‘Ter nome e gênero reconhecidos pelo Estado é fazer parte de algo maior’
Em depoimento à CAPRICHO, a estrategista de conteúdo Marina Elisei conta sua jornada - nada fácil - até conseguir retificar seus documentos em cartório.
ocê tinha um nome que sempre quis ter?”, minha amiga me perguntou enquanto estávamos esparramadas no sofá da sala da sua casa após um prato de nhoque caseiro, e até aquela quarta-feira à noite eu de fato não havia refletido que a minha resposta era: não, nunca tive.
Essa relação é diferente para cada uma de nós, enquanto travestis, esse casamento semântico pode nascer daquele apego sonoro desde a infância (sempre gostei de Ariel), do exercício incansável de rechear opções no bloco de notas (Mariana, Marcella, Maitê) e até das surpresas que te conduzem a encontrar seu nome sem querer, como o meu.
Marina.
Bastasse que essa escolha fosse a fronteira final desse chamado, e para algumas pessoas pode até ser – mas para quem decide pela retificação essa odisseia continua, agora reafirmando “Marina” em outras instâncias muito além do pessoal, no jurídico e perante o Estado.
O verso “eu matei o Júnior” da Linn da Quebrada ocupa minha mente desde o primeiro dia em que me entendi mulher, e nessa etapa ao passo que retifico cada documento entendo o luto em sua intimidade.
Com cada novo papel eu enterrava um pedaço do Matheus, e não apenas para mim, dessa vez também para o outro, diante a lei, aos meus deveres e mais importante ainda as minhas vontades.
A primeira etapa da retificação, a meu ver, foi a mais desafiadora. São inúmeros documentos, protestos e levantamentos – receita perfeita para a sensação de sobrecarga – e ainda para a minha surpresa, não existe qualquer linearidade na forma com que cada cartório opera.
Em cada pesquisa e navegando por cada endereço eu encontrava uma nova informação, ou outro documento qualquer que, para além dos meus esforços, ainda não estava no radar. Ao longo dos dias crescia em mim um sentimento de frustração; “não sou capaz de fazer isso”.
Tirei cópias suficientes? A emissão das certidões está correta? Informei todos os órgãos? E a dispensa militar?
E essa dúvida incessante não anda sozinha, teve um companheiro inseparável: a solidão. Por vezes, até mesmo buscar conforto no processo das minhas amigas, ou da rede de apoio, se mostrava uma tentativa em vão, uma vez que nasci na Vila Formosa e ela em Ferraz e, por mais que a premissa seja a mesma – retificar nossos documentos – o que era requisitado era de fato distinto entre os cartórios que cruzaram a minha jornada.
No plural, sim. Durante a minha trajetória primeiro cruzei o cartório em que fui registrada quando nasci, esta havia sido a recomendação mais proliferada – “vá ao seu cartório de nascença” – uma vez que sua certidão de nascimento e demais burocracias já estão postas ali, o que barateia e deveria, ao menos, agilizar o seu processo. Eu só não contava com o despreparo e o senso de desinteresse – “só podemos falar com você em fevereiro”.
Era novembro. Quatro meses marinando para poder, finalmente, dar início a, talvez, um dos processos mais importantes da minha vida. Dentre os argumentos, ouvi daquela boca que deveria me nortear e assessorar nesse processo que eram documentos muito complexos; que levava muito tempo e, portanto, faziam poucas vezes ao longo da semana; que não dava tanto dinheiro.
Posto isso – e, na verdade, todos os dias desde que dei inicio a minha transição – percebi que a minha necessidade – e muito além, sua urgência – é pouco traduzida para o outro; e logo entendi que não poderia contar com o suporte dos envolvidos nesse trâmite, muito menos sensibilidade.
Insatisfeita, irritada, inconformada e todo e qualquer outro termo com “in” que encorpore o desconforto coube como combustível para eu buscar outra solução. Dentre os privilégios que também reconheço ao caminhar nessa marcha a pressa é uma delas, um luxo que para curar os anseios deveria ser o básico.
Encontrei então um novo cartório. Me deparei, entre pesquisas internet afora, com um dos primeiros a serem responsáveis por procedimentos e implementação de retificação para pessoas trans em São Paulo; a responsável por conduzir a minha papelada me contou que tinha uma missão profissional desde seu mestrado, tornar o aparato público mais digno para pessoas como eu, missão essa que ia de encontro com a sua pessoal, buscar mais dignidade para o seu sobrinho, um homem trans.
Meus olhos foram diretamente para a linha “passará a usar Marina”, a forma com que quero ser tratada, ao final do papel que preenchia “requer a retificação”; escrevi com letras garrafais: feminino.
No entanto, descobri que, uma vez que toda a minha documentação e o processo teriam que se dar de forma conjunta ao meu cartório de registro – teria que desembolsar o dobro do valor inicial, contudo esperando menos da metade do tempo.
Desde o primeiro e-mail fui recebida com cuidado, vivi uma tratativa humanizada – com listas de documentação claras, retornos rápidos seja online ou ao telefone e toda a prontidão para as minhas dúvidas, me senti acolhida pela primeira vez. Ao compartilhar alguns dos imprevistos e violências do caminho, a responsável me olhou e disse “esse documento que você assina agora, garante que a Marina não passe mais por nada disso daqui para frente”.
Meus olhos foram diretamente para a linha “passará a usar Marina”, a forma com que quero ser tratada, ao final do papel que preenchia “requer a retificação”; escrevi com letras garrafais: feminino.
Antes da minha rubrica final, ela então me explicou que o procedimento é definitivo e que como parte do processo eu precisaria afirmar, pela última vez, que sim, é Marina. Enchi a boca – de ar, de vida, de vontade – para dizer “Sim, Marina” mergulhando enfim nesse próximo capítulo eletrizante; justamente me sentindo vista.
Entre lágrimas nos abraçamos naquela sala toda amarela – das paredes, ao caminho de mesa de crochê até as flores.
Ter por fim a certidão de nascimento em mãos veio casada com a pressa de não parar por aqui, ainda mais ao considerar que na sequência chegava a hora dele: o RG; a resposta para todos os “documento com foto, por favor”. Hora de me despedir da vergonha que me acompanhava em cada entrada no consultório do dentista, de poder sonhar ir ao Chile ou quem sabe a Nova Zelândia e a de simplesmente poder retificar os demais lugares que o nome “Matheus” ocupou.
Passei o último ano tão focada em consegui-lo que não percebi, e se quer me preparei para enfim tê-lo. Após uma visita ao Poupatempo na Sé, recebi em um envelope branco, por fim, em uma sexta-feira qualquer – o RG da Marina.
Ter meu nome e gênero estampado no meu registro geral é motivo de alegria, não apenas por marcar uma das primeiras vezes que me senti orgulhosa de mim, mas também que faço parte de algo maior que eu enquanto travesti no Brasil. É, enfim, o meu reconhecimento como pessoa perante o Estado – que desde 2018 garante o direito pelo Supremo Tribunal Federal a pessoas não cisgênero, cuja identidade de gênero não está alinhada àquele atribuído no nascimento.
A retificação é, acima de tudo, um direito.
Para mim, ainda, sempre representou a segurança. Segurança perante ao Estado, proteção diante das violências de gênero e mais importante: a liberdade para poder ganhar o mundo, indo e vindo – plenamente e corretamente – Marina.
Ao passo que progrido para as próximas etapas da minha transição, guardo comigo o meu aprendizado mais profundo de tudo até aqui: a necessidade, sobretudo, de disciplina para ser quem eu sou. Disciplina para manter a organização, para não me perder dentre tantos papéis e para cultivar coragem contra inúmeras frustrações; e encontrar o Poupa Trans foi essencial para iluminar esse caminho e enriquecer essa lição.
O Poupa Trans é, para além de um coletivo, um serviço gratuito de informação e conteúdo para diluir muitas das barreiras – financeiras, de conhecimento e até mesmo o medo – que são colocadas entre pessoas trans e os nossos direitos. No site, entre vídeos e cartilhas, a iniciativa explica o passo a passo de como retificar os seus documentos na Bahia, Mato Grosso, São Paulo, Pará e Santa Catarina.
Ela é uma iniciativa digital, mas existem também movimentações de apoio ao redor do Brasil em forma de mutirões de retificação para tornar essa jornada menos assustadora; acolhendo desde crianças e jovens adolescentes até adultos, para uma condução justa rumo ao reconhecimento do seu gênero perante o Estado.
E essa jornada – dentre ONGs, buscas no TikTok e leitura dos mais diversos textos – é menos assustadora quando acompanhada, ou ao menos tem sido para mim.
Você que leu até aqui seja por curiosidade ou necessidade, enquanto uma pessoa trans ou parte da rede de apoio de alguém, conte comigo para uma dica, uma piada espirituosa ou até mesmo um desabafo. Juntas vamos mais longe.
*Depoimento escrito em primeira pessoa e editado por Andréa Martinelli, editora-chefe da CAPRICHO.