma tutela militar disfarçada de continuidade administrativa. E Geisel tinha claro que não estava ali para ser tutelado, como mostramos naquele episódio da espionagem. O problema é que não se tratava apenas de escolher outra pessoa para um cargo, mas de abater o irmão mais velho. CENA 23: COMENTÁRIO HELENA Orlando e Ernesto eram bons amigos, mas a relação deles era mais próxima do que se espera da cultura alemã do que da brasileira. Ou seja, cultivavam um outro tipo de intimidade. Ainda assim, Ernesto deu ao primeiro filho o nome do irmão. Quando era tenente, Ernesto chegou a fazer um empréstimo para tirar Orlando de uma enrascada numa mesa de pôquer. Mais velhos e já casados, os dois chegaram a morar na mesma casa, o que fez com que as mulheres se tornassem boas amigas. Mesmo com essa história de convívio, se visitavam de terno e gravata. No campo da política, tinham divergências. Orlando apoiou a novembrada de Lott, em 1955, e Ernesto foi contra. Em 1932, depois de combater a Revolução Constitucionalista de São Paulo, Ernesto recusou a estrela de capitão porque com ela ultrapassaria o tenente Orlando. Ernesto sabia que ele e o irmão pensavam de modo distinto. Numa conversa com Golbery, disse: ÁUDIO 29 - [LOCUTOR“Orlando e eu temos pontos de vista diferentes, ele é cabeçudo e eu sou também. Orlando é mais velho, eu sou mais moço, mas eu vou ser o chefe”.] Outra preocupação de Ernesto caso mantivesse o irmão como ministro do Exército era acabar fazendo o que não queria para não brigar. Ele também achava que nomear Orlando passaria uma imagem ruim do Brasil e do governo. CENA 24: NARRAÇÃO NADEDJA Com a decisão de não seguir com Orlando no Ministério do Exército, Geisel tinha outro problema para resolver: falar com o irmão. Chamou Figueiredo e, por intermédio dele, pediu que Médici abordasse o assunto, o que ele efetivamente fez. Segundo Médici, Orlando respondeu que tinha imaginado ficar alguns meses no Ministério para ajudar Ernesto, que teria muitos problemas no início do governo. Na mesma conversa, pareceu animado com a possibilidade de assumir a embaixada do Brasil em Portugal. Outra pessoa presente ao encontro viu as coisas de forma diferente. Orlando insistiu em ficar para ajudar e não se animou tanto assim com a ida para Lisboa. Na realidade, Orlando queria ficar no Ministério. Geisel percebeu que a isca da embaixada tinha se perdido e que o negócio com Orlando teria de ser resolvido por ele. Já tinha recebido o irmão duas vezes no Jardim Botânico, mas as conversas não saíram da temática da família. Ernesto foi direto. Disse que não manteria o irmão no Ministério. Recorreu à hierarquia militar, pois Orlando era mais antigo. Disse também que nomeá-lo faria o Brasil parecer uma república de bananas. Por último, afirmou que como pensavam diferente, na primeira nomeação de generais iriam brigar. A conversa selou o fim da relação amistosa dos irmãos Orlando e Ernesto. Orlando nunca mais visitou o irmão, apesar de ser visitado por ele. Uma vez, contando para Antonio Carlos Magalhães sobre essa conversa, que descreveu como melancólica e dolorosa, Geisel lacrimejou. E deixou claro que ficou sozinho com o problema, sem ter a ajuda de ninguém. Com Dale Coutinho, no dia 16 de fevereiro de 74, Geisel retomou o tema. CENA 25: ÁUDIO DE ARQUIVO - CONVERSA ENTRE O GENERAL ERNESTO GEISEL E O GENERAL VICENTE DE PAULO DALE COUTINHO AUDIO 30 - GEISEL: Houve um movimento grande para o Orlando permanecer. Mas eu acho que não pode e não deve. Por várias razões. Eu por exemplo fui partidário do Médici continuar. Mas tem que haver renovação. E o problema é que ele é meu irmão. E tem muita gente dizendo que eu sou presidente porque ele é meu irmão. (...) Você não imagina a dor que eu tenho íntima, e ele deve achar que eu fui ingrato. Eu sempre fui muito ligado a ele. Eu não toquei no assunto com ele. E tem também que ele está doente. Seria uma judiaria. CENA 26: NARRAÇÃO NADEDJA A questão da nomeação de Orlando toca em dois temas muito caros para Geisel, importantes pra gente entender a forma de pensar e também as atitudes que ele vai tomar mais adiante. Geisel acreditava profundamente nos valores e princípios que regem as Forças Armadas, ao menos no discurso: a ordem e a hierarquia. Colocar o irmão num cargo de primeiro escalão no governo feria ambos. E ajudaria a aprofundar a bagunça em que Geisel acreditava ter se transformado a ditadura, bagunça também calcada na indisciplina e quebra de hierarquia. Outro tema que sempre mobilizou Ernesto Geisel foi a situação do Exército brasileiro e as múltiplas fragilidades dele. Já falamos sobre esse tema aqui, e ele apareceu novamente na conversa com Dale Coutinho. Era obviamente importante para Geisel que o Ministro do Exército estivesse alinhado com a visão dele do problema. CENA 27: ÁUDIO DE ARQUIVO - CONVERSA ENTRE O GENERAL ERNESTO GEISEL E O GENERAL VICENTE DE PAULO DALE COUTINHO AUDIO 31 - GEISEL: O Exército continua a ser a força principal. A Marinha e a Aeronáutica são acessórias. O Exército dá o rumo. Se nós tivermos a união desse Exército, nós já temos. O Orlando acabou com esse negócio do sujeito querer bancar o líder, de escrever carta para jornal ou dar entrevista sobre coisa que não é da área dele. NADEDJA: Aqui Geisel reforça a questão da disciplina e hierarquia. ÁUDIO 32 - GEISEL: Me botaram aqui, agora tem que confiar em mim. Eu estarei sempre com os ouvidos e os olhos abertos para receber toda e qualquer crítica. Agora, querer dar entrevista em jornal... Nós temos que trabalhar no aprimoramento do Exército. Temos que modernizar o Exército. Mas vamos botar os pés no chão, não vamos querer fazer um Exército estratosférico, o país não tem dinheiro. (...) Eu darei tudo o que puder dar ao Exército, mas muitas vezes dentro das minhas prioridades, não poderei, e quero que você compreenda. (...) NADEDJA: E além de fortalecer o Exército e de profissionalizar as coisas, essa fala de Geisel também demonstra a preocupação em ser tutelado, outro aspecto que apareceu na negativa à permanência de Orlando no governo. ÁUDIO 33- GEISEL: Uma que é velha e é um bicho e não tem jeito, talvez com você vá ter, é essa supremacia exagerada do gabinete do ministro. Aos poucos vai botando gente, vai botando e o gabinete vai crescendo. Então do lado de lá [frase inaudível] em regra recebe ordens. Eu não sei como está hoje ou então o que ele propõe, muitas vezes chega lá na mão do coronel pulando no tranco e começa a sofrer [deformação?]. Essa é a realidade, eu vivi isso. Uma vez o Braga chegou pra mim e vinha do gabinete do [nome]... queria que fizesse um parecer dizendo isso, isso e isso. Se a pessoa quer que eu faça um parecer, eu vou estudar e vou dizer o que a pessoa quer. Agora se a pessoa de fato quiser um ofício em resposta dizendo isso, se o senhor vai assinar, aí faço.(…) NADEDJA: Aqui, Geisel retoma outra questão que o assombra há tempos. A autonomia do gabinete do ministro do Exército, raiz da formação do CIE, e que, na opinião dele, aprofunda e agrava os problemas do regime. ÁUDIO 34 - 07:15 GEISEL: Eu não posso aceitar que um chefe de seção (...) isso eu não posso fazer. Mas você não pode violentar o meu parecer, me obrigar a dar um parecer. Isso é pra demonstrar a que ponto chegou o problema. GEISEL: Não tem regra, estamos presos muito ao problema de hierarquia e vamos pegar o general mais antigo que não dura. NADEDJA: A preocupação em arrumar a bagunça aparece novamente quando Geisel fala com Coutinho sobre as escolhas para a área econômica. ÁUDIO 35 - 15:25 GEISEL: Então, Coutinho tem dois jeitos, ou você deixa terminar com bagunça, banco (...), para evoluir, o que não é do nosso feitio ou a gente vai procurar (...) e botar um ministro pra valer. Porque fazer um ministério para acabar em bagunça aí não dá, aí é a desmoralização. CENA 28: NARRAÇÃO NADEDJA Essa conversa de Geisel com Dale Coutinho durou cerca de três horas. Nesse tempo, Geisel resumiu as intenções que tinha para os 1.826 dias de governo que teria pela frente. As três horas de parola, como Geisel chamou o papo, acabaram com a seguinte frase: “Coutinho, nós estamos 100% em tudo”. Menos de um mês depois desse encontro, em 15 de março de 74, Geisel tomaria posse. O governo dele foi até o dia 15 de março de 79. E é sobre o primeiro revés enfrentado por Geisel que vamos falar agora. BLOCO 5: A DITADURA PERDE AS ELEIÇÕES CENA 29: NARRAÇÃO NADEDJA Na manhã de 15 de janeiro de 1974, Ernesto Geisel foi eleito por 406 votos contra 76 de Ulysses Guimarães e 23 abstenções. Ulysses era presidente do MDB, o único partido de oposição à Arena, que dava sustentação à ditadura. A candidatura de Ulysses, dentro daquele jogo de cartas marcadas, seria inicialmente apenas simbólica. Ele sabia que não tinha nenhuma chance de ganhar em eleições indiretas, regidas pelo Colégio Eleitoral. Nele a Arena tinha ampla maioria, entre senadores, deputados e delegados eleitos pelas assembleias estaduais. Ulysses resolveu romper o compromisso inicial, que era de renunciar à candidatura, e decidiu ir até o fim. Uma parte dos deputados da bancada do MDB, conhecida como “autênticos”, defendia a retirada da candidatura como forma de denúncia da arbitrariedade da eleição indireta. Ulysses ficou firme e os autênticos se abstiveram, para não legitimar a escolha do Colégio Eleitoral. Na eleição, Geisel fez um discurso curto, elaborado por Golbery, e ajustado por Heitor Ferreira e pelo próprio Geisel. Golbery, inclusive, queria falar em abertura, mas Geisel foi contra. Gaspari anotou no livro que Ele recusava comparações com o passado e também não estava disposto a assumir compromissos públicos para o futuro. Ainda assim, chamou a atenção o trecho do discurso em que Geisel afirmava “estar aberto a quaisquer pleitos, sugestões ou críticas construtivas, todas merecedoras de acolhida”. Não era para menos, já que qualquer menção às palavras abertura e fechamento ganhavam outros significados naquele tempo. Abertura era sinônimo de restabelecimento da democracia e, fechamento, claro, de surtos repressores. A posse de Ernesto Geisel aconteceu dois meses depois, em 15 de março. No discurso, se declarou honrado por prosseguir com a notável obra de governo de Médici, louvou o exemplo austero de estadista de Castello Branco e o perfil de líder humano, resoluto e bom de Costa e Silva. Pediu forças a Deus para levar adiante o legado superior de consciência cívica e de pragmatismo criador, para o bem da pátria. ÁUDIO 36 - Áudio de arquivo - posse de Ernesto Geisel: Posse de Ernesto Geisel (1974) trechos: 0:10 a 0:41 (incidental) / 5:45 até o final. CENA 30: COMENTÁRIO HELENA A chegada à Presidência não mudou os hábitos de Ernesto Geisel, embora tenha trazido alguns confortos. Ele seguiu acordando às 6 horas da manhã. Vestia terno preto, camisa branca e gravata escura. Calçava meias e sapatos pretos. Antes de ir para o Planalto, lia jornais, boletins do SNI e sinopses do noticiário da imprensa. Subia a rampa do Palácio pontualmente às 9 horas, voltava ao Palácio da Alvorada para almoçar com a família e dormia por quinze minutos, sempre de pijama. Às três da tarde estava de volta ao gabinete, onde ficava até às seis. Acabava levando trabalho para casa, mas saía do Planalto para liberar os assessores diretos. O tempo que passava no Alvorada ou na Granja do Torto, aos fins de semana, era restrito à família. Geisel continuava recluso e não levava ninguém para almoçar ou jantar. Numa entrevista, a filha dele, Amália Lucy Geisel, deu uma ideia do tamanho do isolamento. Ela contou que à noite, ficava olhando para o gramado do Alvorada acompanhando os faróis dos carros que se aproximavam. Quando algum chegava mais perto, ela se animava, pensando que poderia ser alguma visita. Mas eles nunca entravam, eram apenas turistas passeando pelos arredores da residência oficial do presidente. Geisel tentou proteger ao máximo Amália Lucy e chegou a pedir ao ministro da Justiça que proibisse referências à filha na imprensa. Ainda assim, ela ganhou certa fama com a música "Jorge Maravilha", composta por Chico Buarque sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Um dos versos dizia: “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”. Diz a lenda que o gosto de Amália pela MPB teria provocado a brincadeira. O próprio Chico Buarque negou essa referência à filha de Geisel. Em entrevista a Tarso de Castro na Folha de S. Paulo, Chico revelou a origem da imagem utilizada: ÁUDIO 37 - [LOCUTOR “Aconteceu de eu ser detido por agentes de segurança, e no elevador o cara me pedir um autógrafo para a filha dele. Claro que não era o delegado, mas aquele contínuo de delegado”. Nos fins de semana, o círculo de Geisel se afrouxava um pouco. Ele costumava receber na granja do Riacho Fundo o Humberto Barreto, que viria a ser seu assessor de imprensa, além de Heitor Ferreira e Germano Pedrozo, sempre aos sábados. Aos domingos recebia o coronel Moraes Rego e o tenente-coronel Gleuber Vieira. Quem não ia nunca ao Riacho Fundo era Golbery. Aliás, ele e Geisel raramente eram vistos juntos e ele só descia ao terceiro andar do Palácio do Planalto para falar com o presidente se fosse chamado. CENA 31: NARRAÇÃO NADEDJA O primeiro ano do governo Geisel começou agitado, para dizer o mínimo. Além dos problemas econômicos trazidos pela crise do petróleo, que começaram a comprometer os resultados do milagre econômico de Médici, Geisel tinha desavenças com Delfim Netto. O todo poderoso ministro da Fazenda dos governos anteriores foi substituído pelo economista Mário Henrique Simonsen. O calendário político de 74 estava sobrecarregado. Você lembra que lá no início do episódio falamos sobre as cassações de direitos políticos que iriam vencer a partir de abril e que tinham sido usadas como argumento para a continuidade da gestão de Médici? Pois é, mas elas não chegaram a causar tantos problemas pra Geisel. Jânio Quadros e Juscelino Kubitschek viviam no Brasil. Apesar de manter a popularidade e ser continuamente saudado com a modinha “Peixe Vivo” por onde passava, a atividade política de JK era nula. ÁUDIO 39 - Trecho Peixe Vivo - Jingle "Peixe Vivo" - Juscelino Kubitschek (Eleição Presidencial de 1955) 1:23 a 1:43 João Goulart vivia no Uruguai. Com 56 anos, estava doente, tinha problemas circulatórios e dois enfartes na conta. Sem passaporte brasileiro, só conseguia viajar por cortesia do ditador paraguaio Alfredo Stroessner, que ofereceu a Jango um passaporte qualificado como “ex-presidente” do Brasil. Jango bem que tentou negociar a volta ao país, mas não conseguiu. No dia 10 de abril de 74, o ministro da Justiça anunciou que os cassados podiam viver em paz, desde que “não perturbassem o processo revolucionário”. Jango entendeu o recado e ficou no Uruguai. Mas Geisel ainda tinha de enfrentar as eleições parlamentares que se aproximavam. CENA 32: NARRAÇÃO NADEDJA Geisel se preparou para as eleições de 1974 com a serenidade de um vitorioso. A análise dele era de que a Arena não poderia diminuir o total de votos, muito menos perder as eleições. Elio Gaspari conta que ele tinha elementos para acreditar nisso. SONORA GASPARI Em 1970, o MDB, só tinha conseguido 6 das 46 cadeiras de senador disputadas na eleição. Na Câmara, tinha ficado com uma bancada menor que um terço da Casa, impossibilitado de barrar a aprovação de emendas ou instalar CPIs. Geisel desejava um resultado simbólico, que não liquidasse totalmente o partido de oposição nem ficasse parecendo marmelada. Nos estados, não admitia perder em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Numa conversa com Petrônio Portella, foi tranquilizado: “ninguém pode mais do que nós”. A previsão de Portella não contava com algumas novidades, entre elas a campanha eleitoral veiculada pela televisão. Se no início da campanha o público reagiu ao atraso da novela desligando a TV, alguns dias depois, em Porto Alegre, 70% dos aparelhos estavam ligados para assistir a um debate entre os candidatos ao Senado da Arena e do MDB. SONORA: Propaganda eleitoral do MDB em 1974 https://www.youtube.com/watch?v=PG39dv8Xg_U A oposição começou a bater pesado no custo de vida e já na segunda metade de outubro de 74 ficou mais evidente que o MDB se sairia melhor do que em 70. As pesquisas do Ibope mostravam a oposição passando na frente em São Paulo e no Rio Grande do Sul, e empatando com a Arena em Minas Gerais. Insatisfeitos com a relativa liberdade do MDB na campanha eleitoral, alguns setores militares começaram a fazer circular panfletos contrários à suposta abertura política que estaria sendo patrocinada pelo governo. Um deles chegou ao Planalto pelas mãos do SNI e falava em nome de uma Revolução da qual o governo era instrumento e o presidente, delegado. Ainda houve outras mostras da indisciplina militar, com panfletagens nos quartéis e um telefonema para a casa de Golbery ameaçando sua mulher de sequestro. Ou seja, o problema estava menos na campanha do MDB ou numa suposta mobilização da esquerda e mais ligado à boa e velha bagunça dos porões. CENA 33: NARRAÇÃO NADEDJA As eleições gerais aconteceram numa sexta-feira, dia 15 de novembro. Geisel votou pela manhã, em Brasília. Aos jornalistas disse apenas: “quero que o povo todo vote”. Golbery seguiu a mesma linha e declarou: “Vamos ver depois o resultado”. As falas dos dois já previam um resultado ruim para a Arena, e nos dias seguintes, com a apuração dos votos de papel acontecendo, assistiram à agonia do partido para se manter vivo. No sábado, depois de assistir ao Jornal Nacional, Geisel ficou preocupado. O risco de a oposição controlar a Câmara era real, pois lá estavam em jogo todas as cadeiras, enquanto no Senado se renovaria apenas um terço. Geisel se levantou da cadeira e caminhou sozinho por um tempo no jardim escuro nos fundos da casa do Riacho Fundo. Quando alguém disse a ele que a Arena teria a maioria da Câmara, respondeu: ÁUDIO 40 LOCUTOR: “Vamos ter por quê? Acho bem possível que não tenhamos. Eleição é isso mesmo. O povo vota livre e, normalmente, no contra. E nós temos que respeitar. Pois não fizemos uma eleição? É isso, e pronto”. Não tinha mais nada a ser dito. CENA 34: NARRAÇÃO NADEDJA O resultado das eleições de 1974 representou uma grande derrota pra ditadura. O MDB conquistou 186 congressistas, 43 a mais do que a marca dos 144 votos necessários para bloquear projetos de alterações constitucionais. Com 244 deputados e senadores, a Arena não tinha mais maioria. Para Gaspari, a principal consequência disso foi o sepultamento de um projeto de distensão comandado apenas pelo regime. Agora, qualquer projeto de reforma política precisava obrigatoriamente passar pela oposição. Geisel atribuiu a derrota ao povo, que era despreparado e desinformado. Figueiredo foi na mesma toada, e disse que o povo não sabia votar. Quando Heitor Ferreira perguntou a Golbery o que esperar de um eleitorado assim, ouviu de volta: ÁUDIO 41 LOCUTOR: “Que melhore praticando. O povo não está com a Revolução” Para ele, a culpa era do regime. É claro que também sobrou para a “subversão” e houve quem apontasse o dedo para os comunistas. Geisel precisou preservar a disciplina entre os militares. Parte do SNI respaldou um documento de dez itens entregue a Geisel pelo almirante Henning, ministro da Marinha. O documento identificava a infiltração de elementos subversivos no MDB e sugeria uma onda de cassações calcadas no AI-5. Geisel ignorou a proposta. Quando Sylvio Frota, então ministro do Exército, perguntou “E agora?”, o Presidente respondeu: “Agora vamos ganhar a próxima”. Em outra conversa, disse a Frota: “Pilote lá sua área”. O general se calou, mas por um período. Guarde o nome de Sylvio Frota. Ele será um personagem importante no próximo episódio. Geisel decidiu jogar peso no campo econômico, tomar decisões a longo prazo e ver no que dava. Mas a indisciplina da tropa não daria folga, e ela vinha de onde sempre partiu, das forças da repressão. CENA 35: ÁUDIO DE ARQUIVO - CONVERSA ENTRE O GENERAL ERNESTO GEISEL E ELIO GASPARI https://drive.google.com/drive/u/0/folders/1ju8AITIqlvKwqJ7FO-IZMAw57Z8i4ec6 ÁUDIO 42 - Geisel - 00:06 - Eu achava que ela tinha que acabar. Geisel - 00:09 - Ah, porque não tinha mais muita razão de ser. E depois é o seguinte, uma ditadura que permanece muito tempo se deteriora. Geisel: 00:51 - Não pense que fosse espírito democrático não. Pra mim era secundário. Mesmo porque essa democracia que nós tínhamos não era uma democracia, era um arremedo de democracia. Democracia do Jango e dos outros? Não, era uma arremedo. E tinha, como todo movimento revolucionário que dura, tinha as lutas internas das facções. Era a linha dura contra os outros que eram moderados. E começava a haver as desavenças e inclusive a desagregação de certas áreas militares por causa disso. Entre os chefes. Quer dizer, a cordialidade, a condição que deveria existir, com o tempo sofria com o prolongamento da ditadura. E a mesma coisa se verificava na administração, todos os setores da vida nacional. Quer dizer, a nação tava dividida. O que não é bom. CENA 36: NARRAÇÃO Nadedja - No próximo episódio O áudio que acabamos de ouvir demonstra que Ernesto Geisel estava convicto de que a ditadura precisava acabar. O regime tinha se deteriorado e tanto os militares quanto o país estavam divididos. (vamos gravar essa frase de alternativa para deixar de gancho para a próxima, mas pode seguir com o trecho todo) E foi no seu governo que esse embate chegou ao auge, e o Brasil ficou à beira do precipício. Na encruzilhada entre a ditadura e a volta à democracia, um embate seria decisivo. No próximo episódio de “A Ditadura Recontada” vamos mergulhar nas consequências da derrota da ditadura nas eleições de 74 e entender melhor o que significou essa divisão. Enquanto Geisel tenta levar adiante o projeto de acabar com a ditadura, tem de lidar com a anarquia militar, com a morte de figuras como o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho, com a encruzilhada da censura à imprensa e com uma tentativa de golpe gestada no interior do governo. A história que vamos contar a seguir começa nas últimas semanas de 1974 e vai até 12 de outubro de 1977, quando coube a Geisel, um participante ativo das principais desordens militares brasileiras no século XX, manter o poder constitucional. CENA 37: CRÉDITOS Mais recente Próxima 'A Ditadura Recontada': roteiro do 3º episódio