Não subestime as flores secas caídas no jardim. Também os galhos retorcidos que, à primeira vista – para alguns – não servem para nada. Tente resgatar o ponto de apreciação de algo extremamente corriqueiro, banalizado por um corpo rotineiro acostumado a andar em looping. Há muita beleza nas minúcias do ordinário. Só é necessário sensibilizar o corpo, os olhos, os sentidos para enxergar fabulação à volta.
Sou artista formada em artes visuais corporais, que ao longo da vida adicionou mais matéria orgânica nesse caldo altamente potente. Depois de anos extravasando nos movimentos da dança contemporânea, saltei para as artes florais. Sem abandonar qualquer repertório construído antes. Pelo contrário. Quando crio, relaciono a invenção ao espaço do acontecimento, do gesto envolvido como intenção, como sentimento. Elaboro simulacros reais e efêmeros, alinhada ao sábio ciclo de vida e regeneração da natureza. Tudo muda e passa em instantes. Assim também somos como humanos.
Então, aqui estou para incentivar caminhadas sem destino de chegada. Foque no garimpo! Para quem trabalha com arte floral é a parte crucial e envolve os itinerários mais improváveis da sua vida. Terrenos considerados abandonados são férteis na colheita. Exercite o olhar! Um cipó, uma folha seca, galhos espalhados, flores que podem ser podadas sem agredir a planta ou a árvore.
Outro fato bacana da arte floral é a imprevisibilidade do que podemos encontrar pela frente, que abre possibilidades múltiplas de composições nada cartesianas. Minhas andanças são registradas com arranjos, ideias materializadas em cenários, editoriais de revistas, tudo e mais um pouco do que podemos fazer – aqui falo no plural porque trabalho é coletivo – a partir das flores e das sensações que elas evocam. Das pequenas manifestações a instalações que encobrem a percepção do corpo. Vou partilhar nesta coluna o que vivenciamos diariamente na Galeria Botânica, projeto idealizado em conjunto com Fabiana Guisande.
1. As cerejeiras florescem nos meses mais frios do ano e convidam a apreciar a passagem do tempo. São os chamados Hanamis no Japão, e no Brasil há versão desta experiência em muitos lugares do mapa. Em São Roque, município vizinho a São Paulo, o Villa Tanah acaba de incluir o ritual na sua programação e vale a pena . Estive por lá nos últimos dias de florescimento das cerejeiras, quando já é saudável podar a árvore para o seu novo ciclo. Não resisti ao ver uma bela mesa montada e convidativa e levei as flores colhidas no lugar para arrematar a produção. Os galhos cortados com suas flores miúdas, rosadas e delicadas, adornaram a mesa de jantar onde foi servido o menu da noite. Delicioso por sinal e especial demais. O simples está longe de ser modesto.
2. No dia seguinte, a céu aberto, a mesa montada pela equipe Tanah para o almoço, sombreada por uma jabuticabeira, ficou ainda mais charmosa com a cor da bougainville colhida ali mesmo na redondeza. Esse frescor que a natureza nos oferece combinou muito bem com a proposta do espaço – que tem o toque elegante no projeto de interiores do arquiteto Marcelo Salum. Tudo se reaproveita quando não nos limitamos a prazos de validade e a única forma de explorar a beleza da vida e das coisas. Portanto, aproveite até a última folha.
3. Já que estamos nesta reflexão: você pensa no desperdício dos arranjos após um evento? Tristeza em pensar que o lixo encerra o expediente de boa parte dos organizadores de festas, que podem apostar em propostas além dos cenários decorativos. Trago a prova de que é possível, é viável e é urgente pensar e atuar dessa forma.
Em Florianópolis, assinei junto com a designer floral Juliana Hames a ambientação do novo endereço de uma loja, a Studio Ambientes. Ao invés de usar as plantas apenas com o objetivo de decoração, criamos um jardim dentro do showroom. E não ficamos por aí. Os convidados, antes de se despedirem dos anfitriões, atravessaram um jardim de flores naturais e colhiam as que mais gostavam. Daí nasceram arranjos personalizados que foram levados para casa para refrescar a manhã seguinte.
A ambientação era para ser experimentada, não apenas vista. E faço questão de mostrar a reação das mulheres ao final do evento, quando a gente podia se aglomerar, há quatro anos. Lindo, né?
4. Seja tirando partido do vitrinismo, com a apropriação visual dos transeuntes, aos pequenos jardins relicários. Preciso criar relação narrativa tendo sempre a natureza – flores, plantas, galhos, sementes – como interface do diálogo. De um coração cravado com flores secas, que anunciou a campanha "Eu (me) amo / Eu (te) amo" desenvolvida pela nossa Galeria Botânica – já contei que somos um time, né? –, em São Paulo, à jornada de construção dos Jardins Eternos.
Estimulamos nossos clientes a escrever uma carta aos destinatários, mas não uma carta qualquer. Tinha que ter a ver com uma cena, uma cena habitada em um lugar, um lugar que provavelmente só existe na memória, talvez em foto. Virou simbologia concretizada no Jardim Eterno, um jardim de flores desidratadas em redoma de vidro guarda local íntimo de dois/duas.
5. Na perspectiva de uma bailarina contemporânea que sou: vestir o corpo é entender que a natureza se expande em massa comum. Um hibridismo de novos seres, novas formas, seres plantas, plantas seres emergem. Esse trabalho revela muito a essência da Galeria Botânica, feita por muitas mãos.
Deu para perceber que as possibilidades são diversas? Trago mais flores e ideias na próxima coluna. Até!
*Gabriela Nora
Fundadora da Galeria Botânica