“Conheça a você mesmo e ao seu inimigo e, em cem batalhas, você nunca correrá perigo”. A frase é do lendário general Sun Tzu, eternizada na obra milenar “A Arte da Guerra” — um fenômeno do mundo empresarial. Não faltam indícios de que a indústria automotiva moderna usa táticas de estratégia militar que garantiram o triunfo de dinastias chinesas a partir do século 6 a.C.
Há 30 anos, a China estava totalmente fora do radar da indústria global. Sua densidade populacional na casa do bilhão, porém, era atrativa para investidores ocidentais. O governo criou uma estratégia para atrair empresas europeias e americanas por meio de alianças comerciais e, assim, deixar de ser coadjuvante para assumir o protagonismo.
O plano foi tão bem-sucedido que hoje, as marcas ocidentais sucumbiram à grandeza do mercado chinês. Fabricantes do país já partem para outras regiões em ousados planos de expansão. Mas como a China deixou de ser um país secundário para se tornar a maior potência (não só automotiva) do planeta? Talvez isso tenha sido explicado há mais de dois mil anos.
“Analise o inimigo; conquiste-o para si. Nada mais será preciso” — Sun Tzu, A Arte da Guerra
A transformação industrial da China começou em 1978, quando o partido comunista abriu a economia e iniciou uma reforma completa. Antes, o país era comercialmente próximo ao que vemos hoje na Coreia do Norte, com um mercado interno completamente restrito. Este movimento não aconteceu do dia para a noite e foi finalizado apenas em 1992, uma década e meia depois.
Chance de ouro
Pelas condições do país, muito populoso e amplo, havia uma oportunidade de ouro para quem produzia automóveis. Até os anos 1980, o mercado chinês estava restrito a ônibus e caminhões, mas isso estava para mudar com a chegada de marcas ocidentais. O objetivo era fazer o chinês de classe média abandonar o transporte coletivo e adquirir um veículo para o dia a dia. O governo seria dono de uma parte do negócio, incluindo sempre uma marca local como joint venture.
Como a indústria local não tinha expertise, a alternativa foi trazer engenheiros de outros países para mostrar como desenvolver e montar automóveis de passeio. Inclusive, o jornalista Jason Vogel contou no Motor1 sobre a aventura de um grupo de trinta engenheiros brasileiros da Volkswagen em Shanghai em 1984. Eles foram contratados pela matriz alemã para ensinar os chineses a fabricarem o nosso Santana em processos pouco automatizados. Tudo era muito rústico.
O mercado começou a crescer e se tornar ainda mais atrativo e relevante no começo da década de 1990. Os chineses estavam se dando bem na construção dos automóveis de passeio, mas o varejo ainda era dependente de veículos comerciais. Algumas marcas locais até começaram a surgir, lançando carros baratos de baixíssima qualidade (que fracassaram em vendas, evidentemente). A engenharia local, porém, continuou aprendendo com os estrangeiros.
“Evite usar armas e mantimentos de seu país; tire-os do inimigo, e assim estará bem abastecido” — Sun Tzu, A Arte da Guerra
Já nos anos 2000, o volume de produção da China cresceu ao ponto das joint-ventures identificarem a oportunidade de desenvolver carros localmente. Eles seriam vendidos com os logotipos de Volkswagen, Chevrolet e Ford, por exemplo, mas teriam DNA chinês.
Algumas marcas firmaram mais de um acordo de fabricação. Este é o caso da Volkswagen, que produz com Saic, a FAW e até a JAC Motors mais recentemente. Além disso, as fabricantes chinesas também foram autorizadas a firmar mais de uma parceria internacional. A própria Saic também se aliou à General Motors e passou a aprender com engenheiros de ambos os lados.
Na metade da década de 2000, carros totalmente desenvolvidos por fabricantes chinesas começaram a conquistar seu lugar no mercado interno. Marcas que antes produziam apenas caminhões e ônibus passaram a montar automóveis de passeio do zero. A qualidade ainda era questionável, principalmente em comparação com o que o resto do mundo oferecia, mas já representava um avanço.
“A lei da guerra se baseia no engano. Finja ser incapaz quando puder atacar e capaz quando não puder” — Sun Tzu, A Arte da Guerra
A terceira década da jovem indústria automotiva chinesa foi marcada pela expansão. Internamente, as vendas já satisfaziam, com volume de emplacamentos anual na faixa de 7 milhões de unidades em 2008 (no mesmo ano, o Brasil vendeu 2,8 milhões de exemplares). O objetivo agora era conquistar o mundo.
Conquista do mundo
E foi justamente na segunda metade da década de 2000 que as fabricantes chinesas começaram a chegar ao Brasil: Effa, Lifan, Chery (ainda sem o apoio do Grupo Caoa) e JAC Motors foram as primeiras a desembarcar. O objetivo, como você deve lembrar, era vender carros mais baratos que as marcas ocidentais, numa estratégia comercial voltada ao “leve mais por menos”.
Diferentemente de Haval, Dolphin e Song, os primeiros carros chineses eram modelos de entrada com muitos equipamentos e preços baixos. Porém, a incerteza sobre a qualidade dos produtos e os plágios descarados de modelos de outros países acabaram estigmatizando esses veículos. Um exemplo é a Lifan, que chegou a ser processada pela BMW do Brasil e proibida de vender o hatch 320 (uma cópia do Mini Cooper).
Outro exemplo é a Landwind que, não satisfeita em apenas copiar parte do nome da Land Rover, também plagiou o Range Rover Evoque. Mais recentemente, a GWM lançou o Ora Punk Cat, com um design totalmente inspirado no Fusca.
“Numa batalha de carros [...], troque suas cores e utilize-os misturados aos seus” — Sun Tzu, A Arte da Guerra
Se os carros chineses ainda não agradavam internacionalmente, o jeito é expandir para o oeste de outra maneira. Em 2010, a Geely adquiriu a Volvo (que pertencia à Ford) em uma negociação de US$ 1,2 bilhão. Junto da marca sueca veio a expertise de seus engenheiros, que também estariam envolvidos em outros projetos.
Anos depois, Volvo e Geely criaram marcas como Lynk & Co, Polestar e Zeekr com o compartilhamento de suas bases técnicas. A Zeekr já iniciou suas operações no Brasil, enquanto a Polestar é aguardada para 2025.
Outra sacada envolveu a expansão da cadeia produtiva de componentes para toda a indústria. Microchips eletrônicos, dispositivos, placas de processamento, semicondutores… A China passou a ter controle total e tornou fabricantes ocidentais dependentes de si.
Domínio nos carros elétricos
Entretanto, o maior triunfo do mercado chinês ficaria mais evidente na virada da década. O país simplesmente dominou a produção de baterias para veículos elétricos. Hoje, quase toda a indústria global depende da engenharia chinesa. E o que diria Sun Tzu, do alto de sua sabedoria, sobre este triunfo?
“Suas vitórias não foram casuais e não dependeram de sorte. Elas já existiam e, simplesmente, consistiram em se impor sobre quem já havia perdido. [..] Pode-se prever suas vitórias, mas não forjá-las” — Sun Tzu, A Arte da Guerra
Entre as dez maiores fabricantes de baterias de carros elétricos do mundo, seis são chinesas. O país é responsável por 75% da produção global do componente. E mesmo empresas que não são oriundas da região dependem da cadeia produtiva do país. Os dados são da consultoria internacional SNE Research.
Introduzimos na história uma gigante que ainda não foi citada: a BYD. A empresa é responsável por 13,6% de todas as baterias de veículos elétricos do mundo e até oferece modelos à prova de fogo. Acima dela, surge a conterrânea CATL, com 37% do mercado, e a sul-coreana LG Energy, com 13,7%.
Este crescimento acompanha o mercado de elétricos. Sabendo que veículos a bateria seriam o futuro da mobilidade, o governo chinês lançou um plano de estímulo à eletrificação de 2009. Assim, concedeu isenção de impostos aos consumidores e benefícios fiscais às suas fabricantes.
O programa não apenas funcionou como foi prorrogado. A intenção inicial era encerrá-lo em 2015, mas está ativo até hoje. No começo de 2023, o governo anunciou um novo pacote de US$ 72,3 bilhões para mais uma rodada de estímulos durante os próximos quatro anos.
Graças ao avanço estrondoso, a indústria chinesa emplacou inacreditáveis 26 milhões de veículos leves apenas em 2023 — vários deles elétricos e híbridos. Como comparação, o Brasil fechou o mesmo período com 2,1 milhões de unidades vendidas. Os resultados crescentes encurralaram as marcas ocidentais. Parece tarde para uma reação…
“Se as tropas inimigas estão em ordem, tente bagunçá-las; se estão unidas, semeie a discórdia” — Sun Tzu, A Arte da Guerra
A reação, de fato, veio — mas a batalha não é travada nas lojas. A ameaça das marcas chinesas passou a assombrar empresas ocidentais que, desesperadas, recorreram aos governos para tentar conter a chamada “invasão”. Tudo isso como consequência de algo que foi ensinado por elas mesmas à indústria chinesa 40 anos antes. O inimigo foi cercado, e nem percebeu.
Este plano está em curso no Brasil (onde marcas ligadas à Anfavea pedem a retomada do imposto de importação integral para veículos elétricos), nos Estados Unidos (onde o imposto vai aumentar de 25% para 100%) e na Europa (com alta de 10% para 48% na tarifa).
Dois mil e quinhentos anos depois de Sun Tzu, as estratégias militares ainda são utilizadas por seus conterrâneos. Porém, antes de justificarmos o sucesso das empresas chinesas apenas pela cadeia produtiva inatingível, lembremos também das lições de sabedoria milenar e do retorno do aprendizado incessante.
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