Um edifício de três andares em Laranjeiras, na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, abriga um tesouro do paisagismo. São mais de 150 mil itens, entre projetos urbanísticos, croquis, fotografias e documentos do escritório de Roberto Burle Marx (1909 - 1994). Logo na entrada, numa sala, os planos para o Parque do Flamengo cobrem uma parede inteira. No entorno, livros de paisagismo, peças de artesanato, maquetes e quadros pintados pelo paisagista, com formas abstratas e coloridas. Nesse lugar funciona atualmente o Instituto Burle Marx, fundado em 2019. Mas ele está de mudança: em 2028, migrará com todo o seu acervo para a imponente Casa Cavanelas, projeto de Oscar Niemeyer (1907-2012) com jardim do próprio Burle Marx, situada em Pedro do Rio, distrito de Petrópolis, na região serrana do estado. O local receberá construções novas, como café, galeria e biblioteca, com desenho do arquiteto Thiago Bernardes e equipe, e abrirá pela primeira vez ao público as portas de uma joia do modernismo brasileiro.
Um dos nomes à frente da mudança é o da arquiteta e diretora executiva do instituto, Isabela Ono, filha de Haruyoshi Ono (1943-2017), arquiteto e parceiro criativo de Burle Marx por quase 30 anos. Após a morte do pai, ela assumiu a missão de tornar público todo o material produzido pelo escritório. “Fundamos o instituto, primeiro, para preservar esse acervo. Depois, para reverberar”, diz. Em 2020, iniciou o processo de digitalização, que segue em andamento. Designou uma equipe com arquivistas, museólogos e bibliotecários para vasculhar e catalogar quase 70 anos de história. Diariamente, eles se debruçam sobre projetos, rascunhos e milhares de fotografias com registros de biomas e viagens. “Vão ser cinco anos ou mais de catalogação, mas já partimos de uma organização. Você não tem que inventar uma metodologia, já está tudo em ordem cronológica”, explica, destacando o cuidado do escritório, que, ao longo de sua história, distribuiu toda a produção em arquivos e canudos numerados.
Entre as ilustrações nessa imensidão de documentos é possível identificar uma representação de um mangue feita por Burle Marx. Há uso de cores como laranja, roxo e azul. Parece uma pintura de um mundo fantástico. Recortes de jornais registram denúncias que ele fez, nos anos 1970, contra o desmatamento da Amazônia. Peças raras como essa seguirão para a Casa Cavanelas, daqui a quatro anos.
Retas e curvas
Datada de 1954, a casa de campo com três quartos e 200 m² foi projetada por Niemeyer para o engenheiro Edmundo Cavanelas. Na construção, destaca-se a cobertura de estrutura metálica curva, leve, pousada sobre quatro colunas revestidas de pedra. O paisagismo, a cargo de Burle Marx, é marcado pelo contraste. Diante de uma das fachadas grandes da casa há uma vegetação disposta em desenhos curvos, com tons de verde e roxo. No outro lado, na área da piscina, o jardim segue uma padronagem quadriculada. “O casamento deles é único. Fizeram juntos Brasília, Pampulha, mas você não encontra uma conjunção tão perfeita com a paisagem [quanto aqui]. A arquitetura está totalmente bem inserida no jardim do Burle Marx, que está bem inserido na paisagem local, a do vale, com montanhas ao fundo”, opina Isabela.
No final dos anos 1990, após um período de abandono, o jardim passou por restauração organizada pelo então proprietário. De lá para cá, segue preservado, como no desenho original. “Aproveitei a oportunidade de trabalhar para recuperá-lo”, diz Luiz Heleno Gonçalves de Barros, jardineiro-chefe da casa há 30 anos. Ele conta que nessa obra de Burle Marx qualquer detalhe faz grande diferença.
Novo começo
Para abrigar o instituto, o terreno receberá quatro novas edificações, com projeto de Thiago Bernardes e o escritório que leva seu sobrenome. A maior, de 800 m², abrigará o acervo, uma biblioteca e um auditório, e ficará sob uma praça, bem na entrada da propriedade. “Arquitetura, às vezes, a gente faz para desaparecer, e o que fizemos lá tem um pouco dessa intenção”, reflete Thiago. “Criamos outra construção escondida no morro, que é uma área expositiva, uma galeria. É quase um túnel e, quando você sai, tem uma vista linda da casa do Niemeyer”, complementa.
Haverá ainda um espaço para residência artística, ateliê e pesquisa, com 300 m². E, por fim, será reformada uma edícula. Essa não faz parte do plano original de Niemeyer. Situada próxima ao lago, após a obra, servirá de café e loja, e terá 100 m². “As construções novas serão feitas de forma que não atrapalhem nem mudem nada do jardim ou da casa original”, pontua Thiago. “Pelo contrário, funcionam como um mirante para admirar a arquitetura presente.”
A residência principal servirá como um exemplo de ocupação modernista. “Ela se mantém como era, com móveis da época, que nós temos registros e vamos trazer de volta”, explica Isabela. “A casa foi habitada pelo antigo proprietário durante 30 anos. Está bem, é uma obra anterior a Brasília, tem valor muito grande e soluções técnicas modernas”, reflete José Luiz Canal, engenheiro responsável pelo gerenciamento do projeto e da obra.
“Sem dúvida, figura entre os projetos residenciais mais importantes do Niemeyer, junto da Casa das Canoas, que ele fez para si”, afirma Rodrigo Queiroz, arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. “Ele lança mão de uma laje com uma estrutura metálica, o que, para a época, era bastante avançado.” Sobre a carreira e obra de Burle Marx, conta que ele conseguiu transpor para a paisagem uma estética da própria arte moderna. “O valor do Burle Marx e do Niemeyer para a história está no sentido de conferir um gesto mais livre ao léxico modernista”, reflete. Segundo Rodrigo, hoje existe uma valorização da pesquisa e dos documentos ligados à arquitetura e cita, como exemplo, a Casa da Arquitetura, situada na cidade do Porto, em Portugal. Nos últimos anos, o espaço recebeu todo o acervo dos arquitetos e urbanistas Lucio Costa (1902-1998) e Paulo Mendes da Rocha (1928-2021). “Inclusive o original do Plano Piloto de Brasília, talvez o documento mais importante da arquitetura brasileira”, lembra o professor. “A gente acabou percebendo, a partir de um olhar estrangeiro, a importância de preservar. Isso tem um valor artístico.”
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*Matéria originalmente publicada na edição de agosto/2024 da Casa Vogue (CV 464), disponível em versão impressa, na nossa loja virtual, e para assinantes no app Globo Mais.